Resumo: Esse artigo pretende relacionar, de forma suscinta, o direito da criança de acesso à educação em creche e pré-escola, de hierarquia constitucional, com a saúde mental feminina. O texto parte de um apanhado feito sobre a previsão desse direito no ordenamento jurídico brasileiro, destacando-se a tramitação do Projeto de Lei nº 975/2023, que, dentre os seus objetivos, visa priorizar a disponibilização das vagas para matrículas disponíveis em creches públicas ou entidades equivalentes para crianças com mães que estejam matriculadas na rede pública de educação ou que comprovem vínculo empregatício. O objetivo é demonstrar que o direito sob enfoque, para além de ser da criança, alcança também às mães, a quem, culturalmente, tem sido atribuído o dever de cuidado e de gestão da educação, impactando assim na saúde mental e na autoestima das mulheres, bem como no seu ingresso e permanência no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens, chamando-se atenção, ainda, para a dimensão estrutural e política do problema em questão.
Palavras-chave: Direito à Creche. Direito à educação infantil. Saúde Mental Feminina.
De acordo com a Constituição Federal, é dever do Estado efetivar o direito à educação da criança de 0 a 6 anos mediante a garantia de atendimento em creches e pré-escolas (artigo 208, inciso IV). A bem da sua hierarquia constitucional, o direito à creche possui previsão legal em outros dispositivos positivados no ordenamento jurídico a fim de confirmar e efetivar a importância de sua observância em diversas esferas.
Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 54, repete o texto constitucional, bem como o faz a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBE), que, além disso, elenca a frequência à creche, ou a entidades equivalentes, como etapa da educação infantil, cuja finalidade é proporcionar o desenvolvimento integral da criança, sob os aspectos físico, psicológico, intelectual e social, de forma complementar à atuação da família e da comunidade (artigos 29 e 30).
Bem assim, a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) garante à mãe trabalhadora o direito a berçário ou creche nos locais de trabalho, sempre que a empresa tiver trinta ou mais mulheres trabalhando (artigo 400).
Beatriz Rangel tenta matricular a filha na zona sul da Capital. “Tem dois anos que fiz a matrícula na escolinha dela e até hoje não chamaram”, disse. “Agora estou separada, preciso trabalhar e preciso colocá-la na escolinha, porque senão, como vou me sustentar e sustentar ela?”, questiona.
A dona de casa Maria de Fátima Maciel quer voltar a trabalhar. Mas não tem com quem deixar a filha de um ano e oito meses. Na fila de espera por uma vaga na creche, ela ainda teria que aguardar bastante.
Também dona de casa por não poder sair para trabalhar, Jerdiélia Maciel espera há tempo por uma resposta do poder público para poder retornar ao mercado de trabalho.
Auxiliar de faturamento Viviane da Silva Santos, volta a trabalhar na semana que vem. A pressa fez com que ela buscasse a judicialização para acelerar o processo. [1]
As passagens acima citadas foram retiradas de uma matéria veiculada no site da Jovem Pan acerca da atuação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo no ajuizamento de ações judiciais para garantir às crianças e aos seus pais, assistidos pela instituição, o exercício do direito à creche.
A despeito das realidades diversas que devem experimentar Beatriz, Maria de Fátima e Jerdélia, há um ponto de convergência na história das três mulheres: como acessar o mercado de trabalho e prover o sustento da casa e dos filhos se não há quem olhe por eles enquanto elas exercem essa função?
Recentemente, em março de 2023, foi protocolado no âmbito do poder legislativo o Projeto de Lei nº 975/2023, que traz em seu bojo, dentre os critérios de priorização das vagas para matrículas disponíveis em creches públicas ou entidades equivalentes o fato de estar a mãe matriculada na rede pública de educação, ou, ainda, de que essa possua comprovado vínculo empregatício.[2]
O projeto traz, dentre os seus fundamentos, as seguintes justificativas:
A creche representa um fundamental aspecto do desenvolvimento infantil, possibilitando às crianças receberem estímulos educacionais e sociais que produzirão impactos ao longo de toda a vida, além de consistir importante vetor para as mães e o pais permanecerem ativos no mercado de trabalho, enquanto seus filhos recebem assistência educacional. A insuficiente oferta de creches públicas afeta as crianças das famílias de renda mais baixa, notadamente as mães trabalhadoras. Quando se expande o atendimento em creches e pré-escolas de qualidade, não se está somente alcançando a meta de um plano de educação, mas incluindo crianças na trajetória educacional, ampliando seu universo de conhecimento e de relações, assegurando-lhes uma base sólida de aprendizagem. O acesso à educação infantil é extremamente relevante para as famílias monoparentais, considerando que as crianças desses lares podem ficar desassistidas se não houver disponibilidade de vaga. Outrossim, a vaga em creche é fundamental para viabilizar a manutenção dos responsáveis pela criança no mercado de trabalho, garantindo a oportunidade de se manterem economicamente ativos.[3] (grifamos)
A relação entre o direito à creche e a saúde mental das mulheres é uma questão importante, pois as responsabilidades relacionadas ao cuidado infantil têm um impacto significativo na vida das mães.
A definição do papel de gênero, sob uma perspectiva binária – homem e mulher, ou feminino e masculino – é conceito interacional que, para além das diferenças genéticas, objetifica uma construção cultural, de modo que os papeis atribuídos ao homem e à mulher são conceitos dinâmicos que oscilam no tempo e no espaço.
Para Valeska Zanello, professora, escritora e psicanalista, o conceito de gênero é entendido de forma relacional: implica sempre relações de poder ou lugares de maior ou menor prestígio e empoderamento[4].
Nesse sentido, ao ter o feminino atribuído a si as funções de cuidar, educar e tantas outras ligadas ao âmbito doméstico e afetivo, dentro de um contexto histórico e cultural patriarcal, há uma valoração de menor importância a tais tarefas que, sob uma perspectiva estrutural, alcança a formação psíquica de homes e mulheres, a princípio, independentemente do poder aquisitivo, sendo assim uma realidade que perpassa – ainda que sob diferentes roupagens – por todas as classes sociais.
No ensaio denominado “‘Essa mulher não sai daqui da unidade’: práticas de descuidado e invisibilizações na estratégia de saúde da família”[5], as pesquisadoras Ionara Viera Moura Rabelo e Maria de Fátima Araújo se propuseram a problematizar o estudo da saúde mental sob uma perspectiva de gênero, para além da forma biologizante e dos critérios de classe, deixando de lado, ainda, o conceito de patriarcado como explicação da dominação masculina versus opressão e subordinação feminina.
As autoras do estudo supramencionado, alertam para o fato de que as construções socioculturais que atribuem ao feminino o dever do cuidado de si e de seus familiares, têm contribuído para que os profissionais de saúde negligenciem a sobrecarga atribuída por essa realidade, para além de viabilizar a naturalização da medicalização do corpo feminino, consubstanciada pela violência, pelo uso de álcool e de drogas e pela dependência de ansiolíticos. As relações saúde-doença transversalizadas pelos problemas sociais têm sido diagnosticadas e medicadas de forma hegemônica, sem colocar em questão a existência-sofrimento dessas pessoas.[6]
Nesse sentindo, enriquecedor se faz transcrever as conclusões veiculadas no artigo:
O papel de cuidado, juntamente à sobrecarga que traz para as mulheres, e ficar em casa sem acesso ao lazer, foram os pontos debatidos pelas equipes como exemplo das relações entre gênero e sofrimento psíquico. Foi possível problematizar como a prescrição de BZD[7], nestes casos, prolonga o sofrimento, ao invés de ajudá-las, isto é, legitima apenas a continuidade de uma relação de iniquidade e sofrimento. Por outro lado, as equipes disseram que a mulher não chega à unidade dizendo que não tem lazer, na verdade, elas queixam de muitas dores, nervosismo, insônia e, que estão sempre chorosas.[8]
Nesse sentido, é importante registrar que, para além de ser um direito da criança à educação, o direito à creche assume significativa importância para a saúde mental da mulher, a quem culturalmente tem sido atribuído o dever de cuidado dos filhos e da família, ressaltando-se aqui que, para além de funcionarem, em muitos lares, como arrimo de família, as mulheres somam as obrigações atinentes ao trabalho realizado fora da sua residência aos deveres domésticos.
O acesso à creche ou demais instituições congêneres de qualidade, que permitam que as mães entreguem os seus filhos em segurança e com a certeza de que serão bem atendidos, reduz sobre esse grupo o estresse e a carga mental associada ao cuidado constante, o que promove o empoderamento feminino, permitindo que as mulheres participem de maneira plena da força de trabalho, em igualdade de condições com os homens a quem, a despeito de também compartilharem o poder familiar, não foi atribuído dever de gerir psiquicamente o funcionamento da família, proporcionando independência e autonomia financeira.
É, assim, importante observar que o esgotamento psíquico que é experimentado pela mente feminina, a despeito de sentido no âmbito individual, se revela como resultado de um problema estrutural, cuja solução assume também uma perspectiva política.
Nesse sentido, o direito à creche desempenha um papel significativo na promoção da saúde mental das mulheres, ajudando-as a equilibrar suas responsabilidades familiares com suas necessidades pessoais e profissionais, reduzindo o estresse e promovendo a igualdade de gênero. Garantir o acesso a creches de qualidade é uma questão importante para o bem-estar das mulheres e, consequentemente, para a sociedade como um todo.
[1] Pais recorrem à Justiça para colocar filhos na creche; prédio da Defensoria já separa área para crianças. Disponível em: < https://jovempan.com.br/noticias/pais-recorrem-justica-para-colocar-filhos-na-creche-predio-da-defensoria-ja-separa-area-para-criancas.html > acesso em: novembro de 2023.
[2] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2240543&filename=PL%20975/2023> acesso em: novembro de 2023.
[3] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2240543&filename=PL%20975/2023> acesso em: novembro de 2023.
[4] ZANELLO, Valeska. A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações. Paraná. 1ª edição – Curitiba : Appris, 2022. p. 51.
[5] ZANELLO, Valeska; DE ANDRADE, Ana Paula Müller. Saúde mental e gênero: diálogos, práticas e interdisciplinaridade. Curitiba : Appris, 2014. p. 129-146.
[6] ZANELLO, Valeska; DE ANDRADE, Ana Paula Müller. Saúde mental e gênero: diálogos, práticas e interdisciplinaridade. Curitiba : Appris, 2014. p. 129-130.
[7] Benzodiazepínicos (BZD) são medicamentos hipnóticos e ansiolíticos.
[8] ZANELLO, Valeska; DE ANDRADE, Ana Paula Müller. Saúde mental e gênero: diálogos, práticas e interdisciplinaridade. Curitiba : Appris, 2014. p. 142-143.
Advogada, Formada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Pós graduada em Direito Penal pelo Instituto Damásio de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, natalia das águas costa de. O direito à creche e a saúde mental feminina Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2023, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63968/o-direito-creche-e-a-sade-mental-feminina. Acesso em: 22 nov 2024.
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