RESUMO: O artigo tem como foco a análise da aplicação da retroatividade da lei penal benéfica aos casos anteriores à vigência da lei 13.964/2019, que prevê o acordo de não persecução penal (ANPP). O ANPP surgiu como meio alternativo à persecução penal, sendo um acordo firmado entre o investigado e o Ministério Público. Uma vez que o acordo é aceito e cumprido, a punibilidade é extinta e o investigado se mantém primário para todos os efeitos legais. Apesar do claro benefício para o investigado, surgiram diversas ações questionando o não oferecimento do acordo, sob a justificativa de que o ANPP somente seria aplicado aos casos em que ainda não houvesse sido oferecida a denúncia. Diante disso, o Supremo Tribunal Federal adotou duas posições principais, a primeira, de que o ANPP somente seria aplicável até o oferecimento da denúncia e, a segunda, que o instituto poderia ser aplicado até o trânsito em julgado. Diante dessa celeuma, questiona-se se essas interpretações estariam de acordo com o princípio constitucional da retroatividade penal benéfica, contido no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal e se o trânsito em julgado pode ser um delimitador para a aplicação do instituto.
Palavras-chave: retroatividade penal benéfica; ANPP; trânsito em julgado; artigo 28-A, do CPP.
ABSTRACT: The article focuses on analysing the application of the retroactivity of beneficial criminal law to cases prior to the enactment of Law 13.964/2019, which provides for the Non-Prosecution Agreement (ANPP). The ANPP emerged as an alternative to criminal prosecution, being an agreement signed between the investigated person and the Public Prosecutor's Office. Once the agreement is accepted and complied with, punishability is extinguished and the investigated person remains primary for all legal purposes. Despite the clear benefit for the investigated, several lawsuits have arisen questioning the non-offering of the agreement, on the grounds that the ANPP would only be applied to cases in which charges had not yet been filed. As a result, the Federal Supreme Court adopted two main positions: firstly, that the ANPP would only be applicable until charges had been filed, and secondly, that the institute could be applied until the final judgment had been handed down. Faced with this controversy, the question is whether these interpretations are in line with the constitutional principle of beneficial criminal retroactivity, contained in article 5, item XL, of the Federal Constitution, and whether the final judgment can be a delimiter for the application of the institute.
Keywords: beneficial criminal retroactivity; ANPP; final and unappealable judgement; article 28-A of the Criminal Procedure Code.
INTRODUÇÃO
No dia 24 de dezembro de 2019, foi sancionada a Lei nº 13.964, conhecida como “Pacote Anticrime”, promovendo mudanças na legislação penal e processual penal, sob a justificativa de aumentar a eficácia e a eficiência da justiça criminal. Dentre essas mudanças, foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro o acordo de não persecução penal (ANPP), previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal (CPP).
O objetivo central do ANPP é a solução alternativa da lide penal, por meio de um acordo, sendo aplicado aos casos de pequena e média gravidade, permitindo ao Ministério Público e ao Poder Judiciário que se dediquem aos casos de maior gravidade.
Além disso, o ANPP permite o desafogamento do sistema carcerário, sendo benéfico, também, aos investigados e denunciados por crimes, uma vez que aceitando e cumprindo o acordo, têm a punibilidade extinta, evitando, desse modo, a estigmatização oriunda de uma eventual condenação criminal e mantendo-se primário para todos os efeitos legais.
Em que pese haver claros benefícios para o Estado e para a sociedade, há divergência jurisprudencial sobre o limite temporal para a aplicação do instituto. Desse modo, a pesquisa tem como finalidade responder “qual o limite temporal para a aplicação retroativa do acordo de não persecução penal aos processos que estavam em curso quando da entrada em vigor da lei 13.964/2019?”. Seria o recebimento da denúncia, a prolação da sentença ou não há limite temporal, podendo ser aplicado até mesmo após o trânsito em julgado?
O tema da pesquisa se mostra atual e relevante, uma vez que o STF ainda não pacificou o entendimento acerca da retroatividade do ANPP, e a depender do entendimento firmado, o investigado, denunciado, ou até mesmo sentenciado, irá sofrer as consequências da persecução penal ou poderá firmar o acordo, cumpri-lo, ter a punibilidade extinta, e por conseguinte, continuar primário para todos os efeitos legais.
Foi utilizado na pesquisa o método dedutivo e a abordagem qualitativa, por meio da revisão de livros, artigos científicos, revistas especializadas e da jurisprudência.
Os resultados da pesquisa estão divididos em três tópicos. O primeiro tópico aborda a justiça penal negocial, a sua finalidade e a sua inserção no sistema criminal brasileiro, bem como a sua aplicação na formulação do ANPP e os seus requisitos.
O segundo tópico trata do mandamento constitucional contido no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal: "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, analisando a sua finalidade e incidência para o direito criminal, principalmente nos casos envolvendo lei processual penal mista.
Por fim, no terceiro tópico, será realizada uma análise do posicionamento do STF acerca da retroatividade penal benéfica e a aplicação do ANPP aos casos anteriores a sua vigência, em especial o trânsito em julgado como marco temporal para o seu oferecimento, indicando ao final, a solução que se apresenta como a mais harmônica com o texto constitucional.
1. JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL E O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
O processo penal brasileiro foi baseado em sua concepção no formalismo, tendo sido formulado com base na ideologia ditatorial do “Estado Novo” e com fortes influências do Código de Processo Penal Italiano, de inspiração fascista, tendo, nesse sentido, a ideia de utilização do Poder Estatal para a repressão (GIACOMOLLI, 2015, p. 144).
Conforme Pedro Faraco e Vinicius Basso, houve um choque entre o modelo apresentado pela Constituição Federal de 1988 e o adotado pelo Código de Processo Penal, o que acarretou, após 20 anos, em sua reforma parcial. (FARACO NETO; BASSO LOPES, 2020, p. 23).
Somado a isso, a grande demanda de processos levados ao Poder Judiciário e sua consequente lentidão para a prestação jurisdicional, promoveu a necessidade de se buscar maior eficácia na atuação concreta do sistema criminal (MARTINELLI; SILVA, 2020, p. 52/54).
De acordo com levantamento apresentado no relatório Justiça em Números, na edição 2023, em 2022 ingressaram no Poder Judiciário 3,1 milhões de casos novos criminais, sendo 2,4 milhões (63,8%) na fase de conhecimento de primeiro grau. O número de casos criminais pendentes de julgamento chegou a 6.4 milhões (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2023, p. 224).
Ainda, esse resultado é muito aquém da média global e reflete a classificação do Brasil em 112º lugar (em um total de 140 países avaliados) quanto ao quesito “eficiência da Justiça Criminal”, no ranking WJP Rule of Law Index 2022 performance, elaborado pela organização internacional World Justice Project (WORLD JUSTICE PROJETCT, 2022).
A partir dessa necessidade, busca-se encontrar uma solução que atenda de forma adequada às demandas de prevenção e repressão de infrações penais, levando em conta a gravidade do delito, sem sobrecarregar recursos públicos ou causar excessivo esforço e desgaste aos envolvidos, mantendo uma relação equilibrada entre o esforço empregado e os benefícios alcançados, tendo ganhado força no ordenamento jurídico brasileiro a denominada justiça penal negocial.
Essa é uma tendência mundial, nos Estados Unidos, por exemplo, os acordos penais superam 90% da resolução dos casos (VASCONCELLOS, 2018, p. 50.), sendo que na Europa, desde 1987, há a recomendação R(87)18 do Conselho da Europa, que versa sobre a simplificação da justiça penal, buscando desestimular a intervenção judicial de forma primária.
A partir disso, a justiça penal negocial se apresenta como um contraponto a hegemonia da prisão como método mais eficaz de sanção penal, uma vez que o seu papel ressocializador é questionado, assim como sua função de prevenção.
Vinicius Gomes de Vasconcelos define a justiça criminal negocial como:
(...) modelo que se pauta pela aceitação (consenso) de ambas as partes – acusação e defesa- a um acordo de colaboração processual com o afastamento do réu de sua posição de resistência, em regra impondo encerramento antecipado, abreviação, supressão integral ou de alguma fase do processo, fundamentalmente com o objetivo de facilitar a imposição de uma sanção penal com algum percentual de redução, o que caracteriza o benefício ao imputado em razão da renúncia ao devido transcorrer do processo penal com todas as garantias a ele inerentes” (VASCONCELLOS, 2018, p. 50).
Nesse sentido, a justiça criminal negocial está intimamente relacionada aos conceitos de obrigatoriedade e oportunidade da ação penal, uma vez que se baseia em espaços de oportunidade no processo. No entanto, ela se distingue de mecanismos puramente baseados na oportunidade, nos quais a não persecução de delitos ocorreria em casos específicos, sem a imposição de qualquer sanção ou consequência penal. Nos mecanismos negociais, ambos os lados do processo penal (acusação e defesa) participam, manifestando sua vontade com o mesmo sentido e propósito. Por outro lado, decisões exclusivas sobre critérios de oportunidade podem ser tomadas pelo órgão acusador. (VASCONCELLOS, 2022, p. 14/15).
Desse modo, são institutos da justiça criminal negocial no processo penal brasileiro a colaboração premiada, a transação penal, a suspensão condicional do processo, o acordo de leniência e o acordo de não persecução penal (ANPP), sendo caracterizados como facilitadores da persecução penal, uma vez que incentivam a não resistência do acusado, sua conformidade com a acusação, em troca de benefícios ou prêmios, como a redução da pena. Esses acordos visam concretizar o poder punitivo do Estado de forma mais ágil e menos onerosa. (VASCONCELLOS, 2022, p. 15).
Como exemplo da inserção da justiça criminal negocial no processo penal brasileiro, têm-se a implementação dos juizados especiais criminais, introduzidos pela Lei 9.099/95, contudo, já previsto no artigo 9, inciso I, da Constituição Federal de 1988, que previu, também, a transação penal.
Portanto, criou-se um microssistema para o julgamento de processos penais que receberam a denominação de “infrações de menor potencial ofensivo”, caracterizados por serem contravenções e crimes com pena abstrata máxima de 2 anos, sendo possível a composição civil dos danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo.
Esses institutos representam a ideia de justiça criminal negocial, uma vez que é necessária a concordância do réu em aceitar a acusação, em que pese não haver confissão ou reconhecimento da responsabilidade, consentindo, assim, com o cumprimento das obrigações contidas no acordo, sem que haja o transcurso normal do processo, com a produção de provas.
Apesar dos referidos institutos poderem ser aplicados às infrações de menor potencial ofensivo, os crimes de médio potencial ofensivo praticados sem violência ou grave ameaça não possuíam instituto semelhante que pudesse ser aplicado, e que evitasse, desse modo, a reclusão como meio de sanção penal.
Diante disso, no início de 2018, o Deputado Federal José Rocha (PR-BA) apresentou o Projeto de Lei n. 10.372/2018, que tinha dentre as propostas de alteração do Código de Processo Penal, a inserção do acordo de não persecução penal.
Na justificativa do Projeto, o Deputado encampou manifestação do Ministro Alexandre de Moraes, que, apresentou uma divisão tripartida da situação carcerária, mencionando que 1/3 dos presos estão confinados pela prática de crimes sem violência ou grave ameaça (BEM e MARTINELLI, 2020. p. 77/116).
A solução apresentada pelo Ministro para o problema do excesso de presos, seria a adoção do ANPP, a ser iniciado pelo Ministério Público e com a participação direta da defesa, submetendo a proposta à homologação judicial.
Em 2019, o Projeto foi encaminhado à Presidência da República, e em 24/12/2019, foi promulgada a Lei n° 13.964/2019. Essa legislação resultou do texto final do Projeto Substitutivo, que combinou elementos da proposta da Comissão liderada pelo Ministro Alexandre de Moraes (PL n° 10.372/2018) e parte do que ficou conhecido como "Pacote Anticrime" do Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob a liderança do então Ministro Sérgio Moro (PL n° 882/2019). Entretanto, vale ressaltar que a hipótese de celebração do acordo já havia sido proposta por meio da Resolução n. 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público.
O instituto então promulgado e inserido ao Código de Processo Penal (CPP) no artigo 28-A, previu requisitos objetivos e subjetivos para sua celebração. São os requisitos objetivos: i) não ser o caso de arquivamento; ii) pena mínima inferior a 4 anos; iii) ausência de emprego de violência e grave ameaça no cometimento do delito; iv) necessidade do cumprimento das funções político-criminais; v) não envolver delito passível de transação penal; e, vi) não tenha sido cometido no âmbito de violência doméstica ou familiar ou praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.
O artigo 28-A do CPP estabelece que, além dos requisitos objetivos, o autor do delito deve satisfazer requisitos subjetivos para ser elegível ao benefício do ANPP, ou seja, o indivíduo deve atender a determinadas condições pessoais, que são as seguintes: i) não pode ser um criminoso reincidente, habitual, reiterado ou profissional; ii) não deve ter celebrado um ANPP, acordo de transação penal ou suspensão condicional do processo nos últimos 5 anos (período depurador); iii) deve fazer uma confissão formal e detalhada da prática do delito.
Nesse sentido, Vasconcellos apresenta o ANPP como um mecanismo de simplificação procedimental, realizado por meio de um negócio jurídico entre acusação e defesa, em que o imputado abre mão do exercício de direitos fundamentais, como o direito ao processo, à prova, ao contraditório, ao silêncio, entre outros. Em troca, o imputado se conforma com a pretensão acusatória, submetendo-se voluntariamente às condições (sanções) pactuadas e confessando o delito. Essa cooperação com a acusação resulta em benefícios para o acusado, como uma sanção menos gravosa, além de evitar o início do processo ou uma sentença condenatória definitiva, bem como seus efeitos, como constar como maus antecedentes (VASCONCELLOS, 2022, p.37).
Conforme Vasconcellos, o ANPP é uma espécie da justiça criminal negocial:
Trata-se de uma espécie de justiça criminal negocial ao se consolidar como “um instrumento de consensualidade político-criminal ligado ao princípio da oportunidade da ação penal pública, em favor da economia processual e da celeridade na realização da justiça criminal”. Pode-se afirmar que o ANPP é “um pacto de arquivamento condicionado” ao cumprimento das condições definidas no termo negociado pelas partes. Assim, seu fundamento normativo, além de embasar-se no art. 28-A, também é respaldado no art. 28, caput, do CPP, que regula o arquivamento da investigação.” (Vasconcellos, 2022, p. 37/38).
Sendo cumprido o acordo, a punibilidade do autor do fato é extinta, e os autos são arquivados. Nesse sentido, o ANPP possui além da natureza processual, também possui natureza material ao produzir reflexos ao exercício do poder punitivo estatal (VASCONCELLOS, 2022, p. 38).
Destaca-se que o termo acordo de não persecução penal pode apresentar um problema interpretativo ao se condicionar a aplicação do instituto ao não início da persecução penal, ou seja, uma vez que a persecução penal se inicia, não há impeditivo para a aplicação do ANPP. Nesse sentido, elenca Vasconcellos:
Quanto à terminologia utilizada, importante destacar que o ANPP não resulta, efetivamente, em uma não persecução penal. Primeiramente, tal mecanismo é implementado, em regra, ao final da fase de investigação, a qual é uma das partes da persecução penal. Ademais, ainda que as condições impostas ao autor do fato no ANPP não sejam definidas como penas, são conceituadas como “equivalentes funcionais à pena”, o que, de certo modo, caracteriza uma resposta sancionatória, em meio a uma persecução penal, o que não é evitado pelo ANPP. Portanto, pensa-se que a expressão “acordo de não persecução penal” pode induzir uma ideia equivocada, de que se exclui por completo toda a persecução penal e que não haveria nenhum tipo de sanção ao imputado, o que não é correto. (VASCONCELLOS, 2022, p. 38).
Outro importante ponto acerca do ANPP e sua natureza jurídica, é se este se enquadra como um negócio jurídico discricionário ou um direito subjetivo do imputado. Uma vez que cabe ao Ministério Público oferecer o acordo, questiona-se quais critérios e limites para a decisão de oferecimento ou sua negativa.
Essa celeuma é similar a que ocorreu em relação à transação penal e a suspensão condicional do processo, que foram introduzidas pela Lei n. 9.099/1995. A posição adotada de forma majoritária pelos tribunais superiores é a aplicação, por analogia, do artigo 28 do Código de Processo Penal. Conforme o dispositivo, havendo discordância do magistrado quanto a postura do promotor, determinará o encaminhamento do caso ao Procurador-Geral de Justiça, preservando, desse modo, a separação das funções (VASCONCELLOS, 2022, p. 41).
Nesse sentido, conforme a súmula 696 do Supremo Tribunal Federal, “reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal”.
Com relação ao ANPP, a interpretação de haver um controle interno em caso de recusa do Ministério Público é prevista no artigo 28-A, § 14, do Código Penal. Nesse caso, havendo recusa do Ministério Público em propor o ANPP, o investigado poderá requerer a remessa do caso ao órgão superior do Ministério Público. Desse modo, conforme Vasconcellos, “o ANPP deve ser oferecido ou aceito pelo MP se atendidos os requisitos previstos na legislação atual e eventual recusa precisa ser devidamente motivada, podendo ser submetida à revisão por órgão superior internamente na instituição.” (VASCONCELLOS, 2022, p. 41).
2. A RETROATIVIDADE PENAL BENÉFICA E REFLEXOS PARA O ANPP
Vinicius de Toledo Piza Peluso destaca que a Constituição é a base essencial do Direito Penal, pois estabelece os princípios, valores e ideias fundamentais que orientam a ordem política e jurídica, conferindo-lhe legitimidade e justificando seu uso em certos atos coercitivos, que devem estar sujeitos a condições, requisitos e limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico (PELUSO, 2012, p. 12).
Desta forma, por conter uma carga significativa de restrição de direitos, o Direito Penal é considerado como uma das mais importantes, severas e violentas formas de coerção jurídica que o Estado pode utilizar para garantir a obediência às suas normas, ameaçando constantemente a liberdade dos indivíduos. Portanto, devido ao seu potencial sancionatório, o Direito Penal deve ser limitado e constantemente fiscalizado, sendo necessário rever seu conteúdo para evitar a possibilidade de se tornar constitucionalmente ilegítimo (PELUSO, 2012, p. 15).
Desse modo, a Constituição Federal impõe uma série de limites ao Direito Penal, através de valores, princípios e regras jurídicas que desempenham papel fundamental na tomada de decisões. Essas limitações têm como objetivo controlar o exercício do Direito Penal e evitar possíveis abusos por parte do Estado, que podem violar os direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos (PELUSO, 2012, p. 15).
Dentre esses princípios limitadores, a Constituição Federal consagrou o da retroatividade da lei penal mais benéfica em seu artigo 5º, inciso XL, dispondo que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
Desse modo, a retroatividade da lei penal mais benéfica é dotada de extra-atividade, ou seja, “retroage para alcançar fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor e continua sendo aplicada quando houver conflito com lex gravior posterior” (PRADO, 2020, p. 72).
Nesse sentido, Peluso afirma que a regra quanto a aplicação da lei penal, é a sua irretroatividade, contudo, há a possibilidade de sua aplicação retroativa, conquanto resulte em benefício aos cidadãos. Essa regra possibilita que haja efeitos presentes a fatos que ocorreram anteriormente, modificando, caso necessário, situações jurídicas que já foram consolidadas, sob aplicação de lei anterior. A retroatividade da lei, acarretando inovações na seara penal deve ocorrer somente quando auxilia, protege e melhora a situação do réu ou sentenciado (PELUSO, 2012, p. 36).
Aury Lopes Júnior disserta que a doutrina se socorre na distinção clássica entre as leis puras, processuais penais puras e mistas. A lei penal pura é a que disciplina o poder punitivo estatal, dispondo sobre o conteúdo material, o Direito Penal, como na disposição das penas, regime de cumprimento. Para essa espécie de lei, se aplica as regras do Direito Penal, retroagindo a lei penal mais benéfica (LOPES JÚNIOR, 2023, p. 50).
Quanto a lei processual penal pura, esta regula o início, desenvolvimento e fim do processo, dispondo acerca de institutos processuais, como perícias e forma dos atos processuais. Para essa espécie de lei, deve ser aplicado o princípio da imediaticidade, aplicando-se a lei sem efeitos retroativos (LOPES JÚNIOR, 2023, p. 50).
Ainda, existem as leis mistas, que possuem características penais e processuais, aplicando-se a regra do Direito Penal, ou seja, de retroatividade da lei penal mais benéfica. Esse tipo de norma disciplina atos realizados no processo que dispõe acerca do poder punitivo estatal, como a liberdade e extinção da punibilidade, o que ocorre no ANPP (LOPES JÚNIOR, 2023, p. 50).
Com base nessa distinção, percebe-se que o ANPP se enquadra como uma norma mista, em que é aplicada a retroatividade da lei penal mais benéfica, alcançando os fatos ocorridos antes de sua entrada em vigência.
Analisando o direito comparado, Peluso elenca que na Alemanha, no §2, III, do seu Código Penal, prevê: “se a lei que rege na cominação do fato é alterada antes da decisão, então há de se aplicar a lei mais benigna”. No Código Penal italiano, encontra-se previsto no artigo 3º, §§ 2º e 3º, “se a lei vigente no momento da comissão do delito e a lei posterior forem distintas, se aplicará a que resulte mais favorável ao réu, salvo que se tenha pronunciado sentença irrecorrível” (PELUSO, 2012, p. 42).
Na Espanha a retroatividade se apresenta mais abrangente. Conforme o artigo 2.2 do Código Penal espanhol, a lei mais benéfica pode retroagir aos processos em que a sentença penal condenatória já transitou em julgado: “não obstante, terão efeito retroativo aquelas leis penais que favoreçam ao réu, ainda que ao entrar em vigor tivesse recaído uma sentença firme e o sujeito estivesse cumprindo condenação. Em caso de dúvida sobre a determinação da lei mais favorável, será ouvido o réu” (PELUSO, 2012, p. 42).
Por fim, em Portugal, a retroatividade da lei penal benéfica está inserida no texto constitucional. O artigo 29.4 da Constituição portuguesa prevê que: “ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido” (PELUSO, 2012, p. 43).
Desse modo, a partir da análise do direito comparado, a retroatividade penal benéfica é aplicada em outros países, inclusive aos processos que transitaram em julgado, como na Espanha.
Além disso, conforme elenca Peluso, analisando os mencionados países, percebe-se que a retroatividade panal benéfica não consta de forma expressa em suas constituições, sendo inserida no campo infraconstitucional, objeto dos Códigos Penais (PELUSO, 2012, p. 47).
Contudo, assim como no Brasil, em Portugal o instituto é previsto na constituição, sendo uma norma jurídico constitucional, o que traz ou deveria trazer modificações na perspectiva dogmática da retroatividade penal benéfica (PELUSO, 2012, p. 47).
A Constituição Federal declara que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, em seu artigo 1º, caput. Desse modo, é um Estado de direitos fundamentais, em que deve ocorrer a efetivação dos direitos e liberdades fundamentais do homem. Nesse sentido, os direitos fundamentais asseguram ao homem autonomia perante o poder estatal.
Os direitos fundamentais como parte integrante da ordem constitucional, servem com fundamento e limite de todas as demais normas do ordenamento jurídico. Desse modo, para que haja a garantia constitucional desses direitos, a sua limitação deve ser justificada e legitimada na salvaguarda de outros direitos, interesses ou bens constitucionalmente protegidos (PELUSO, 2012, p. 47).
Portanto, se o Estado Democrático de Direito tem como uma de suas funções a defesa, garantia, máxima efetivação e respeito aos direitos fundamentais individuais, em especial o direito à liberdade, este só poderá ser limitado na medida em que seja indispensável para a defesa de outros direitos e liberdades constitucionalmente consagrados (PELUSO, 2012, p. 47).
Ao se projetar essa mínima restrição dos direitos fundamentais na aplicação da lei penal no tempo, deve se analisar a retroatividade penal benéfica, uma vez que o legislador entende que “uma pena menos gravosa – e, portanto, menos limitadora do direito fundamental de liberdade – é suficiente para realizar as funções preventivo-retributivas das penas criminais, então, obrigatoriamente, tal lei deve ser aplicada retroativamente” (PELUSO, 2012, p. 47).
Além de um direito fundamental, deve ser analisado se a retroatividade penal benéfica é um princípio ou uma regra constitucional.
Os princípios são normas com elevado grau de abstração, não apresentando uma hipótese de fato nem uma consequência jurídica abstratamente determinada, sendo standarts finalísticos de otimização e estabelecendo os valores a serem observados ou alcançados, aplicando-se a um número indeterminado de situações fáticas e a um número indeterminado de pessoas, razão pela qual exigem elevado grau de subjetivismo do aplicador, que atribui o peso aos princípios envolvidos, e ocorrendo conflito de princípios, não invalida um deles, mas estabelece a prevalência de um sobre o outro (PELUSO, 2012, p. 48).
Quanto as regras, estas apresentam pouco ou nenhum grau de abstração, contendo uma hipótese de fato e uma consequência jurídica, com mandamentos normativos imperativos e definidos, aquilo que é obrigatório, permitido ou proibido, destinado a um número certo de situações e a pessoas determinadas, inexigindo subjetividade na sua aplicação. Desse modo, o aplicador deve confrontar o fato com a norma pelo método da subsunção, e ocorrendo a identidade, aplicar as consequências previstas. Ainda, ocorrendo conflito entre as regras, deverá optar em aplicar uma delas e invalidar as demais normas conflitosas (PELUSO, 2012, p. 48).
Quanto a eficácia, as regras exercem função definidora e concretizadora, delimitando o comportamento a ser adotado para concretizar as finalidades estabelecidas pelos princípios, possuindo uma rigidez maior para sua superação, que só é admissível quando exista razão extraordinária. Por esse motivo, em caso de conflito entre um princípio e uma regra de mesmo nível hierárquico, a regra deverá prevalecer (PELUSO, 2012, p. 49).
Nesse contexto, para Peluso, “parece indiscutível que, entre nós, a retroatividade penal benéfica estatuída pelo art. 5º, XL, da Constituição Federal tem a natureza jurídica de verdadeira regra constitucional” (PELUSO, 2012, p. 49).
A norma constitucional apresenta pequeno grau de abstração, estabelecendo uma hipótese de fato (uma nova lei penal mais favorável) e uma consequência jurídica (sua aplicação retroativa), configurando mandamentos normativos definidores e imperativos. Ainda, é destinada a uma situação específica (a existência de posterior lex mitior penal) e aplicada a um número determinado de pessoas (autores dos fatos penalmente ilícitos abrangidos pela lex mitior), exigindo aplicação obrigatória, pelo método da subsunção (PELUSO, 2012, p. 49).
Portanto, conforme assevera Peluso:
A regra jurídico-constitucional instituída pelo art. 5º, XL, da Constituição Federal é norma imediatamente descritiva por estabelecer uma obrigação, mediante a descrição da determinada conduta (ou comportamento) a ser adotada pelo julgador, e que, portanto, proporciona uma solução constitucional, com caráter de decidibilidade, a um problema conhecido e certo (a sucessão de uma lei penal mais benigna), solução que a própria Constituição, pela técnica adotada, torna menos flexível e, pois, afasta prima facie qualquer outra solução existente no ordenamento jurídico (applicable in all-or-nothing fashion), já que uma regra vale e deve cumprir-se na exata medida de suas prescrições, nem mais nem menos (PELUSO, 2012, p. 49).
Importante elencar que a lei n. 13.964/2019 não estabeleceu um marco temporal para a sua aplicação, sendo que os entendimentos acerca de sua aplicação surgiram dos casos práticos explicitados na Jurisprudência. O que é expresso é a regra constitucional da retroatividade penal benéfica, sem ressalvas.
Desse modo, a regra constitucional da retroatividade penal benéfica tem eficácia definidora, delimitando o poder estatal, e que só poderá ser superada mediante razões constitucionais extraordinárias.
Resta claro, portanto, que no caso do tema da presente pesquisa, a lei posterior que instituiu o ANPP, é a lei mais favorável àqueles que foram indiciados e julgados, que em tese, teriam direito a aplicação do instituto. Nesse sentido, a conclusão que se pode chegar tendo como base o princípio constitucional, é que a citada lei deve ser aplicada de forma retroativa a fim de beneficiar todos os que cumprem os requisitos legais.
3. POSICIONAMENTO DO STF ACERCA DA APLICAÇÃO DA RETROATIVIDADE PENAL BENÉFICA DO ANPP E O TRÂNSITO EM JULGADO COMO MARCO TEMPORAL
O STF durante um período vinha firmando o entendimento de que o ANPP somente seria aplicado aos casos em que os fatos tivessem sido praticados em momento anterior a sua vigência, se a denúncia não tivesse sido recebida. Ao pesquisar no Sítio Eletrônico do STF, diversas são as decisões nesse sentido, podendo se mencionar:
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. DENÚNCIA. CRIMES PREVISTOS NO ART. 29, §1º, III, DA LEI 9.605/1998 E NO ART. 296, § 1º, III, DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. MATÉRIA SUSCITADA NÃO EXAMINADA PELA INSTÂNCIA ANTECEDENTE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. INVIABILIDADE. (...).
(...)
4. A finalidade do acordo de não persecução penal (ANPP) é evitar que se inicie o processo; portanto, o entendimento do STJ, de que o acordo aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia, não revela quadro de ilegalidade, uma vez que encontra amparo em julgados desta CORTE: HC 199950, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, DJe de 18/6/2021; HC 191124 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, DJe de 13/4/2021; HC 191.464-AgR/SC, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe de 26/11/2020; ARE 1294303 AgR-segundo-ED, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, DJe de 26/4/2021; RHC 200311 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe de 4/8/2021. 5. Agravo Regimental a que nega provimento. (BRASIL. STF. HC 206876 AgR). (grifei).
Além do julgado colacionado, pode-se citar o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 1344247/PR.
Nesse sentido, importante foi o posicionamento da 1ª Turma do STF, que decidiu de forma unânime no julgamento do HC nº 191464 AgR/SC, de Relatoria do Ministro Roberto Barroso, uma vez que o julgado e sua fundamentação foram citados por outros Ministros para negar o provimento de diversos processos com o mesmo tema. Desse modo, importante elencar a ementa do referido julgado:
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (ART. 28-A DO CPP). RETROATIVIDADE ATÉ O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA.
1. A Lei nº 13.964/2019, no ponto em que institui o acordo de não persecução penal (ANPP), é considerada lei penal de natureza híbrida, admitindo conformação entre a retroatividade penal benéfica e o tempus regit actum.
2. O ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia.
3. O recebimento da denúncia encerra a etapa pré-processual, devendo ser considerados válidos os atos praticados em conformidade com a lei então vigente. Dessa forma, a retroatividade penal benéfica incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.
4. Na hipótese concreta, ao tempo da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, havia sentença penal condenatória e sua confirmação em sede recursal, o que inviabiliza restaurar fase da persecução penal já encerrada para admitir-se o ANPP.
5. Agravo regimental a que se nega provimento com a fixação da seguinte tese: “o acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia”. (BRASIL. STF. HC: 191464/SC). (grifei).
Em seu voto, o Ministro Roberto Barroso afirma que conforme o disposto no artigo 28-A, do CPP, a possibilidade de composição tem seu fim na fase anterior ao recebimento da denúncia, não somente porque o artigo faz referência ao termo investigado (e não réu), a juiz das garantias (que não atua na instrução processual), mas principalmente porque o descumprimento do acordo ou de sua não homologação é a oferta e recebimento da denúncia (artigo 28-A, §§8º e 10º). (BRASIL, STF. HC: 191464/SC).
Ainda, conforme o Ministro, o ANPP foi instituído por norma penal híbrida, possuindo tanto norma de direito material, como de direito processual, sendo que essas leis penais estão subordinadas tanto à retroatividade penal benéfica, como ao tempus regit actum, desse modo, uma vez que o ANPP se esgota na fase pré-processual, o recebimento da denúncia é o marco limitador para sua celebração, sendo que a retroatividade penal benéfica incidiria para autorizar a aplicação do ANPP para os fatos ocorridos em momento anterior a Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia (BRASIL, STF. HC: 191464/SC).
O Ministro disserta que a retroatividade penal benéfica sem um limite temporal ensejaria o colapso do sistema criminal ao admitir a instauração da discussão da oferta do ANPP inclusive aos processos com sentença transitada em julgado, o que acarretaria no encaminhamento de quase todos os processos ao titular da ação penal para a avaliação do cabimento do acordo, o que seria inaceitável ao se observar a finalidade do ANPP, de impedir o início da persecução penal (BRASIL, STF. HC: 191464/SC).
Em que pese a 1ª Turma do STF ter firmado o entendimento no sentido de que a retroatividade do ANPP se aplica somente aos casos em que os fatos ocorreram em período anterior a sua vigência, e não tendo sido recebida a denúncia, a 2ª Turma possui entendimento contrário, no sentido de que o ANPP é aplicável aos processos iniciados antes da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, desde que não tenha ocorrido o trânsito em julgado (BRASIL. STF. HC: 206.660/SC e HC 220.249/SP).
Conforme o relator, Ministro Ricardo Lewandowski, o ANPP é norma processual penal mais benéfica, devendo ser aplicado o referido acordo aos processos iniciados em data anterior a vigência da Lei 13.964/2019, com a ressalva de que os processos não tenham transitado em julgado.
Diante da celeuma interpretativa dentro do STF, o Ministro Gilmar Mendes, afetou o HC 185.913/DF ao plenário do STF, para o fim de “abstrativização” do tema, sob o sistema da repercussão geral. Em sua decisão o Ministro delimitou dentre as questões a serem decididas pelo Pleno, a possibilidade de oferecimento do ANPP aos processos em curso, quando da entrada em vigência da Lei 13.964/19 e a possibilidade de sua aplicação retroativa em benefício do imputado (BRASIL, STF. HC 185.913/DF).
O Ministro Gilmar Mendes adiantou o seu voto, apresentando a seguinte tese:
É cabível o acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento (ainda não transitados em julgado) quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até́ aquele momento. Ao órgão acusatório cabe manifestar-se motivadamente sobre a viabilidade de proposta, conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle, nos termos do artigo 28-A, §14, do CPP (MENDES, 2022).
Apesar do avanço no entendimento que foi firmado pela 1ª Turma do STF, o Ministro estipulou como marco limitativo o trânsito em julgado. Desse modo, caso prevaleça o entendimento do Ministro Gilmar Mendes, ficarão prejudicados os réus que manifestaram interesse em firmar o ANPP, mas que os processos tenham transitado em julgado (MENDES, 2022).
Nesse sentido, conforme Tiago Mendes, surgiria uma nova celeuma quanto a retroatividade do entendimento jurisprudencial, com a impetração de diversas revisões criminais e Habeas Corpus sobre o tema, “salvo se houvesse modulação dos efeitos da decisão proferida no HC 185.913/DF” (MENDES, 2022).
Apesar da 1ª Turma possuir o entendimento da aplicabilidade do ANPP somente nos casos em que não foi recebida a denúncia e a 2ª Turma da aplicabilidade somente até o trânsito em julgado, dentro da STF surge uma nova interpretação, a de que o ANPP pode ser aplicado aos processos com trânsito em julgado.
O Ministro Edson Fachin, no Ag. Reg. no HC 217.275/SP, apesar de ter ocorrido o trânsito em julgado, reconheceu a retroatividade do ANPP, concedendo a ordem de ofício a fim de oportunizar ao Ministério Público, em primeira instância, a propositura do Acordo de Não Persecução Penal, caso preenchidos os requisitos (BRASIL, STF. HC: 217.275/SP).
Conforme o Ministro, a expressão “lei penal” contida no art. 5º, inciso XL, da CF, deve ser interpretada como gênero, devendo abranger tanto leis penais como processuais penais, as quais disciplinam a pretensão punitiva do Estado ou interferem diretamente no status libertatis do indivíduo. Desse modo, essas normas, quando beneficiam o réu, devem retroagir, em conformidade com o texto constitucional (BRASIL, STF. HC: 217.275/SP).
O Ministro ressalta, ainda, que o ANPP, após o seu cumprimento integral extingue a punibilidade, não caracterizando como maus antecedentes ou reincidência (BRASIL, STF. HC: 217.275/SP).
Nesse sentido, o recebimento da denúncia ou a prolação da sentença não esvaziam a finalidade do ANPP, uma vez que a sua celebração evita a condenação criminal e seus efeitos, como o cumprimento da pena, a reincidência, maus antecedentes, e sobretudo o processo em si. Esses marcos processuais não afastam a aplicação da garantia constitucional da retroatividade da lei penal mais benéfica (BRASIL, STF. HC: 217.275/SP).
Por fim, o Ministro Edson Fachin reconheceu que apesar de haver sentença transitada em julgado, o processo estava em curso no momento da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, portanto, reconheceu o efeito retroativo do ANPP e determinou a remessa dos autos ao Ministério Público para a propositura do ANPP, caso houvesse o preenchimento dos requisitos previstos (BRASIL, STF. HC: 217.275/SP).
Diante do decidido, o Ministério Público interpôs agravo regimental, sendo negado o provimento, por unanimidade. Participaram do julgamento os Ministros André Mendonça (Presidente), Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Edson Fachin e Nunes Marques.
Destaca-se que em consulta realizada no Sítio Eletrônico do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Ministério Público ofereceu proposta de ANPP à ré, que o aceitou, tendo sido homologado pelo juízo (autos n. 0000641-89.2016.8.26.0369).
No mesmo sentido da decisão do Ministro Edson Fachin, o Ministro Nunes Marques proferiu decisão em que reconheceu a retroatividade do ANPP a processo com sentença transitada em julgado (BRASIL, STF. ARE 1.437.781/PR).
Conforme o Ministro, o ANPP é norma processual com conteúdo material, por ser instituto de direito processual penal, pois prevê a possibilidade de composição entre as partes e evita a instauração penal, e, concomitantemente, possui natureza material em razão da possibilidade da extinção da punibilidade. (BRASIL, STF. ARE 1.437.781/PR)
Desse modo, por ser norma penal de conteúdo material, deve ser aplicada a retroatividade penal benéfica, em conformidade como artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (BRASIL, STF. ARE 1.437.781/PR).
Conforme elenca o Ministro, “essa mesma razão é revelada no art. 2º, parágrafo único, do Código Penal, ao dispor que “a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”” (BRASIL, STF. ARE 1.437.781/PR).
Por fim, o Ministro Nunes Marques elenca que a Lei 13.964/2019 entrou em vigência em momento em que a sentença penal não havia transitado em julgado, desse modo, “é possível que, durante o curso da persecução penal (fases investigativa e judicial), as partes optem pela formalização do acordo previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal” (BRASIL, STF. ARE 1.437.781/PR).
Dessa forma, o Ministro reconheceu a retroatividade do ANPP e determinou a remessa dos autos ao juízo de primeira instância para encaminhamento ao Ministério Público a fim de oportunizar a propositura do ANPP, observados os requisitos previstos na legislação (BRASIL, STF. ARE 1.437.781/PR).
Verifica-se que o entendimento do STF acerca da retroatividade do ANPP não se encontra pacificado, a 1ª Turma entende que o instituto pode ser aplicado a processos anteriores à vigência da lei 13.964/2019, desde que não tenha sido recebida a denúncia. A 2ª Turma, de modo diverso entende que o ANPP pode ser aplicado, desde que não tenha ocorrido o trânsito em julgado e, em entendimento recente, foi reconhecida a possibilidade de celebração do ANPP a processo em que houve o trânsito em julgado.
É indiscutível que enquanto a questão não for decidida de forma definitiva pelo plenário do STF, permanecerá a insegurança jurídica, persistindo violações, principalmente quanto à isonomia e à legalidade, uma vez que não há garantia de que, indivíduos em situações análogas, tenham a mesma oportunidade de oferta do ANPP (MEDEIROS, 2022).
Ainda, a superação da regra constitucional da retroatividade penal benéfica somente poderia ser admitida diante de razões fortes o suficiente (PELUSO, 2013, p. 236), contudo, não parece ser o caso, uma vez que as justificativas apresentadas pelos Ministros para negar a aplicação da retroatividade do ANPP se baseiam em não ser a intenção do legislador que o ANPP seja aplicado aos processos em curso, mas sim evitar o seu início e que a aplicação do ANPP aos processos em andamento provocaria aumento do trabalho desempenhado pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público.
Apesar dos argumentos expostos nas decisões elencadas, com base nos argumentos expostos na pesquisa, não devem prevalecer sobre o princípio da retroatividade da lei penal benéfica, principalmente porque uma vez que o ANPP não seja aplicado ao réu, este sofrerá o processo penal, com a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena. Contudo, sendo oferecido o ANPP ao réu, e sendo cumprido, haverá a extinção da punibilidade e, como consequência, continuará sendo primário.
A justificativa de que haveria um colapso no sistema criminal ao permitir a aplicação do ANPP em qualquer fase processual está em desconformidade com o texto constitucional, pois fere os direitos e garantias fundamentais constantes da Constituição Federal, como a dignidade da pessoa humana, dando ênfase a questões procedimentais e burocráticas em prejuízo ao Cidadão (BETTA, 2022).
O julgamento do HC 185.913/DF, sob o regime de Repercussão Geral, continua pendente, contudo, vislumbra-se a possível pacificação do tema pelo STF, que pode ir além do proposto pelo Ministro Gilmar Mendes (retroatividade penal benéfica até o trânsito em julgado), e instituir um novo marco temporal e em conformidade com a interpretação conforme a Constituição estabelecer “a aplicação da retroatividade da lei penal benéfica aos casos anteriores à vigência da Lei 13.964/2019, mesmo havendo o recebimento da denúncia ou decisão condenatória definitiva com trânsito em julgado, com fulcro no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal c/c o artigo 2º, parágrafo único do Código Penal”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ANPP é um instituto importante para a justiça criminal brasileira, principalmente em razão do seu potencial de desafogar o sistema carcerário, assim como a celeridade na tramitação dos processos, uma vez que é uma solução alternativa efetiva para os crimes de pequeno e médio potencial ofensivo, praticados sem violência ou grave ameaça às pessoas e que uma vez cumpridas as obrigações pactuadas extingue-se a punibilidade.
Apesar disso, o ANPP não é suficiente para a solução de todos os problemas da Justiça Penal, nem é a sua pretensão, contudo, é inegável que com a redução das ações criminais e diminuição da carga de trabalho do Ministério Público e do Poder Judiciário, estes poderão se dedicar com mais tempo, recursos humanos e financeiros na solução dos crimes mais graves.
Todavia, com a aplicação do instituto surgiram divergências sobre o marco temporal limite para o seu oferecimento ao imputado, nos crimes cometidos antes da entrada em vigência da lei 13.964/2019. Desse modo, surgiram várias teses, com diferentes limitações temporais, destacando-se: i) até o recebimento da denúncia; ii) até a sentença condenatória transitada em julgado; e, iii) a qualquer tempo, mesmo após o trânsito em julgado.
No decorrer da pesquisa a partir da análise do princípio da retroatividade penal benéfica, foram apresentados posicionamentos notadamente os favoráveis à retroatividade penal benéfica mesmo após o trânsito em julgado, por ser a tese que se apresenta em maior conformidade com o texto constitucional.
Quanto a jurisprudência, diversos julgados foram analisados, sendo constatado que apesar do posicionamento da retroatividade do ANPP até o recebimento da denúncia, há decisões que reconhecem a retroatividade aos processos que transitaram em julgado.
Destacou-se, também, que o Ministro Gilmar Mendes afetou o HC 185.913/DF ao Plenário do STF, para fins de “abstrativização” do tema em estudo, conforme a sistemática da Repercussão geral, com a finalidade de resolver a celeuma, tendo como questões a serem decididas a possibilidade de oferecimento do ANPP aos processos em curso, quando da entrada em vigência da Lei 13.964/19, e a possibilidade de sua aplicação retroativa em benefício do imputado (BETTA, 2022).
O Ministro Gilmar Mendes já adiantou o seu voto tendo apresentado a seguinte tese: “"É cabível o acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento (ainda não transitados em julgado) quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até́ aquele momento”, ainda, conforme o Ministro, cabe ao Ministério Público se manifestar apresentando razões motivadas sobre a possibilidade do ANPP, tendo como base os requisitos constantes na legislação, sendo possível o controle nos termos do artigo 28-A,§ 14, do CPP (MENDES, 2022).
Portanto, apesar da tese ser um avanço em relação ao entendimento anteriormente firmado pelo STF, o Ministro firmou como marco limitativo o trânsito em julgado.
Desse modo, enquanto a questão não for resolvida de maneira definitiva pelo STF no julgamento do HC 185.913/DF, permanecerá a insegurança na prática diária de formulação e celebração do ANPP, persistindo violação da isonomia, uma vez que indivíduos que respondem processos idênticos não terão a mesma oportunidade de celebrar o acordo (MEDEIROS, 2022).
Conforme analisado, a superação da regra constitucional da retroatividade penal benéfica só poderia ser admitida se existem razões constitucionais suficientemente fortes para tanto (PELUSO, 2013, p. 236).
Contudo, esse não parece ser o caso. Analisando as justificativas apresentadas em algumas decisões do STF apresentadas no presente trabalho, percebe-se que não aparentam ter embasamento constitucional, tendo base em premissas como: i) o objetivo da lei que previu o ANPP não é o de incidir nos processos em cursos, mas evitar o seu início, ii) aplicar o ANPP para os processos em curso ou com trânsito em julgado acarretaria maior carga de trabalho ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, que teriam que reanalisar diversos processos para avaliar o cabimento do ANPP.
Essas justificativas, com base na pesquisa realizada, não parecem prevalecer a luz do princípio constitucional da retroatividade penal benéfica, principalmente, porque dependendo do entendimento adotado, o imputado sofrerá o processo penal e suas consequências, ou poderá ter a oportunidade de celebrar o ANPP, cumpri-lo, ter extinta a punibilidade e, como consequência, continuar primário para todos os efeitos legais.
A justificativa de que permitir a retroatividade plena do ANPP causaria um colapso no sistema criminal não aparenta estar em conformidade com a Constituição, uma vez que se contrapõe a direitos e garantias fundamentais, como a retroatividade penal benéfica e tratamento igualitário, dando primazia a questões procedimentais e burocráticas em prejuízo ao cidadão (BETTA, 2022).
É grande a quantidade de processos em curso e que seriam objeto de formulação de ANPP, contudo, isso não deve ser utilizado como justificativa para o não oferecimento do acordo. De modo contrário, o oferecimento do ANPP trará maior economicidade e eficiência, uma vez que evita a continuidade de processos em curso, possíveis recursos e execuções. Portanto, é ilegítimo negar a aplicação de um direito expresso na Constituição Federal, sem justificativa de ordem também constitucional (BETTA, 2022).
Ressalta-se, ainda, que não seriam todos os casos em que caberia a discussão acerca da retroatividade do ANPP, mas somente aqueles em que foi negado sob a justificativa da retroatividade. Portanto, nos casos em que o Ministério Público negou a aplicação do ANPP por não vislumbrar ser suficiente para reprovação e prevenção do crime, ou por outra justificativa legal, não seria cabível a reanálise.
Outrossim, mesmo que se o reconhecimento da retroatividade plena do ANPP tenha por consequência um colapso do sistema criminal, isso não deve ser utilizado como justificativa para o cerceamento de um direito constitucional. Caberia ao Poder Público promover meios para a sua concretização, uma vez que não seria uma justificativa constitucional para a não aplicação, mas meramente uma questão burocrática.
Por fim, têm-se que no julgamento do HC 185.913/DF, sob o regime de Repercussão Geral, o STF pode pacificar a questão e colocar um fim a celeuma que surgiu com a aplicação da Lei 13.964/2019, podendo ir além do proposto pelo Ministro Gilmar Mendes (retroatividade penal benéfica até o trânsito em julgado) e seguindo o entendimento apresentado em julgados pelos Ministros Edson Fachin e Nunes Marques, firmados na interpretação Conforme a Constituição, determinar a “Aplicação da retroatividade da lei penal benéfica aos casos anteriores à vigência da Lei 13.964/2019, mesmo havendo o recebimento da denúncia ou decisão condenatória definitiva com trânsito em julgado, com fulcro no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal c/c o artigo 2º, parágrafo único do Código Penal”.
REFERÊNCIAS FINAIS
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Graduando em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Matheus Fernandes de. A retroatividade do acordo de não persecução penal e o trânsito em julgado como marco temporal firmado pelo Supremo Tribunal Federal à luz do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 nov 2023, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63753/a-retroatividade-do-acordo-de-no-persecuo-penal-e-o-trnsito-em-julgado-como-marco-temporal-firmado-pelo-supremo-tribunal-federal-luz-do-princpio-da-retroatividade-da-lei-penal-mais-benfica. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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