OSMAN NASSER ANTUNES AGUIAR[1]
(coautor)
RESUMO: O artigo em questão encontra-se estruturado em três capítulos e tem como objetivo abordar o surgimento da Sociologia do Direito enquanto ciência e ramo especializado da Sociologia Geral, seu conceito, objeto, evolução histórica e a visão do Direito sob a ótica dos precursores. O primeiro capítulo – A evolução histórica da Sociologia do Direito – relata a construção da Sociologia Jurídica como ciência propriamente dita, citando, preliminarmente, alguns artigos e debates acadêmicos que, embora envolvessem o futuro objeto da Sociologia Jurídica, ainda não eram tratados sob tal ótica, mas sim, sob o olhar de outras ciências. Analisa, ademais, a influência da Escola da Exegese que surgira na Revolução Francesa, os pensamentos dos precursores da Sociologia Geral, demonstrando a fonte da visão normativista e substantivista que prenominava na fase embrionária da ciência Sociologia Jurídica. Aborda, ainda, o trabalho desenvolvido por alguns precursores, tais como, Karl Marx e Émile Durkheim no campo da Sociologia Jurídica, seus pontos de convergência e de divergência. O segundo capítulo - As condições teóricas e sociais para o surgimento da Sociologia do Direito enquanto ciência - faz um paralelo entre as décadas que sucederam o período Pós-Segunda Guerra Mundial, quais sejam, as décadas de 50, 60 e 70, demonstrando que o momento econômico favorável presente nas décadas 50 e 60 serviu para proporcionar o ambiente ideal tanto para o surgimento de algumas condições teóricas como para as conjunturas sociais. Acerca de cada condição específica, o presente estudo inicia tratando do “Desenvolvimento da Sociologia das Organizações”, o qual, partindo da formação do pensamento social crítico de Max Weber, pesquisa as estruturas e a forma das organizações, além do conjunto das interações ocorridas em seu núcleo e do impacto delas no comportamento social dos indivíduos. A segunda condição teórica, denominada “Desenvolvimento da Ciência Política” trata do interesse nos tribunais como instituição de poder, as orientações políticas seguidas por seus membros e como suas decisões são influenciadas por tais convicções, bem como influenciam a sociedade. A terceira condição teórica, qual seja, o “Desenvolvimento da Antropologia do Direito ou Etnologia Jurídica”, versa sobre a evolução do seu objeto, porquanto, a priori, tinha como escopo o estudo das sociedades simples coloniais e, com a evolução dessas para países, teve que migrar seu foco para outras questões, até centralizar no exame das sociedades capitalistas, na observação das normas, processos e instituições como fontes estruturadoras dos comportamentos sociais, adquirindo, por fim, uma conotação criminal com os estudos de Cesare Lombroso. Sob o prisma das condições sociais, tem-se as “lutas sociais protagonizadas por grupos sociais de minorias” em busca de direitos sociais, que, impulsionados pelos ditames da antecessora Revolução Francesa, ampliaram o mosaico dos direitos conquistados e, consequentemente, desencadearam a segunda condição social denominada “A Crise da Administração da Justiça”. O terceiro capítulo - A Crise da Administração da Justiça - trata detidamente sobre a segunda condição social que contribuiu para o surgimento da Sociologia do Direito, traçando um paralelo evolutivo desde 1960, tendo em vista, sobretudo, as consequências advindas das conquistas adquiridas pela primeira condição social, quais sejam, as lutas sociais, até seu apogeu que ocorreu em 1970, quando a crise se tornou flagrantemente exposta com a recessão mundial instalada à época. Nesse aspecto, o estudo se debruça sobre a origem, apogeu e as consequências da referida recessão.
Palavras-chave: Sociologia do Direito. Ciência autônoma. Condições fáticas e teóricas. Crise da administração da justiça.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tecerá uma digressão histórica acerca da origem da Sociologia Jurídica enquanto ciência, cujo início remonta ao contexto do Pós-Segunda Guerra Mundial, face ao surgimento de algumas condições teóricas e sociais eclodidas naquele momento histórico, impulsionadas pelo movimento de lutas sociais difundido pela Revolução Francesa de 1789.
De fato, dentre as condições sociais que contribuíram para o surgimento da Sociologia Jurídica, destaca-se a crise na administração da justiça que eclodira na década de 1960, revelando a incapacidade do poder Judiciário ante a sua falta de estrutura para atender às demandas jurídicas de todos os cidadãos que buscavam satisfazer suas pretensões pela via judicial. Tal inaptidão restou potencializada pela recessão mundial que assolou todo o planeta na década de 1970, desencadeada pela recém criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo - OPEP.
Ao final do presente trabalho demonstrar-se-á como tais fatores contribuíram de forma decisiva para o surgimento e desenvolvimento da Sociologia Jurídica, nos exatos moldes científicos atualmente preconizados nos bancos acadêmicos das faculdades de Direito do Brasil e do mundo.
1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA SOCIOLOGIA DO DIREITO
De início, cumpre estabelecer a diferenciação da Sociologia Geral e da Sociologia Jurídica, podendo-se compreender a Sociologia Geral como o estudo científico da organização e do funcionamento das sociedades humanas, das relações sociais e das instituições. A origem da Sociologia Geral enquanto ciência remonta a Émile Durkheim, o qual, baseando-se nos estudos de Augusto Comte, desenvolveu um método de análise preciso e rigoroso apto a qualificá-la como ciência.
A Sociologia Jurídica, por sua vez, é definida como um ramo especializado da Sociologia Geral e possui como objeto de análise a influência que o direito exerce na sociedade e a que esta exerce sobre o direto, bem como quais tipos de regras regulam uma sociedade.
Embora a origem científica da Sociologia Jurídica remonte ao período Pós-Segunda Guerra Mundial, a verdade é que a Sociologia, em sua essência, já existe há muito tempo, senão vejamos.
No século V a.c, Heródoto dedicou grande parte dos seus estudos a detalhar o quotidiano dos povos e seus respectivos costumes. No segundo quartel do século XIX, em 1838, Auguste Comte debruçou-se sobre o tema e desenvolveu o conceito de sociologia quando ministrava seu curso de Filosofia positiva. Além do mais, houve grande produção científica orientada sob o prisma da sociologia do direito antes de seu surgimento como ciência, fato que se torna notório nas pesquisas realizadas pelos precursores da sociologia, pois seu alvo, o Direito, já era objeto secular de estudo de outras ciências, tais como a Filosofia e a História do Direito.
Partindo desta premissa, conforme citado acima, antes mesmo do surgimento da Sociologia do Direito como ciência, houve grandes debates sob uma perspectiva da Sociologia Jurídica, podendo ser citado o catedraticamente travado entre Savigny e Bentham, cuja questão central girava em definir se o Direito deveria assumir uma postura mais passiva, limitando-se a acompanhar e a incorporar os valores sociais e as condutas diuturnamente ocorridas no seio da sociedade, ou se deveria ter um papel mais ativo, promovendo e influenciando os padrões e as condutas sociais.
Outro debate interessante sob a ótica embrionária da Sociologia do Direito polarizava a questão entre saber se o Direito indicava os padrões da solidariedade social, realizando integração social e o bem comum, tal como preconizado por Émile Durkhein, ou se o Direito era um instrumento de dominação econômica e social utilizado pela classe dominante sobre a classe dominada na eterna luta dos interesses de classe, ideia disseminada por Karl Marx.
Desta forma, é possível observar resquícios da Sociologia do Direito antes mesmo do seu surgimento enquanto ciência, face a existência de discussões informais e artigos científicos originados com fulcro em outros ramos das ciências.
Noutro giro, debruçando-se sobre os estudos realizados pelos precursores da sociologia durante o século XIX, é possível observar que, durante o período inicial, prevalecia uma visão normativista e substantivista do direito, em detrimento de uma visão institucional e processual da matéria, visão esta talvez influenciada pelos preceitos estabelecidos pela Escola da Exegese, e soberanamente difundidos pela Revolução Francesa, que ocorrera em 1789, final do século XVIII.
De fato, os ensinamentos da Escola da Exegese vigoraram na França Napoleônica até meados dos anos 1880, cerca de 10 (dez) anos após o início da segunda República Francesa, razão pela qual a visão normativista e substantivista do Direito predominou nos pensadores do primeiro quartel do século XIX.
Como exemplo, cita-se Eugen Ehrlich, jurista e sociólogo idealizador do “Direito Vivo” e da criação judiciária do direito e, para alguns, pai da Sociologia do Direito. Sua produção científica mais famosa, “O direito Vivo” estatuía um contraponto com o direito posto defendido por Hans Kelsen, pois, segundo os estudos de Ehrlich, na grande maioria das vezes, a “lei viva” e não positivada (costumes) tinha o papel de prevenir, reger e resolver as relações e conflitos sociais emergentes de uma sociedade.
Outra eminente obra de Ehrlich - “A Criação Judiciária do Direito”, realiza um paralelo entre a normatividade do direito, a qual surge de uma norma exangue criada pelo Legislativo e que possui legitimidade democrática formal, em contraponto à força emanada de decisões proferidas pelo Judiciário no caso concreto, a chamada jurisprudência.
O referido debate criou as circunstâncias necessárias para o posterior surgimento de uma Sociologia com enfoque nas dimensões processuais, institucionais e organizacionais, como se verá mais a frente quando serão detidamente examinadas as condições teóricas do surgimento da Sociologia do Direito.
Aspecto interessante a ressaltar são as semelhanças existentes entre a teoria da “criação judiciária do direito” e o contemporâneo “ativismo judicial”, segundo o pensamento de Dirley da Cunha Júnior, in verbis:
Desse modo, diferentemente do Judiciário “invisível”, “nulo” e “inanimado”, ta l como concebido pela clássica teoria da separação dos Poderes, devemos necessariamente reconhecer a extraordinária grandeza e vigor do “atual” e “renovado” Poder Judiciário, como garantia do Estado Constitucional Democrático, pois um sistema equilibrado de controles recíprocos depende, como garantia democrática da liberdade, da coexistência de um legislativo forte como um executivo forte e um judiciário forte, ‘no qual o crescimento do poder judiciário é obviamente o ingrediente necessário do equilíbrio dos poderes’. Por isso, o velho dogma da separação está fadado, mais cedo ou mais tarde, a perder seu lugar de destaque na teoria constitucional, de tal modo que, no constitucionalismo contemporâneo, não mais se fala em separação, mas sim em equilíbrio entre os Poderes (CUNHA JÚNIOR, 2014, p. 170).
Ademais, ainda no início do século XIX destacam-se os estudos de Max Weber, jurista, economista e sociólogo que, ciente da posição de destaque que o Direito possuía no seio da sociedade e, sob uma ótica do Direito Zetética (como os súditos observavam o Direito), centralizou sua análise em três pilares, a saber: as pessoas encarregadas de aplicar as normas jurídicas; as profissões jurídicas e o sistema burocrático.
Segundo os ensinamentos do referido autor, a sociedade capitalista racional possuía uma característica basilar, qual seja, a centralização do monopólio estatal conduzida por funcionários públicos que, por sua vez, seguiam procedimentos criados segundo uma “racionalidade formal” e definidos em normas abstratas a serem aplicadas no caso concreto, em um “tipo ideal de burocracia”. Para Weber, a “racionalização da vida social” manifesta-se como a constante imposição de regras sociais ou estatais para a regulação da vida social, a exemplo dos códigos, leis ou mesmo a regulação de uma fila de banco, de tal sorte que toda sociedade encontra-se em um processo constante de racionalização, conforme se torna mais complexa e objetiva.
De tudo aqui falado, constata-se que, embora haja uma diversificação intelectual entre os pensadores pioneiros, o ponto em comum que os une é a visão normativista e substantivista do direito, a qual influenciou decisivamente na definição do objeto da Sociologia do Direito no período Pós-Segunda Guerra Mundial.
Destacam-se as considerações emanadas de Boaventura de Souza Santos, que, traçando um paralelo, ressalta como a dicotomia entre o Direito formal, presente nos códigos e leis, e o Direito eficaz, aplicado no seio da sociedade, influenciaram diretamente na definição do objeto de estudo da Sociologia do Direito, senão vejamos:
Esta tradição intelectual diversificada mas em que domina a visão normativista e substantivista do direito teve uma influência decisiva na constituição do objecto da sociologia do direito no pós-guerra. Dentre os grandes temas deste período refiro dois a título de exemplo: a discrepância entre o direito formal mente vigente e o direito social mente eficaz, a célebre dicotomia law in books/Iaw in action da sociologia jurídica americana; as relações entre o direito e o desenvolvimento socio-econômico e mais especificamente o papel do direito na transformação modernizadora das sociedades tradicionais. Em qualquer destes temas, bastante distintos, um centrado preferentemente nas preocupações sociais dos países desenvolvidos e o outro nas dos países em desenvolvimento, são nítidos o privilegiamento das questões normativas e substantivas do direito e a relativa negligência das questões processuais, institucionais e organizacionais (SOUSA SANTOS, 1986, p. 14).
Corroborando com tal afirmação, destaca-se a célebre dicotomia da sociologia americana “law in books/law in action” originária do artigo de 1910 elaborado por Roscoe Pound, então reitor de Harvard Law School. O referido autor sintetiza com maestria em apenas uma frase a necessidade de se verificar não apenas o direito como sistema regulador, mas sim, como esse sistema regulador afeta a vida das pessoas, dos súditos.
2. AS CONDIÇÕES TEÓRICAS E AS CONDIÇÕES SOCIAIS PARA O SURGIMENTO DA SOCIOLOGIA DO DIREITO.
A conjuntura intelectual delineada linhas acima não perdurou por muito tempo, visto que, ao cabo da década de 50 e despertar dos anos 60, o cenário instalado no período Pós-Segunda Guerra Mundial desencadeou no surgimento de algumas condições teóricas e conjunturas sociais que alteraram a perspectiva que outrora a Sociologia detinha sobre o Direito.
2.1 Das condições teóricas
Dentre as noveis condições teóricas destacam-se o “Desenvolvimento da Sociologia das Organizações”, o “Desenvolvimento da Ciência Política” e o “Desenvolvimento da Antropologia do Direito ou Etnologia Jurídica”. Noutro giro, é possível ressaltar como condições sociais as “Lutas sociais protagonizadas por grupos sociais” e a “Crise da administração da justiça”.
Quanto ao primeiro pressuposto teórico, isto é, o “Desenvolvimento da Sociologia das Organizações”, a evolução histórica revela que tal circunstância evoluiu para tornar-se um ramo especializado da Sociologia, a qual possui como maior expoente o teórico Max Weber. A “Sociologia das Organizações” possui como objeto central dos seus estudos a pesquisa das estruturas e a forma das organizações, bem como o conjunto das interações ocorridas em seu núcleo e o impacto delas no comportamento social dos indivíduos. Neste contexto, a institucionalização de uma organização é um processo que reflete sua história em particular, as pessoas que nela trabalharam, os diversos interesses consagrados (vested interests) dos grupos que a constituem e a maneira como se adaptou ao seu ambiente. (Selznick, 1972).
De fato, as organizações influem diretamente na vida e formação da pessoa e da sociedade, visto que “afetam fortemente cada aspecto da existência humana – nascimento, crescimento, desenvolvimento, educação, trabalho, relacionamento social, saúde, e até mesmo a morte” (SILVA, 2013, p. 43).
Tal afirmação é corroborada por Richard Daft:
É difícil enxergar as organizações. Podemos ver os sinais externos, como altos edifícios, uma estação de computador ou um funcionário educado, mas a organização como um todo é vaga e abstrata e pode estar espalhada em diversas localidades, até mesmo ao redor do mundo. Sabemos que as organizações estão ali porque elas afetam a todos, todos os dias. Na verdade, elas são tão comuns que as tomamos por algo que sempre esteve ali. Mal percebemos que nascemos num hospital, somos registrados em um cartório, estudamos em escolas e universidades, crescemos com alimentos produzidos em fazendas corporativas, somos assistidos por médicos integrantes de uma equipe, compramos uma casa construída por uma construtora e vendida por imobiliária, pegamos dinheiro emprestado de um banco, recorremos à polícia e aos bombeiros quando estamos com problemas, usamos empresas de transportes para fazer mudança de casa, recebemos benefícios de órgãos do governo. A maioria de nós passa muitas horas trabalhando numa organização de um tipo ou de outro. (DAFT, 2014, p. 12)
No que tange à segunda condição teórica, “o Desenvolvimento da Ciência Política” e seu consequente interesse pelos tribunais como instância de poder decisivo e político, a mesma se ateve à análise dos membros do poder Judiciário, especificamente das orientações políticas seguidas pelos juízes e, consequentemente, como tal decisão influencia e é influenciada pela ideologia política na qual o magistrado fora imbuído durante sua formação pessoal e acadêmica. Em outras palavras, disserta acerca da forma pela qual as orientações políticas do magistrado interferem em suas decisões e como estas refletem na sociedade.
Quanto ao terceiro requisito teórico - “O Desenvolvimento da Antropologia do Direito ou da Etnologia Jurídica”, observa-se que, por muito tempo, a Antropologia Jurídica concentrou seus estudos na pesquisa das sociedades coloniais, preponderantemente sobre as constituídas na África e na América do Sul. Ocorre que, com o passar do tempo, tais colônias adquiriram suas independências, tornando-se países, cenário que findou forçando a Antropologia jurídica a progressivamente migrar seus estudos para outro campo, qual seja, o exame das sociedades capitalistas, especificamente na observação das normas, processos e instituições e eficácia estruturadora dos comportamentos sociais. Outrossim, não se olvida que, posteriormente, tal disciplina adquiriu uma conotação criminológica, face aos estudos desenvolvidos por Nina Rodrigues e Cesare Lombroso.
2.2. Das condições sociais
Ao lado das condições teóricas, mas não menos importantes, é necessário destacar a contribuição das condições sociais para o surgimento da Sociologia do Direito, servindo, ainda, como orientação para a pesquisa nas dimensões processuais, institucionais e organizacionais. Ressalte-se, inegavelmente, que embora fosse possível elencar a cooperação de incontáveis circunstâncias sociais, tendo em vista a magnitude de possiblidades no mundo dos fatos, é possível realçar duas principais delas.
A primeira condição social a ser destacada são as “Lutas sociais protagonizadas por grupos sociais de minorias”. O panorama indica que os grupos sociais de minorias, quais sejam, negros, estudantes e a pequena burguesia, até aquele momento sem qualquer tradição no campo das ações coletivas, estavam em busca de direitos relacionados com as mais diversas áreas sociais, tais como, segurança social, habitação, educação, transportes, meio ambiente, qualidade de vida, entre outros.
Os referidos direitos sociais emanam do cenário delineado após a Revolução Francesa que, a despeito de serem consagrados na teoria, face ao fracasso prático do princípio da igualdade formal, ainda necessitavam ser implementados efetivamente, por meio de lutas sociais, protestos, ações judiciais, dentre outras.
De fato, a igualdade legal ou formal de todos perante a lei passou a ser confrontada com a igualdade material ou a desigualdade fática, perante a lei. Tal contraposição, como não poderia deixar de ser, tornou-se um oceano de questões para estudos, teses, lutas e discussões sobre a dicotomia existente no acesso à justiça no âmbito dos diferentes estratos sociais.
Em outras palavras, percebeu-se que o direito a um direito conquistado por meio da edição de uma norma pelo Poder Legislativo não significava o usufruto deste no mundo dos fatos, mas apenas o início de uma luta para sua implementação, luta esta que receberia o nome de lide e deveria ser travada, principalmente, em outro poder, o Judiciário.
3. A CRISE NA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTICA
A partir da década de 60, processos, tribunais e assuntos relacionados entram no enfoque da Sociologia, em razão da denominada “Crise na Administração da Justiça”, ocasionada principalmente pela primeira condição social citada alhures. As “Lutas sociais” potencializaram a mutação do Estado liberal para o Estado assistencial, providencial ou Welfare State, cuja importância exige comentários específicos.
O Welfare State ou Estado de bem-estar social, cuja origem remonta a década de 1880 sob a chancela do alemão Otto Von Bismarck “O chanceler de ferro”, caracteriza-se por ser uma forma de organização política mais intervencionista, na qual o Estado assume o papel de promover o bem-estar social e econômico dos cidadãos.
Nesse contexto, além de proporcionar saúde, segurança, moradia e educação, também controla a economia por meio de políticas estatais sustentadas por um sistema inflado de enorme carga tributária e fiscal. Tal modelo fora seguido por vários Estados, cada qual adaptando a sua realidade, a exemplo do modelo “democrata” que possui uma carga tributária maior e, em contrapartida, garante benefícios universais. Cita-se, ainda, o modelo liberal criado pelos EUA, o new deal que, arrecadando menos tributos, proporciona apenas os serviços mínimos a garantir a dignidade da pessoa humana.
Fato é que, com o tempo, tal modelo mostrou-se oneroso demais para os cofres públicos, levando muitos países a reverem seus conceitos para balancear as contas com os anseios sociais mínimos, o que posteriormente ficou conhecido como Estado Neoliberal. Confira-se:
O crescimento do Estado social ou Estado do bem-estar-social reverteu alguns dos postulados básicos do Estado de Direito, a começar da separação entre Estado e sociedade, que propiciava uma correspondente liberação das estruturas jurídicas das estruturas sociais. Nessa concepção, a proteção da liberdade era sempre da liberdade individual enquanto liberdade negativa, de não impedimento, do que a neutralização do Judiciário era uma exigência conseqüente. O Estado social trouxe o problema da liberdade positiva, participativa, que não é um princípio a ser defendido, mas a ser realizado. Com a liberdade positiva, o direito à igualdade se transforma num direito a tornar-se igual nas condições de acesso à plena cidadania. Correspondentemente, os Poderes Executivo e Legislativo sofrem uma enorme expansão, pois deles se cobra a realização da cidadania social e não apenas a sustentação do seu contorno jurídico-formal. (SILVA, Carlos Augusto. O processo civil como estratégia de poder: reflexo da judicialização da política no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 18).
Interessante destacar um fato ocorrido na Inglaterra na década de 1980 que ilustra, de um lado, a força que os movimentos de classe tinham, e do outro a intervenção estatal que era praticada à época. Vejamos:
O papel do governo britânico na greve dos mineiros de 1984 oferece um exemplo muito claro de como o Estado pode interferir a favor do capital. Contrariamente às regras elementares da boa prática nos negócios elogiadas pelo ex-presidente da General Motors, o Estado capitalista na Grã-Bretanha planejou sua ação antitrabalhista na forma de uma “acumulação cuidadosamente controlada e coordenada de estoques excessivos” com o objetivo mal disfarçado de provocar e levar os mineiros a uma greve em que — dado o total de recursos à disposição do Estado — eles nunca poderiam vencer (...) as autoridades do Estado, com total cooperação do Judiciário, também intervieram de todas as formas na disputa, negando aos grevistas suas legítimas reivindicações e privando o Sindicato Nacional de Mineiros de todos seus recursos. Além disso, o Estado gastou quantias maciças durante todo o ano que durou a luta — algo estimado em torno de 5 ou 6 bilhões de libras esterlinas [de 20 anos atrás] — para derrotar a greve. E, o que talvez seja o mais importante, ao mobilizar as forças do capital internacional bem como as ligações internacionais do Estado britânico (inclusive sua capacidade de assegurar o fornecimento de carvão à Polônia), a confrontação foi organizada de forma a pôr um fim ao “sindicalismo intransigente” em geral, e não simplesmente a uma disputa industrial particular. Chamar os mineiros de “inimigo interno” e vangloriar-se de “despedi-los” atendeu ao objetivo de intimidação ao sindicalismo radical e geral, sempre que aparecesse com reivindicações não-integráveis. (MESZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004).
Sob o enfoque da crise da administração da justiça, tem-se, resumidamente, que as lutas conquistaram direitos individuais e sociais e o Estado assistencial estabeleceu tais direitos como normas programáticas a serem cumpridas pelo Estado, no intuito de reduzir as desigualdades sociais e em busca da igualdade material.
Contudo, os direitos são fartos e os recursos finitos, o que gerou um passivo enorme de não prestação ou de prestação ineficiente dos mesmos.
Aliado a este fenômeno social, ocorria outro que era desencadeado pela classe trabalhadora, outrora relegados ao esquecimento por não possuir direitos e nem representatividade parlamentar e, diante do novo quadro fático caracterizado pela implementação da igualdade e da dignidade da pessoa humana, integrava-se à sociedade de forma mais ativa. No entanto, tal situação gerou mais conflitos, sejam sociais, trabalhistas, de segurança social, de habitação ou comercial, dentre outros.
No mesmo cenário, ocorria a integração da mulher no mercado de trabalho que, tendo em mãos o capital pago em contrapartida do seu esforço, também conquistava seu espaço na sociedade e dentro da família, o que, por via de consequência, gerava mais conflitos sociais e familiares, refletindo no direito de família e sucessões.
Todos estes eventos e outros aqui não citados contribuíram para uma avalanche de litigiosidade que o Poder Judiciário e todo o aparato necessário para sua movimentação, tais como, Advogados, Juristas, Faculdades, Promotores, etc, não estava preparado para abarcar.
Assim, recursos e investimentos deveriam ser canalizados para esta demanda social com instalações de Tribunais, contratação de juízes e demais servidores, bem como a criação de faculdades para formar juristas.
Ocorre que a conjuntura mundial de expansão econômica estava arrefecendo e o início da década de 1970 foi marcado por uma recessão decorrente da escassez de petróleo no mercado mundial, época em que ocorriam guerras no Oriente Médio e conflitos entre os países árabes e Israel. Além disso, havia o embate entre EUA e a recém-criada Organização dos Países Exportadores de Petróleo - OPEP.
Neste contexto, a recessão mundial que caracterizou a década de 1970 drenou os recursos públicos dos Estados e, consequentemente, gerou a incapacidade destes em manter as medidas assistencialistas e os compromissos assumidos com as classes sociais menos favorecias economicamente, bem como refletiu na incapacidade Estatal de aplicar recursos públicos na ampliação dos serviços prestados pelo Poder Judiciário, na ampliação estrutural da Justiça, na organização dos tribunais, na contratação de magistrados e demais servidores da justiça. Logo, a “Crise na Administração da Justiça” agravou-se ainda mais.
Outrossim, devido a ampla divulgação da citada crise realizada pelos meios de comunicações sociais, houve a exposição da vulnerabilidade política que existia nas elites dirigentes do Estado e, consequentemente, a abertura de amplo campo de estudo para a Sociologia que, nesta ocasião, poderia tratar de temas ligados ao estudo sociológico da administração da justiça, da organização dos tribunais, das motivações das sentenças, da ideologia política e das profissões ligadas aos mais variados setores conexos à administração da justiça.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De todo o exposto, verifica-se que, embora não seja possível atribuir a origem da Sociologia do Direito a apenas um único fator, social ou teórico, é notória a contribuição dos eventos destacados no presente trabalho, com ênfase na “Crise da Administração da Justiça”, a qual expôs as mazelas mais profundas do Judiciário outrora relegadas ao esquecimento social. De fato, tal crise, embora tenha tido origem muito mais antiga, atingiu seu apogeu na década de 1970, e desde então só se agravou face à complexação das sociedades contemporâneas produtoras de conflitos sociais e consequentemente, de lides judiciais que somente o Estado é capaz de dirimir.
Neste ponto, destaca-se a relação simbiótica da “Crise da Administração da Justiça” com a Sociologia do Direito, visto que embora àquela tenha se destacado como um fator social para o surgimento da Sociologia Jurídica, esta última, por sua vez, auxiliou com seus estudos e pesquisas na diminuição da crise judiciária. Isso porque, além de expor as dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário, também se dedicou a descobrir as origens de tais dificuldades.
Assim, atualmente, embora seja consabido que o caminho para a solução da crise seja árduo, o trabalho da Sociologia do Direito erigiu um “norte” a ser seguido, tais como a ampliação estrutural do Poder Judiciário, a formação e qualificação de profissionais da área jurídica, a criação de núcleos itinerantes de atendimento ao cidadão, a criação de centros de composição e a implementação de alguns institutos como o da Justiça Multiportas, na intenção de buscar meios jurisdicionais e não jurisdicionais na solução de conflitos.
Referências
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 8.ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
DAFT, Richard L. Organizações: teoria e projetos. 11. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2014.
MESZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
SILVA, Carlos Augusto. O processo civil como estratégia de poder: reflexo da judicialização da política no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 18.
SILVA, Reinaldo Oliveira da. Teorias da administração. 3. ed. São Paulo: Pearson, 2013.
SELZNICK, Philipe. A liderança na administração: uma interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972.
SOUSA SANTOS, Boaventura. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Revista Crítica de Ciências Sociais, 21, 11-37, 1986.
[1] Mestrando em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP, com formação em Direito pela Universidade Luterana do Brasil (2010). Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Superior Batista do Amazonas (2013). Ex-integrante das Forças Armadas Brasileira, no posto de Tenente da Aeronáutica. Delegado de Polícia de Carreira do Estado do Amazonas. [email protected]
Mestrando em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP, com formação em Direito pela Universidade Nilton Lins. Pós-graduado em Direito civil e processual civil pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas – CIESA. Ex-advogado. Delegado de Polícia de Carreira do estado do Amazonas, Presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Amazonas- SINDEPO/AM. Diretor da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL/BR
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, Jeff David Mac Donald da Silveira. A crise da Administração da Justiça como condição para o surgimento da Sociologia do Direito enquanto ciência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 nov 2023, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/64018/a-crise-da-administrao-da-justia-como-condio-para-o-surgimento-da-sociologia-do-direito-enquanto-cincia. Acesso em: 23 nov 2024.
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