ALEXANDRE YURI KIATAQUI
(orientador)
RESUMO: Este estudo aborda as questões das problemáticas enfrentadas por mulheres que são vítimas de crimes sexuais antes e ao longo do processo criminal, principalmente quanto à revitimização, que se refere à experiência em que as vítimas são submetidas a um tratamento que as faz sentir novamente vitimizadas, seja por parte das instituições judiciais, da mídia ou mesmo de profissionais da saúde. O objetivo foi analisar os fatores que contribuem para este fenômeno e destacar a importância de abordagens mais sensíveis e empáticas por parte das autoridades e profissionais envolvidos. De forma conclusiva a revitimização da mulher vítima de crimes sexuais durante o processo criminal é um problema significativo que exige uma abordagem multifacetada. A promoção de políticas e práticas que priorizem o bem-estar das vítimas, protegendo-as de experiências revitimizantes, é crucial para garantir que o sistema de justiça criminal cumpra sua função de forma justa e compassiva. Este estudo lança luz sobre essa questão e oferece recomendações iniciais para melhorar a experiência das vítimas no sistema legal e social. O estudo foi desenvolvido através de revisão da literatura.
Palavras-chave: Mulher. Violência. Crime Sexual. Revitimização.
ABSTRACT: This study addresses the issues faced by women who are victims of sexual crimes before and throughout the criminal process, mainly regarding revictimization, which refers to the experience in which victims are subjected to treatment that makes them feel victimized again, whether by judicial institutions, the media or even health professionals. The objective was to analyze the factors that contribute to this phenomenon and highlight the importance of more sensitive and empathetic approaches on the part of the authorities and professionals involved. Conclusively, the revictimization of female victims of sexual crimes during the criminal process is a significant problem that requires a multifaceted approach. Promoting policies and practices that prioritize the well-being of victims, protecting them from revictimizing experiences, is crucial to ensuring that the criminal justice system fulfills its function fairly and compassionately. This study sheds light on this issue and offers initial recommendations to improve victims' experience in the legal and social system. The study was developed through a literature review.
Keywords: Woman. Violence. Sexual Crime. Revictimization.
Este estudo tem como objetivo explorar os diferentes problemas e obstáculos enfrentados pelas mulheres vítimas de violência sexual, principalmente a revitimização a que são submetidas durante o processo criminal, o impacto emocional e psicológico dessas
experiências adicionais de trauma, bem como as barreiras e desafios que as sobreviventes enfrentam para buscar justiça e obter reparação.
A revitimização da mulher vítima de crimes sexuais durante o processo criminal é um fenômeno preocupante que ocorre com uma frequência alarmante em diversos sistemas judiciais ao redor do mundo. Esse processo, que deveria ser uma busca por justiça e reparação, muitas vezes se torna um segundo trauma para as sobreviventes, causando danos emocionais e psicológicos adicionais e muitas vezes, irreversíveis.
Quando uma mulher decide denunciar um crime sexual e buscar justiça por meio do sistema judicial, espera-se que seja tratada com respeito, dignidade e empatia, no entanto, a realidade muitas vezes é bem diferente. Durante o processo criminal, as vítimas são frequentemente submetidas a uma série de procedimentos que podem retraumatizá-las, comprometendo sua saúde mental e minando sua confiança no sistema de justiça.
Deve-se reconhecer a necessidade de um sistema jurídico que trate as vítimas de crimes sexuais com empatia e respeito, evitando a revitimização e proporcionando-lhes um ambiente seguro e acolhedor para buscar justiça. Através de esforços contínuos para conscientizar, capacitar e reformar o sistema, pode-se garantir que as mulheres sobreviventes de crimes sexuais sejam tratadas com a dignidade e a eficiência jurídica que merecem.
2 A COMPLEXIDADE DO FENÔMENO VIOLÊNCIA SEXUAL
A Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, trouxe nova redação ao Código Penal Brasileiro e tipifica, em seu Título IV, Capítulo I, os crimes contra a liberdade sexual, quais sejam, o estupro (art. 213), violação sexual mediante fraude (art. 215), importunação sexual (art. 215-A) e assédio sexual (art. 216-A).
A maioria dos casos de violência sexual ocorre na faixa de idade reprodutiva da mulher, em que o risco de gravidez varia de 0,5 a 5%, considerando fatores como ciclo menstrual ou se a violência é continuada ou isolada. Esta gravidez pode ser evitada com a utilização de anticoncepcionais de emergência (AE), que são compostos hormonais concentrados de eficácia elevada que podem evitar três a cada quatro gestações. Sua prescrição e garantia ao acesso às vítimas são de responsabilidade dos gestores de saúde.
No Brasil, a primeira aproximação da área de saúde com a violência contra mulher ocorreu em 1989 e 1990, com o primeiro serviço de saúde que praticava o aborto nas situações de risco de vida e estupro estabelecidos na Constituição brasileira nos anos quarenta. Em 2002,
havia 245 serviços de saúde capacitados em atendimento a mulheres em situação de violência sexual e 39 hospitais ofertando o aborto legal.
De acordo com o art. 128, inciso II do Código Penal, o aborto de gravidez resultante de estupro é uma prática legal mediante o consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Esta hipótese parte do pressuposto lógico de que a vítima, que teve sua dignidade e liberdade sexual violada, não seja obrigada a conviver com o fruto desse crime. A referida lei penal não estabelece necessidade de autorização judicial ou que se tenha um processo criminal instaurado para que seja posta a termo a gestação.
A PNAISM (Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher) incorpora direitos sexuais e reprodutivos, tornando oficial a atuação do setor da saúde frente ao problema e tem como um de seus objetivos específicos a promoção da atenção a mulheres em situação de violência sexual. Contudo, os próprios profissionais de saúde sentem impotência para lidar com a complexidade do problema. É preciso orientação técnica e parceria com outros serviços para discutir a questão no cotidiano da saúde, uma vez que esta impotência do profissional é uma somatória de fatores relacionados à falta de capacitação com o medo como elemento paralisante que se relaciona com o poder dos homens sobre as mulheres, muitas vezes respaldado por instituições como a família e igreja, conferindo subalternidade à condição feminina (SOUZA, 2013).
A Lei Federal nº 10.778/2003 estabelece a notificação compulsória dos casos de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados, incluindo a de cunho sexual, que requer o acompanhamento do poder público e dos setores sociais e instâncias públicas e jurídicas. A Organização Mundial de Saúde (OMS) também traz um viés para combater a violência sexual através da perspectiva da saúde pública. Com isso, vários fatores devem caminhar juntos e de forma equilibrada para que a mulher tenha seus direitos assegurados. Educação, saúde, assistência social e a justiça criminal devem trabalhar de forma conjunta, deste modo, a mulher e qualquer outra pessoa vítima de violência sexual terão o atendimento adequado nos hospitais, educação e informação corretas para saberem como lidar com tal situação, a quem devem recorrer, quais são os seus direitos e deveres. Além disso, terão o amparo social e psicológico adequados, para que aprendam a superar o trauma vivido. E, por fim, através da justiça criminal, que o agressor seja punido de acordo com a lei e que cumpra a pena necessária que esse crime exige.
A OMS afirma que os abusos sofridos por mulheres deixam marcas e traumas que podem durar uma vida toda, e destaca: “gravidez não planejada, aborto inseguro,disfunção sexual, infecções sexualmente transmissíveis, fístula traumática, depressão, transtorno por estresse pós-traumático, ansiedade, dificuldade para dormir, sintomas somáticos, comportamento suicida, transtorno de pânico”. É importante ressaltar que muitas dessas sequelas podem ocasionar a morte da vítima.
A expressão “cultura do estupro” ganhou força a partir da década de 1970, momento em que o feminismo ganhou mais força no Brasil para questionar comportamentos, velados ou não, que expõem a mulher à violência sexual. Tais condutas, que até então eram consideradas “normais” dentro da nossa cultura, passaram a ser inquiridas, para que o feminismo ganhasse mais popularidade. É importante mencionar que, quando se fala em estupro, imagina-se um homem de aparência intimidadora, andando em um beco deserto, esperando para abordar uma vítima. Entretanto, os dados mostram o contrário. Em um país em que cidadãs são violentadas e colocadas como um objeto, um estupro é lavrado a cada oito minutos, 85,7% das vítimas são mulheres e quase 84% dos abusadores são conhecidos das vítimas, sejam eles amigos ou membros da própria família, ou seja, são pessoas “de confiança”. Isso mostra como a mulher é colocada em uma condição de objeto, em que sua significância é puramente resumida em satisfazer às necessidades e prazeres do homem, e o seu consentimento não tem importância alguma, ao passo que o agressor sente uma necessidade absurda de dominar a vítima, de ter o poder.
Segundo a rede nacional feminista de saúde e direitos reprodutivos, a violência sexual é considerada doméstica se cometida por companheiro íntimo, e consiste na falsa ideia de obrigação em haver relação sexual e se dá mediante o uso de força, ameaças e mecanismos que anulem e limitem a vontade da mulher.
2.2 A culpabilização da vítima
A partir desses dados, é cabível falar em culpabilização da vítima, já que é muito comum julgar a conduta da mulher para justificar tamanha violência, seja pelo fato de estar alcoolizada e “dar condição”, seja pela roupa que veste, pela maquiagem que usa pela maneira como fala, dentre outros argumentos. É notório que existe uma cultura que condena certas condutas femininas, e, se tais comportamentos estiverem “fora do padrão”, são utilizados como justificativa para validar e explicar um abuso sexual. Sobre a violência contra a mulher, é importante destacar que a violação sexual é um dos delitos mais gravosos, fato este comprovado pelo rol dos crimes hediondos, no qual o estupro está incluso.
Outro fator importante e recorrente nesse crime contra a liberdade sexual é a coerção, isto é, o ato de reprimir a mulher, através de força física ou ameaça, é comum entre os agressores. Com isso, percebe-se um padrão de comportamento. Além disso, é válido salientar que a violência sexual não se resume meramente à penetração indesejada. Carícias forçadas, toques nos órgãos sexuais sem o seu consentimento, prostituição involuntária, ser obrigada à prática do sexo oral, ser forçada a participar ou assistir a alguma cena pornográfica também configuram violência sexual. Basta que haja a ausência de consentimento por parte da vítima para que o crime de estupro seja consumado.
Além de desrespeitar a dignidade sexual da mulher, este crime denota uma enorme necessidade de domínio. Com isso, Rossi (2015, p. 21 apud Kolodny, Masters e Johnson, 1982, p. 430-431):
Constatamos que ou a força ou a ira dominam, e que o estupro, em vez de ser principalmente uma expressão de desejo sexual, constitui, de fato, o uso da sexualidade para expressar questões de poder e ira. O estupro, então, é um ato pseudossexual, um padrão de comportamento sexual que se ocupa muito mais com o status, agressão, controle e domínio do que com o prazer sexual ou a satisfação sexual. Ele é comportamento sexual a serviços de necessidades não sexuais.
Ainda sobre o estupro, Manfrao afirma (2009, p. 11):
O estupro era considerado ato execrável, entretanto, a ele eram atribuídos diferentes graus de gravidade: “o erro do acusado é agravado pela fraqueza ou 'inocência' da vítima. A agressão contra uma jovem impúbere é mais condenável do que o de uma mulher adulta”. A repressão, então, variava de acordo com a qualidade da vítima. Quando cometido contra uma virgem, por exemplo, a responsabilidade do agressor era muito mais pesada, pois o ataque à virgindade comprometia a honra e a posição das famílias, isso porque era considerado uma ofensa, não contra a mulher vítima, mas sim contra seu tutor, geralmente pai ou marido. Contudo, não era só a virgindade da vítima que aumentava a gravidade do crime, a classe social a que pertenciam a vítima e o agressor também tinha esse poder. Dessa forma, a violência perpetrada contra uma escrava ou doméstica era considerada menos grave do que a cometida contra uma nobre, assim como a pobreza do agressor agrava seu gesto.
A partir desses dados, é cabível falar em culpabilização da vítima, já que é muito comum julgar a conduta da mulher para justificar tamanha violência, seja pelo fato de estar alcoolizada e “dar condição”, seja pela roupa que veste, pela maquiagem que usa pela maneira como fala, dentre outros argumentos. É notório que existe uma cultura que condena certas condutas femininas, e, se tais comportamentos estiverem “fora do padrão”, são utilizados como justificativa para validar e explicar um abuso sexual. Sobre a violência contra a mulher, é importante destacar que a violação sexual é um dos delitos mais gravosos, fato este comprovado pelo rol dos crimes hediondos, no qual o estupro está incluso.
Outro fator importante e recorrente nesse crime contra a liberdade sexual é a coerção, isto é, o ato de reprimir a mulher, através de força física ou ameaça, é comum entre os agressores. Com isso, percebe-se um padrão de comportamento. Além disso, é válido salientar
que a violência sexual não se resume meramente à penetração indesejada. Carícias forçadas, toques nos órgãos sexuais sem o seu consentimento, prostituição involuntária, ser obrigada à prática do sexo oral, ser forçada a participar ou assistir a alguma cena pornográfica também configuram violência sexual. Basta que haja a ausência de consentimento por parte da vítima para que o crime de estupro seja consumado.
Além de desrespeitar a dignidade sexual da mulher, este crime denota uma enorme necessidade de domínio. Com isso, Rossi (2015, p. 21 apud Kolodny, Masters e Johnson, 1982, p. 430-431)
Com isso, segundo a ONU Mulheres:
Conectando Mulheres, Defendendo Direitos”, um projeto de 40 meses, que vem sendo implementado pela ONU Mulheres com o apoio da União Europeia até o fim de 2022, apoiará as mulheres defensoras de direitos humanos no Brasil em seus esforços para promover e sustentar suas estratégias de prevenção e resposta a violações de direitos humanos e violências contra mulheres e meninas. Espera-se que a ação contribua para que as mulheres, em toda a sua diversidade, exerçam seu direito a defender direitos livres de violências e ameaças. A proposta, elaborada com as contribuições de organizações parceiras, visa fortalecer a solidariedade, as habilidades e as estratégias de comunicação entre defensoras de direitos humanos para o alerta precoce e autoproteção. Trata-se de um projeto implementado em diálogo com o Alto Comissariado de Direitos Humanos e alinhado com as estratégias de diferentes áreas temáticas na ONU Mulheres, tais como Liderança e Participação Política e a Agenda de Mulheres, Paz e Segurança.
2.3 A subnotificação dos crimes de estupro
Apesar dessas políticas e leis, muitas mulheres enfrentam dificuldades ao denunciar abusos sofridos. Alguns dos desafios comuns incluem o medo de retaliação por parte do agressor, a dependência financeira e emocional, o estigma social, a falta de apoio da família e da comunidade, a descrença nas instituições, a revitimização durante o processo legal por ter que contar a história vivida várias vezes e trazer à tona lembranças traumáticas, falta de informação e orientação, medo de sujar a própria imagem ou o nome da família, medo dos julgamentos de uma forma geral.
A desconfiança em relação às instituições encarregadas de lidar com a violência contra as mulheres, como a polícia e o sistema de justiça, é uma barreira significativa que pode fazer com que as vítimas evitem denunciar, acreditando que não receberão o apoio necessário ou que seus casos não serão tratados adequadamente.
O processo legal em si pode ser uma fonte de revitimização para as mulheres, a forma como são questionadas, o tratamento insensível por parte das autoridades, a exposição pública de informações íntimas e os longos prazos processuais podem causar traumas adicionais, levando muitas vítimas a desistirem da denúncia. Como consequência, o medo acarreta em outros sentimentos e atitudes das mulheres decorrentes da violência vivenciada: o silêncio. Este é um dos causadores da subnotificação dos dados em relação às denúncias de abuso sexual ou qualquer outro tipo de violência.
É válido destacar também que as medidas protetivas e de caráter emergencial às mulheres não são eficientes como deveriam. Atrelado a isso, a omissão da polícia e do Estado em geral, a inércia diante de um comportamento assustado de uma mulher, vítima de abuso, ao chegar em uma delegacia pedindo ajuda, tudo isso corrobora com a impunidade. Muitas
mulheres têm medo de denunciar o seu agressor, mas quando decidem fazê-lo, inúmeras são as vezes em que são surpreendidas com uma postura desdenhosa por parte do Estado, como se ela estivesse mentindo ou exagerando o fato narrado.
Evidencia-se a necessidade da melhor aplicabilidade das políticas públicas de proteção à mulher, a funcionalidade da Administração Pública em relação à atuação da polícia frente aos casos de violência, não só contra a mulher, mas de modo geral, que ocorre todos os dias.
Para enfrentar esse grave problema, é essencial que o Estado adote medidas abrangentes e efetivas. Isso inclui investimentos em serviços de apoio às vítimas, como linhas telefônicas de emergência e abrigos, bem como a disponibilização de recursos para o fortalecimento das delegacias especializadas no atendimento à mulher.
É necessário promover campanhas de conscientização e educação para combater a violência de gênero e desconstruir estereótipos prejudiciais, essas campanhas devem visar tanto às mulheres, encorajando-as a denunciar e buscar ajuda, quanto à sociedade em geral, para promover uma cultura de respeito e igualdade, é importante ressaltar que a luta contra a violência de gênero é responsabilidade de toda a sociedade. Familiares, amigos e a comunidade como um todo devem estar atentos aos sinais de abuso e oferecer apoio e solidariedade às vítimas.
A revitimização refere-se ao fenômeno em que uma vítima de crime é submetida a situações que retraumatizam ou causam danos adicionais durante o processo legal. Isso pode ocorrer de várias maneiras, como questionamentos agressivos, repetidos, desrespeitosos ou invasivos, exposição pública excessiva de informações íntimas, falta de empatia e apoio adequado por parte dos profissionais envolvidos ou a perpetuação de estereótipos e preconceitos.
O caso Mariana Ferrer teve grande repercussão a partir de 2018, quando a jovem denunciou e alegou ter sido dopada e estuprada por André Camargo Aranha, jovem empresário, em Santa Catarina, em um beach club. Além dos fatos narrados que, por si só, já são aterrorizantes, a audiência da jovem, que ocorreu de forma virtual, veio a público e ficou notoriamente e de forma brutal, explícita a violência pela qual Mariana Ferrer passou, à medida que palavras e ofensas eram destinadas a ela, e o juiz, na posição de imparcialidade que possuía, ou deveria possuir, ficou inerte; deixou que o advogado do réu agisse de forma agressiva, indutiva e ofensiva.
No caso de Mariana Ferrer, houve grande indignação e debate em relação à forma como ela foi tratada durante o julgamento. Durante a audiência, a vítima foi submetida a perguntas humilhantes e que buscavam culpá-la pela violência que sofreu; imagens íntimas foram exibidas sem necessidade, descontextualizadas, no tribunal, causando constrangimento e revitimização. Este fato trouxe à tona a discussão sobre a forma como as vítimas de violência sexual são tratadas no sistema de justiça brasileiro e destacou a necessidade de garantir a proteção e o respeito aos direitos dessas vítimas durante todo o processo legal. O debate também enfatizou a importância da sensibilização dos profissionais envolvidos no sistema judiciário, bem como a implementação de medidas e protocolos para evitar a revitimização, a hostilização, o constrangimento, a sensação de falta de amparo.
Com isso, a Lei nº 14.245/2021, que leva o nome da vítima Mariana Ferrer, altera o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 344 alterando o parágrafo único, e o Código de Processo Penal Brasileiro, no artigo 400-A e 474-A. Assim, tem-se:
Art. 344. Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único. A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) até a metade se o processo envolver crime contra a dignidade sexual.
Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
3.2.1. - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
3.2.2. - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.
Art. 474-A. Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.
Diante disso, é importante lembrar que, no caso de Mariana Ferrer, ela teve suas fotos adulteradas pelo advogado de defesa do réu, que o fez com a finalidade de manchar a imagem da vítima, para que a sua palavra fosse descredibilizada, visando convencer que, de alguma forma, a mesma viabilizou ou mereceu a violência sofrida, tornando assim, o processo mais favorável ao réu. É nítido que o abuso não ocorre somente quando a mulher tem o corpo violentado, a sua intimidade invadida; ele ocorre repetidas vezes, ainda depois do abuso sexual vivenciado, quando a mulher tenta provar a sua inocência e fazer valer os seus direitos e garantias fundamentais. Logo, pode-se afirmar que a violência se perpetua em suas variadas formas e diferentes circunstâncias para a mesma vítima.
O estudo sobre a revitimização da mulher vítima de crimes sexuais durante o processo criminal revelou uma realidade preocupante e complexa que exige atenção imediata e ação por parte das autoridades, profissionais e da sociedade como um todo.
As descobertas destacam a presença substancial da revitimização ao longo do processo legal, expondo as vítimas a níveis adicionais de sofrimento e trauma. A insensibilidade por parte de alguns atores do sistema de justiça criminal, a falta de apoio adequado e a exposição indesejada nos meios de comunicação contribuem significativamente para a perpetuação desse fenômeno prejudicial.
A revitimização não apenas viola os direitos e a dignidade das vítimas, mas também mina a eficácia do sistema de justiça criminal em cumprir seu propósito de oferecer justiça e proteção, o estudo ressalta a importância de uma mudança de paradigma, com a adoção de abordagens mais sensíveis, empáticas e centradas na vítima por parte de todos os envolvidos no processo criminal, desde a polícia até os promotores, juízes e advogados.
Este estudo abordou as inúmeras formas de violência que as mulheres estão sujeitas diariamente, inclusive em ambiente doméstico, que são práticas abomináveis. A violência contra as mulheres é uma realidade alarmante e persistente no Brasil e em muitos países ao redor do mundo, os abusos sofridos têm consequências devastadoras, em termos físicos e psicológicos.
Nessa perspectiva, o presente trabalho buscou explorar as consequências jurídicas decorrentes dos abusos sofridos por mulheres no Brasil, bem como o papel do Estado nas políticas públicas de proteção e combate a essa violência. Ficou claro ao longo do estudo que o sistema jurídico brasileiro tem avançado na tipificação e punição dos crimes de violência contra as mulheres, por meio de leis específicas, na propagação de seus direitos e acesso à orientação e informação. Contudo, ainda há um longo caminho a percorrer para garantir a plena efetividade dessas medidas, as leis existentes ainda não são eficientes como mostram as normas escritas, na teoria.
Outro fator importante é que os dados em relação às denúncias são subnotificados, uma vez que muitas mulheres ainda têm medo de denunciar o agressor/abusador; têm receio de que sua palavra caia em descrédito, receio de serem hostilizadas ao serem atendidas nas redes hospitalares ou na delegacia, ou até mesmo no IML, ao fazerem o exame de corpo de delito, receio de serem culpadas por terem sido violentadas, com a justificativa de que de alguma forma viabilizaram, deram ensejo ao estupro. Sendo assim, são inúmeros os receios das mulheres ao denunciarem o abuso vivenciado.
Destacam-se, ainda, os abalos e sequelas psicológicas que ficam para o resto da vida; marcas que são, muitas vezes, difíceis de serem apagadas; mulheres que têm a sua saúde física e/ou mental comprometidas por tempo indeterminado, decorrentes da grave violência que sofreram.
Como limitações desse estudo, é importante ressaltar a cultura do estupro e do machismo, como características fortes do patriarcado, que ainda estão enraizadas na sociedade, de forma que a mulher é equiparada a um objeto, que pode ser usada quando cabível e desejado. Além disso, os questionamentos quanto ao feminismo, como se este fosse uma militância em vão que reduz os esforços contínuos por igualdade e proteção para as mulheres, como se tudo o que foi conquistado até hoje, os espaços que alcançados, não fossem frutos de uma batalha árdua por independência e liberdade.
Por fim, é esperado que esta pesquisa traga uma visão mais empática em relação às mulheres, entendendo o contexto social que estão inseridas, considerando todo o seu histórico de submissão e violência para satisfazer o patriarcado, a necessidade de maior eficiência das leis que as protegem, a fim de que estas se sintam seguras e amparadas por um Estado que pense nas mulheres, que lhes garanta a sua dignidade e autonomia, que seus direitos sejam invioláveis e com isso, que a informação alcance mais pessoas, a fim de que o abuso e qualquer tipo de agressão à mulher seja coibido e cessado da sociedade.
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graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Jales (UNIJALES)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTINI, JULIANA. As problemáticas enfrentadas pela mulher vítima de crimes sexuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2023, 04:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63943/as-problemticas-enfrentadas-pela-mulher-vtima-de-crimes-sexuais. Acesso em: 22 nov 2024.
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