RESUMO: Este artigo aborda a questão da descriminalização do aborto, analisando a questão sob uma perspectiva de gênero diante da criminalização das mulheres, e, em especial, o impacto desproporcional em mulheres negras e de baixa renda. O artigo também discute a necessidade de conscientização do respeito à autonomia da mulher sobre seu próprio corpo, o direito à saúde reprodutiva e a necessidade de políticas públicas que garantam condições seguras para a realização do procedimento.
PALAVRA-CHAVE: Aborto. Aborto legal. ADPF 54. ADPF 442. Impacto desproporcional. Igualdade de gênero.
INTRODUÇÃO:
Segundo o Código penal, Aborto é a interrupção da gravidez, com a morte do produto da concepção, que é protegido pela normal penal, que pune o aborto desde o momento da nidação até o início do parto. Pela leitura do tipo objetivo, tem-se que a ação de “provocar” (dar causa, originar) tem forma livre e pode ser praticada por qualquer meio, comissivo ou omissivo.
Discorre Cezar Roberto Bitencourt que o bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação (intra-uterina), o produto da concepção — feto ou embrião — não é pessoa. Quando o aborto é provocado por terceiro, o tipo penal protege também a incolumidade da gestante, a sua liberdade de escolha e integridade física.
Destaca-se, que o tipo penal prevê a interrupção ilícita da gravidez, ou seja, não autorizada por lei, com a morte do produto, haja ou não expulsão, qualquer que seja seu estado evolutivo, desde a concepção até momentos antes do parto. A morte do feto tem de ser resultado direto das manobras abortivas. A partir do início do parto, o crime será homicídio ou infanticídio.
Nos EUA, a Suprema Corte decidiu, em 1973, entendeu não ser admissível, de acordo com a Constituição, a proibição do aborto nos 3 primeiros meses de gravidez, enquanto que do 3º ao 6º mês só poderá ser realizado se estiver em risco a vida ou a saúde da gestante.
A partir de uma análise dos casos levados aos tribunais, percebe-se que a mulher é sempre penalizada. Seja quando pratica o auto aborto, seja quando em concurso de agentes.
A relação entre o aborto e a criminalização da mulher é um tema complexo que envolve normas que são reflexos de pensamentos sociais, culturais e religiosos que buscam regular a reprodução e impor determinadas visões sobre a moralidade.
Certo é que, no cenário atual, esta criminalização impacta de maneira desproporcional as mulheres negras e de baixa renda. Restrições legais muitas vezes resultam em dificuldades adicionais para essas mulheres, que enfrentam barreiras financeiras, geográficas e sociais ao buscar serviços de saúde, o que acarreta a busca por métodos inseguros e clandestinos, colocando em risco não apenas a saúde, mas também a vida dessas mulheres.
Para abordar essa questão de maneira eficaz, é crucial considerar não apenas a legalização do aborto, mas também políticas públicas que atendam às necessidades específicas das mulheres marginalizadas, como o acesso equitativo à educação sexual, serviços de saúde reprodutiva e suporte social.
1. CASOS EM QUE O ABORTO É PERMITIDO
Nosso ordenamento jurídico prevê hipóteses em que é permitida a realização do aborto (aborto legal). São duas hipóteses previstas pelo Código Penal, saber (1) o aborto necessário e (2) o aborto sentimental/humanitário (no caso de gravidez que resulta de estupro), tais hipóteses estão previstas no artigo 128 do CP:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Exige-se que seja o aborto praticado por médico. Somente é lícito o aborto praticado pelo médico, muito embora seja aplicável a regra genérica de estado de necessidade do art. 20 do CP para o caso da enfermeira que provoca o aborto para salvar a vida da mãe.
Nestas hipóteses, o legislador exclui a antijuridicidade da conduta. Não há crime, portanto, pela ausência do elemento antijuridicidade.
1.1. ABORTO NECESSÁRIO:
O aborto necessário representa situação em que não há outro meio de salvar a vida da gestante. É a intervenção cirúrgica realizada com o objetivo de salvar a vida da gestante.
Tal modalidade tem por requisitos: (i) que a vida da gestante corra perigo; e (ii) não haja outro meio de salvar a vida da gestante.
Segundo a posição da doutrina dominante, na hipótese de perigo de vida iminente, é dispensável a concordância da gestante ou de seu representante legal (art. 146, § 3º, do CP), uma vez que a intervenção médico-cirúrgica está autorizada pelo disposto nos arts. 128, I (aborto necessário), 24 (estado de necessidade) e 146, § 3º (intervenção médico-cirúrgica justificada por iminente perigo de vida), o consentimento da gestante ou de seu representante legal somente é exigível para o aborto humanitário, previsto no inciso II do art. 128.
1.2. ABORTO SENTIMENTAL
Entendeu o legislador que não se deve criminalizar se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante. Assim, são requisitos essenciais: (i) a gravidez consequente de estupro (tanto o praticado com violência real quanto presumida); e (ii) prévio consentimento da gestante.
1.3. ABORTO EUGENÉSICO- ADPF 54
O Plenário do STF, em 2012, julgou procedente a ADPF 54 para declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal, ficando, então, autorizada a interrupção da gestação de fetos anencéfalos caso a mãe assim desejar.
Essa hipótese não foi prevista em lei. Há discussão com relação a natureza jurídica: para uma primeira corrente, trata-se de causa supralegal de exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa (Bitencourt, Capez e Salim); já para uma segunda corrente, é fato materialmente atípico por não importar em lesão ao bem jurídico vida (Masson, LFG).
2. DEMAIS FORMAS DE ABORTO.
2.1. ABORTO MISERÁVEL, ECONÔMICO OU SOCIAL.
Defendida por alguns, como sendo aquele realizado por motivos econômicos ou sociais, entretanto, não é admitido pelo ordenamento jurídico pátrio.
2.2. ABORTO NO PRIMEIRO TRIMESTRE DE GESTAÇÃO.
No HC 124306, julgado em 29/11/16, a 1ª Turma do STF concedeu a ordem para afastar a prisão preventiva com fundamento na interpretação conforme a Constituição Federal dos artigos. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre de gestação por violar diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade:
DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos. 2. Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação.Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. 4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. 5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. 7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália. 8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus.
3. A ADPF 442 E A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO.
Está pendente de julgamento a ADPF 442, que objetiva a declaração da não recepção parcial dos artigos, 124 e 126 do CP, indicando com fundamentos: princípios da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da não discriminação, direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar (arts. 1º, I e II, 3º, IV, 5º, caput e incisos I e III, 6º, caput, 196 e 226, § 7º, da CF).
Convém destacar trechos do voto da Ministra Rosa Weber:
“(...)165. A validade constitucional do sistema de justiça reprodutiva encontra fundamento em duas razões essenciais. A primeira guarda relação com o reconhecimento dos direitos das mulheres à liberdade de planejamento familiar, à autodeterminação pessoal, à intimidade, à igualdade, à dignidade e à saúde, incluído em seu âmbito de proteção os direitos sexuais e reprodutivos, como ponto de partida do sistema constitucional no equacionamento da questão da interrupção voluntária da gravidez, no marco expresso das doze primeiras semanas. Não há falar em proteção do valor da vida humana sem igualmente considerar os direitos das mulheres e sua dignidade em estatura de direitos fundamentais e humanos. A tutela da vida humana intrauterina é construída, do ponto de vista normativo, com a participação da mulher e não sem ela, tampouco contra sua autonomia no processo reprodutivo e de planejamento familiar. Se é assim, a intervenção estatal sancionatória, radicada na punição criminal da decisão da mulher, deve demonstrar compatibilidade com os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade na proteção dos interesses constitucionais em conflito, o que não se verifica.
(...)167. Desse modo, entendo que a criminalização da conduta de interromper voluntariamente a gestação, sem restrição, não passa no teste da subregra da necessidade, por atingir de forma o núcleo dos direitos das mulheres à liberdade, à autodeterminação, à intimidade, à liberdade reprodutiva e à sua dignidade. Ademais, configura-se incoerente, da perspectiva normativa, com o modelo constitucional que adotou a proteção gradual ao direito à vida, como explicitado na premissa deste voto. Nesse sentido, mostra-se desnecessária a atuação do legislador que, a despeito das medidas normativas mais efetivas e compatíveis com a proteção dos direitos fundamentais das mulheres e da vida potencial do feto, adota desenho institucional desproporcional à gramática dos direitos fundamentais, pilares do estado constitucional, sem que a finalidade da tutela da vida em potencial seja assegurada.
A justiça social reprodutiva, fundada nos pilares de políticas públicas de saúde preventivas na gravidez indesejada, revela-se como desenho institucional mais eficaz na proteção do feto e da vida da mulher, comparativamente à criminalização. A dimensão prestacional da justiça social reprodutiva, como argumentado, explica a desconstituição da validade da política punitiva de encarceramento, que não se demonstra suficiente e proporcional enquanto política pública de desestímulo à gravidez indesejada, tampouco eficaz na perseguição da sua finalidade subjacente, que é tutela da vida humana. Por isso, a necessidade, melhor, a imprescindibilidade da sua execução (...)”
4. DESNECESSIDADE DE REGISTRO DE OCORRÊNCIA E LEI DO MINUTO SEGUINTE.
O Ministério da Saúde em 2020, editou Portaria que trazia novos requisitos para que o aborto fruto de estupro fosse realizado, prevendo procedimento longo e atrelado ao dever da vítima noticiar o crime ocorrido para que o aborto fosse possível, representando um grande retrocesso aos direitos fundamentais da mulher.
PORTARIA Nº 2.561, DE 23 DE SETEMBRO DE 2020
(REVOGADO PELA PRT GM/MS Nº 13 DE 13.01.2023)
Art. 1º O Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei compõe-se de quatro fases que deverão ser registradas no formato de termos, arquivados anexos ao prontuário médico, garantida a confidencialidade desses termos. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
Art. 2º A primeira fase será constituída pelo relato circunstanciado do evento, realizado pela própria gestante, perante 2 (dois) profissionais de saúde do serviço. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
Parágrafo único. O Termo de Relato Circunstanciado deverá ser assinado pela gestante ou, quando incapaz, também por seu representante legal, bem como por 2 (dois) profissionais de saúde do serviço, e conterá: (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
I - local, dia e hora aproximada do fato; (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
II - tipo e forma de violência; (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
III - descrição dos agentes da conduta, se possível; e (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
IV - identificação de testemunhas, se houver. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
Art. 3º A segunda fase se dará com a intervenção do médico responsável que emitirá parecer técnico após detalhada anamnese, exame físico geral, exame ginecológico, avaliação do laudo ultrassonográfico e dos demais exames complementares que porventura houver. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
§ 1º A gestante receberá atenção e avaliação especializada por parte da equipe de saúde multiprofissional, que anotará suas avaliações em documentos específicos. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
§ 2º Três integrantes, no mínimo, da equipe de saúde multiprofissional subscreverão o Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez, não podendo haver desconformidade com a conclusão do parecer técnico. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
§ 3º A equipe de saúde multiprofissional deve ser composta, no mínimo, por obstetra, anestesista, enfermeiro, assistente social e/ou psicólogo. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
Art. 4º A terceira fase se verifica com a assinatura da gestante no Termo de Responsabilidade ou, se for incapaz, também de seu representante legal, e esse termo conterá advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e de aborto (art. 124 do Código Penal), caso não tenha sido vítima do crime de estupro. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
Art. 5º A quarta fase se encerra com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que obedecerá aos seguintes requisitos: (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
I - o esclarecimento à mulher deve ser realizado em linguagem acessível, especialmente sobre: (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
a) os desconfortos e riscos possíveis à sua saúde; (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
b) os procedimentos que serão adotados quando da realização da intervenção médica; (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
c) a forma de acompanhamento e assistência, assim como os profissionais responsáveis; e (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
d) a garantia do sigilo que assegure sua privacidade quanto aos dados confidenciais envolvidos, passíveis de compartilhamento em caso de requisição judicial; (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
II - deverá ser assinado ou identificado por impressão datiloscópica, pela gestante ou, se for incapaz, também por seu representante legal; e (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
III - deverá conter declaração expressa sobre a decisão voluntária e consciente de interromper a gravidez. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
Art. 6º Todos os documentos que integram o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, conforme modelos constantes nos anexos I, II, III, IV e V desta Portaria, deverão ser assinados pela gestante, ou, se for incapaz, também por seu representante legal, e elaborados em duas vias, sendo uma fornecida à gestante. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
Art. 7º Em razão da Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, que alterou o artigo 225 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, o médico e os demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolherem a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro, deverão observar as seguintes medidas: (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
I - Comunicar o fato à autoridade policial responsável; (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
II - Preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial ou aos peritos oficiais, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime, nos termos da Lei Federal nº 12.654, de 2012. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
Art. 8º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
Art.9º Fica revogada a Portaria nº 2.282/GM/MS, de 27 de agosto de 2020, publicada no Diário Oficial da união nº 166, de 28 de agosto de 2020, seção 1, página 359. (Revogado pela PRT GM/MS nº 13 de 13.01.2023)
A partir da leitura fica evidente o controle do Estado sobre os corpos femininos fomentando a escolha entre a revitimização e a maternidade compulsória.
Contudo, a Portaria 2561/20 que trazia a necessidade de notificação da polícia em caso de aborto legal foi revogada. Tal Portaria recebia crítica de grande parte dos operadores da justiça uma vez que além de prever requisitos não estabelecidos na lei penal para a realização do aborto, violava o sigilo médico, bem como obrigava aquela mulher a rememorar a violação à dignidade sexual sofrida.
Há ainda que se ter em mente que o Brasil já goza de lei que impõe tratamento interdisciplinar às vítimas de violação à dignidade que é a Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, conhecida como a Lei do Minuto Seguinte, que versa sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual.
5. O DEVER DE SIGILO MÉDICO
Recentemente, o Sistema Interamericano e o Superior Tribunal de Justiça se depararam com violações do sigilo médico em relação ao paciente. Em ambos os casos os médicos comunicaram à polícia a ocorrência de um aborto supostamente realizado por suas pacientes.
5.1. CORTE INTERAMERICANA: CASO MAUELA Y OUTROS VS. EL SALVADOR
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o CASO MANUELA Y OTROS VS. EL SALVADOR, concluiu que a imposição da prisão preventiva foi arbitrária e violou o direito à presunção de inocência em prejuízo de Manuela, já que a resolução que ordenou sua prisão provisória não foi suficientemente fundamentada e se baseou em legislação contrária à Convenção Americana.
Ademais, a Corte ressaltou que desde as primeiras etapas da investigação se presumiu a culpabilidade de Manuela, se iludiu em determinar a verdade do ocorrido e não levou em conta os elementos probatórios que podiam desvirtuar a tese de sua culpabilidade. Esta falta na investigação foi conduzida por preconceitos dos pesquisadores contra as mulheres.
Nesse sentido, os preconceitos e estereótipos negativos de gênero afetaram a objetividade dos agentes encarregados das pesquisas, fechando linhas possíveis de pesquisa sobre as circunstâncias factuais.
Adicionalmente, na motivação da sentença condenatória não se estabeleceu com evidência factual o nexo de causalidade entre o agir de Manuela e a morte do recém-nascido. Essa falta de motivação foi resolvida com o uso de estereótipos de gênero e preconceitos e não com elementos de prova.
A Corte indicou que a aplicação de tais estereótipos só foi possível em razão de Manuela ser mulher, de escassos recursos econômicos, analfabeta e que moradora da zona rural. Isso constituiu uma violação do direito à presunção de inocência, o direito de ser julgada por um tribunal imparcial, bem como a obrigação de motivar decisões judiciais e não ser discriminada.
Adicionalmente, a Corte teve demonstrado que a denúncia apresentada pela médica tratante, bem como outras informações aliviadas pelo pessoal médico e administrativo do Hospital San Francisco Gotera, constituíram um descumprimento da obrigação de manter o sigilo profissional e de proteger os dados pessoais sensíveis de Manuela.
Sobre o particular, a Corte indicou que, em casos relacionados a emergências obstétricas, a divulgação de informação médica pode restringir o acesso a um atendimento médico adequado de mulheres que necessitem assistência médica, ao evitar ir a um hospital por medo de serem criminalizadas.
Nesse ponto de vista, a Corte observou que a equipe médica priorizou a realização da denúncia por um suposto crime sobre o diagnóstico e tratamento médico. Além disso, tal denúncia, unida com a declaração da médica tratante e a posterior remissão da história clínica de Manuela, foi utilizada no processo penal contra ela, em violação de seus direitos à vida privada e à saúde. Todo esse ato foi influenciado pela ideia de que o julgamento de um suposto crime deve prevalecer sobre os direitos da mulher, o que é discriminatório.
A Corte concluiu que, no presente caso, não foi garantido o direito à saúde sem discriminação, bem como o direito à igualdade. Submeter a Manuela a esta situação, acabou por afetar rotundamente sua vida, sua saúde além de ser discriminatória, constituiu um ato violência contra a mulher.
5.2. STJ E O SIGILO MÉDICO
A constatação de quebra do sigilo profissional entre médico e paciente levou a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a trancar, uma ação penal que apurava o crime de aborto provocado pela própria gestante (artigo 124 do Código Penal – CP).
No caso, o médico, ao suspeitar da prática do crime de aborto, além de ter acionado os policiais, o médico foi arrolado como testemunha no processo – situações que, para o STJ, violaram o artigo 207 do Código de Processo Penal (CPP) e geraram nulidade das provas reunidas nos autos.
Ao trancar a ação penal, a Sexta Turma determinou a remessa dos autos ao Ministério Público e ao Conselho Regional de Medicina ao qual o médico está vinculado, para que os órgãos tomem as medidas que entenderem pertinentes pela conduta do médico.
A paciente teria aproximadamente 16 semanas de gravidez quando passou mal e procurou o hospital, e, durante o atendimento, o médico suspeitou que o quadro fosse provocado pela ingestão de remédio abortivo e, por isso, decidiu acionar a Polícia Militar.
Após a instauração do inquérito, o médico ainda teria encaminhado à autoridade policial o prontuário da paciente para comprovação de suas afirmações, além de ter sido arrolado como testemunha. Com base nessas informações, o Ministério Público propôs a ação penal e, após a primeira fase do procedimento do tribunal do júri, a mulher foi pronunciada pelo crime do artigo 124 do CP.
A defesa, em Habeas Corpus, além de sustentar a tese de quebra de sigilo profissional pelo médico, sustentou a incompatibilidade entre a criminalização do aborto provocado e os princípios constitucionais, requerendo o reconhecimento da não recepção, pela Constituição de 1988, do artigo 124 do CP.
O Relator (ministro Sebastião Reis Júnior), pontuou que o Habeas Corpus não é a via judicial adequada para a realização do controle difuso de constitucionalidade e que a discussão que versa sobre o tema está pendente de análise pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 442).
Contudo, destacou que o artigo 207 do CPP dispõe que são proibidas de depor as pessoas que, em razão de suas atividades profissionais, devam guardar segredo – salvo se, autorizadas pela parte interessada, queiram dar o seu testemunho, e, no caso em questão, o médico que realizou o atendimento se encaixava na proibição por se mostrar como confidente necessário, estando proibido de revelar segredo que teve conhecimento em razão da profissão, bem como de depor sobre o fato como testemunha.
O ministro mencionou também o Código de Ética Médica, que no artigo 73 impede o médico de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal e determina que, se convocado como testemunha, deverá declarar o seu impedimento, o que não foi observado no caso.
Dessa forma, é evidente que, ainda que não se tenha uma justiça social reprodutiva (como afirmado no voto da Ministra Rosa Weber), o judiciário já demonstra um olhar com perspectiva de gênero quando se trabalha com violação aos direitos das mulheres.
CONCLUSÃO:
Em concussão, a análise da temática da maternidade compulsória e da criminalização do aborto no Brasil revela um cenário jurídico permeado por questões éticas, morais, religiosas e de saúde Pública. A imposição da maternidade compulsória, decorrente da proibição do aborto, impõe dominação sobre os corpos femininos e violando princípios fundamentais da mulher e sua autonomia e liberdade de decisão sobre seu próprio corpo. Para se alcançar a igualdade entre homens e mulheres prevista na Constituição Federal, é crucial analisar a questão sob uma perspectiva de gênero, uma vez que a mulher é quem suporta o ônus integral da gravidez, e, como pontuado pelo Min. Luis Roberto Barroso “somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da manutenção ou não.” (HC 124306). Deve-se atentar ainda, ao impacto desproporcional que a criminalização do aborto causa em mulheres de baixa renda que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem utilizar o sistema público de saúde, que acabam utilizando procedimentos abortivos precários e primitivos que podem causar elevados riscos de lesão e até mesmo óbito.
BIBLIOGRAFIA:
Bitencourt, Cezar Roberto Parte especial : crimes contra a pessoa / Cezar Roberto Bitencourt. – Coleção Tratado de direito penal volume 2 – 20. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020;
https://www.corteidh.or.cr/docs/comunicados/cp_96_2021_port.pdf;
PORTARIA Nº 2.561, DE 23 DE SETEMBRO DE 2020
https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Voto.ADPF442.Versa771oFinal.pdf
HABEAS CORPUS 124.306 RIO DE JANEIRO
LEI Nº 12.845, DE 1º DE AGOSTO DE 2013
advogada formada pela PUC-RIO .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COUTINHO, Natália Maria Madureira da Rocha. Maternidade compulsória e a criminalização do aborto no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2023, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/64145/maternidade-compulsria-e-a-criminalizao-do-aborto-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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