GISELLY PRADO SILVA CAVALHER:[1]
(coautora)
RESUMO: O presente estudo tem como finalidade analisar o poder instrutório do juiz no método de apuração de haveres em ação de dissolução parcial de sociedade limitada promovida pelo sócio retirante em razão da quebra da affectio societatis, sobretudo, acerca da possibilidade de utilizar o método do fluxo de caixa descontado.
Palavras-chave: Sociedade Limitada. Ação de Dissolução Parcial de Sociedade. Poderes instrutórios do juiz. Fluxo de caixa descontado.
ABSTRACT: The purpose of this study is to analyze the judge's instructional power in the method of calculating assets in process for the partial dissolution of a limited liability company promoted by the withdrawing partner due to the breach of the affectio societatis, above all, regarding the possibility of using the cash flow.
Keywords: Limited Company. Process for partial dissolution of the Company. Instructional Powers of the judge. Discounted cash flow.
1.Introdução
A dissolução parcial de uma sociedade limitada ocorre quando um ou mais sócios decidem sair da empresa ou quando são excluídos por alguma razão. Nesses casos, é necessário realizar a apuração de haveres, que é o processo de avaliar o valor que o sócio que está saindo tem direito a receber pela sua participação na empresa.
Existem basicamente três métodos de apuração de haveres em dissolução parcial de sociedade, a saber: i) Balanço Patrimonial Especial; ii) Liquidação Extrajudicial; e iii) Arbitramento Judicial.
No primeiro método, o Balanço Patrimonial Especial, o valor a ser pago ao sócio retirante é calculado com base no balanço patrimonial da empresa na data da dissolução parcial. Isto é, o sócio desligado receberá o valor correspondente à sua participação no patrimônio líquido da empresa apurado na data do desligamento.
No segundo método, a Liquidação Extrajudicial, é mais complexo, pois envolve a liquidação da empresa como um todo. Em referida situação, a empresa é vendida e os ativos são transformados em dinheiro. Depois de pagas todas as dívidas da empresa, o valor restante é distribuído entre os sócios. O sócio que está saindo receberá a sua parte correspondente na distribuição final.
No terceiro método, o arbitramento judicial, após o sócio retirante ou os sócios remanescentes ingressar com ação de dissolução parcial de sociedade e apuração de haveres, onde, após a decretação da retirada do sócio - seja pela quebra do affectio societatis, seja pelo cometimento de falta grave -, o juiz definirá o critério da apuração de haveres e nomeará o perito para elaboração de balanço patrimonial de determinação, a teor do disposto no artigo 1.031 do Código Civil.
Nesse método, o perito judicial leva em consideração vários fatores, como o valor da empresa, o potencial de lucro, o valor de mercado dos ativos, entre outros. O valor definido pelo judicial, observando os parâmetros fixados pelo juiz, é o que o sócio retirante receberá pela sua participação na empresa.
Por fim, importante destacar que os artigos 606 e 607 do Código de Processo Civil conferem ao magistrado poder instrutório para o método de apuração de haveres em dissolução parcial de sociedades limitadas, eis que determinam a avaliação de bens intangíveis – artigo 606 - e, ainda, - conforme se verifica no artigo 607 - possibilita ao juiz rever o critério de apuração de haveres a qualquer tempo antes do início da perícia.
Nisto reside o objeto da presente tese, qual seja, delimitar o estudo acerca do poder instrutório do juiz na determinação do método de apuração de haveres em dissolução parcial de sociedades limitadas.
2.Hipóteses de Resolução da Sociedade Limitada
O Código Civil prevê quatro hipóteses de resolução parcial de sociedade limitada a saber: i) morte de sócio; ii) expulsão; iii) liquidação da quota a pedido do credor do sócio; e iv) exercício do direito de retirada.
A primeira hipótese é prevista no artigo 1.028 do Código Civil. O dispositivo em comento prevê que, em regra, a morte de um dos sócios implicará na dissolução parcial da social, sendo o patrimônio deixado pelo sócio falecido apurado e liquidado na partilha entre seus herdeiros. A partir desse momento, os herdeiros do sócio falecido passarão a ser titulares da quota social e terão o direito de escolher se desejam permanecer na sociedade ou se preferem alienar a quota ou retirar-se da sociedade.
A segunda hipótese é prevista no artigo 1.004 do Código Civil. O artigo em questão prescreve que a expulsão de um sócio ocorre quando este descumpre suas obrigações sociais, age de forma contrária aos interesses da sociedade ou prejudica os demais sócios. Nesse caso, a dissolução parcial da sociedade ocorre em relação à quota do sócio expulso, que deverá ser apurada e liquidada de acordo com o que estiver previsto no contrato social e, caso seja omisso, seguir a regra constante no artigo 1.031 do Código Civil. [2]
Assim, após a expulsão de um sócio, os demais sócios deverão realizar a apuração do valor da quota social do sócio excluído e pagar-lhe o correspondente. Em seguida, a quota poderá ser vendida a terceiros, distribuída entre os sócios remanescentes ou mesmo extinta.
A terceira hipótese é prevista no artigo 1.026 do Código Civil. O dispositivo em tela prevê que o credor de um dos sócios de uma sociedade limitada, desde que esgotadas todas as tentativas de recebimento do valor devido, poderá buscar a cobrança por intermédio da liquidação da quota do sócio devedor.
Nesse caso, a quota do sócio devedor deverá ser apurada e liquidada, sendo o valor correspondente utilizado para quitar a dívida do sócio devedor com o credor. A partir de então, a quota poderá ser vendida a terceiros, distribuída entre os sócios remanescentes ou mesmo extinta.
De mais a mais, imperioso consignar que, assim como na hipótese de expulsão de um dos sócios, a liquidação deverá observar a disposição constante no contrato social e, caso seja omisso, o comando previsto no artigo 1.031 do Código Civil.
Outrossim, valioso destacar que, caso as quotas do sócio devedor sejam superiores ao valor executado, o magistrado poderá determinar o levantamento do valor excedente pelo sócio retirante ou, se for o caso, determinar a venda ou redistribuição das quotas suficientes para quitar a dívida.
Por fim, a quarta hipótese é prevista no artigo 1.029 do Código Civil. O dispositivo em questão prescreve que: “Art. 1.029 Além dos casos previstos na lei ou no contrato, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa.”.
Sobre o tema, importante trazer à baila o magistério de Fábio Ulhoa Coelho[3]:
“a) Exercício do direito de retirada. Se a sociedade limitada de vínculo instável é contratada por prazo indeterminado, o sócio pode desligar-se, a qualquer tempo, das obrigações assumidas ao assinar o contrato social. Como não se obrigou a manter o seu investimento na limitada, por um prazo fixo, em razão do princípio da autonomia da vontade, ele pode liberar-se da condição de sócio no momento em que for de seu interesse (CC, art. 1.029). É a hipótese de retirada imotivada. Já na sociedade de vínculo instável contratada por prazo determinado e na de vínculo estável, o sócio pode retirar-se quando divergir de alteração contratual, incorporação ou fusão deliberada pela maioria (CC, art. 1.077). Nesses casos, a retirada é motivada, já que o direito do sócio não depende apenas da vontade dele.
O exercício do direito de retirada é ato unilateral do sócio desinteressado de permanecer na sociedade. Opera-se a dissolução parcial por retirada imotivada com o transcurso do prazo legal de 60 dias após a entrega, na sociedade, da comunicação escrita do exercício do direito. Na retirada motivada, opera-se desde que o sócio manifeste seu inconformismo com as deliberações majoritárias. Os efeitos da retirada perante terceiros, contudo, dependem do registro, na Junta Comercial, do instrumento de alteração contratual, que formaliza a mudança no quadro de sócios. Se o sócio retirante e os que permanecem na sociedade chegam a acordo relativamente ao valor do reembolso, a alteração contratual é providenciada. A dissolução, nesse caso, foi extrajudicial. Se não há acordo quanto ao valor do reembolso, contudo, o retirante deve buscar, em juízo, por meio da ação de dissolução, a apuração de seus haveres.”
Para o conceituado comercialista, a dissolução parcial da sociedade em razão da quebra do affectio societatis ocorre quando há uma ruptura na relação entre os sócios que compromete a continuidade da sociedade, impedindo a realização do objeto social e a realização dos fins econômicos da sociedade.
Em vista disso, infere-se que a quebra da affectio societatis é o elemento subjetivo que caracteriza a sociedade e consiste na vontade dos sócios em se associarem com o objetivo de alcançar um fim comum. Quando essa vontade é quebrada, pode ocorrer a dissolução parcial da sociedade.
Nesse caso, a dissolução parcial da sociedade ocorre em relação à quota do sócio que deseja se desligar da sociedade e, assim como ocorre nas demais hipóteses de dissolução parcial de sociedade limitada, a apuração de haveres deverá observar as disposições constantes no contrato social e, caso seja omisso, seguir os parâmetros previstos no artigo 1.031 do Código Civil.
Por derradeiro, informa-se que, para fins de delimitação do estudo, o presente artigo analisa os poderes instrutórios do juiz em ação de dissolução parcial de sociedade promovida pelo sócio retirante em razão da quebra do affectio societatis.
3.Ação de Dissolução Parcial de Sociedade
A Ação de Dissolução Parcial de Sociedade Limitada é um procedimento especial previsto nos artigos 599 a 609 do Código Processo Civil.
Em referido procedimento especial, um ou mais sócios de uma sociedade limitada ingressam com uma ação para requerer a dissolução parcial da empresa para o fim de obter declaração judicial sacramentando a saída de um ou mais sócios e apurar os haveres, ou seja, a liquidação correspondente de seus investimentos.
Sobre o tema, é pertinente transcrever a lição de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery[4]:
“É ação condenatória para a qual estão legitimados sócios retirantes ou excluídos, ou por herdeiros de sócio pré-morto, que tem por objeto valor equivalente à participação dos primeiros ou do autor da herança no patrimônio líquido da sociedade. Não é ação constitutiva, porque nada dissolve; o objeto da ação não é o desfazimento da sociedade, mas a condenação a dar dinheiro.”
Pois bem. No presente artigo, analisa-se a dissolução parcial da sociedade proposta pelo sócio retirante em razão da quebra do affectio societatis e, em referida situação, o artigo 1.029 do Código Civil prevê que o sócio retirante deverá notificar os sócios remanescentes com antecedência mínima de 60 (sessenta) dias para os sócios promoverem a alteração do contrato social.
Decorrido referido prazo, sem qualquer alteração no contrato social por parte dos sócios remanescentes, o sócio retirante poderá promover ação de dissolução parcial de sociedade depois de transcorridos 10 (dez) dias do exercício de seu direito. Sobre o tema, é valioso o magistério Humberto Theodoro Júnior[5]: “
“Em caso de sociedade por prazo indeterminado, o interessado deve notificá- la de sua intenção com antecedência mínima de sessenta dias (CC, art. 1.029). Se a alteração contratual não for efetivada, consensualmente, pelos demais sócios”.
Ajuizada a ação, o magistrado oportunizará o contraditório e, se for o caso, determinará a produção de provas – o que geralmente não ocorre nesse primeiro momento – para proferir sentença declarando a dissolução parcial da sociedade limitada.
Referida decisão encerra a primeira etapa - reconhecimento judicial da dissolução da sociedade limitada – e determina o início da segunda etapa do rito especial da ação de dissolução parcial da sociedade, isto é, a apuração de haveres.
De mais a mais, importante destacar que o sócio retirante, ao requerer judicialmente dissolução parcial da sociedade, deve estar imbuído de boa-fé, sob pena do seu ato configurar abuso de direito. Sobre o tema, é pertinente a lição de Cristiano Padial Fogaça Pereira[6]:
“Nesse diapasão, pondera-se, portanto, que a retirada de sócio eivada de má-fé poderia consubstanciar, por exemplo, abuso de direito. O abuso de direito, conceito que tem complexa definição, é a utilização de uma prerrogativa revestida de forma lícita, todavia, tendo como benefício exclusivo intuito de causar dano a outrem e não unicamente um benefício àquele que exerce o direito.
[…]
Exemplo disso é o sócio que, ciente da celebração de contratos e assunção de dívidas que a sociedade dificilmente poderia honrar às vésperas do vencimento das obrigações sociais em questão retira-se da sociedade, a fim de receber seus haveres e deixar a pessoa jurídica à mingua frente aos credores, prejudicando assim os sócios remanescentes.”
Desta forma, analisando a lição acima exposta, constata-se que a boa-fé é um princípio que deve orientar a atuação dos sócios em uma sociedade empresarial, incluindo em casos de dissolução parcial. Assim, espera-se que os sócios ajam com honestidade, transparência e lealdade, buscando sempre o melhor para a empresa e todos os envolvidos (os stakeholders).
Por fim, destaca-se que, no contexto da ação de dissolução parcial promovida pelo sócio retirante em razão da quebra do affectio societatis, é requisito essencial para evitar conflitos e prejuízos desnecessários, eis que o magistrado pode levar em conta a atuação dos sócios de acordo com o princípio da boa-fé, podendo inclusive aplicar sanções caso se constate a atuação desleal ou injusta de algum dos sócios.
4.A Apuração de Haveres
A apuração de haveres – segunda etapa - é um procedimento que ocorre na dissolução parcial da sociedade limitada. Referido procedimento sucede a decisão judicial, a fim de produzir prova pericial contábil para determinar o valor a ser pago ao sócio retirante.
A apuração de haveres consiste em avaliar os bens, direitos e obrigações da sociedade, incluindo ativos e passivos, para determinar o valor da quota-parte de cada sócio que está saindo. É importante ressaltar que o valor a ser pago deve ser justo e corresponder ao real valor dos investimentos do sócio na sociedade, consubstanciado no balanço de determinação, a teor do disposto no artigo 1.031 do Código Civil.
Nesse diapasão, é importante trazer à baila a definição de Alfredo de Assis Gonçalves Neto[7]:
“A apuração de haveres é o átrio da liquidação da quota. Com a ruptura do vínculo societário em relação ao sócio retirante, renunciante, excluído, falido, ou incapaz, ele deixa de ser sócio e se torna credor (o mesmo ocorrendo com os herdeiros do sócio falecido) do direito de exigir a apuração de seus haveres na sociedade para obter o reembolso de seus cabedais, nascendo para a sociedade, em contrapartida, a correlata obrigação de realizar essa prestação, mediante a determinação e a liquidação do correspondente quinhão para sua conversão em dinheiro.”
Sobre o tema, importante destacar que o balanço de determinação não se confunde com o balanço especial, sendo este equivalente a um balanço patrimonial ordinário levantado em data diversa ao último dia do ano e aquele equivalente a um balanço que exprime o real e efetivo valor da empresa.
Nesse sentido, é o entendimento de Cristiano Padial Fogaça Pereira[8]:
“A diferença entre o balanço especial e o balanço de determinação deve-se ao fato de que o balanço especial equivale a um balanço ordinário levantado especialmente para uma determinada data, sendo que os valores dos bens são lançados pelo valor de aquisição, como no balanço ordinário.
No balanço de determinação, embora também elaborado para a data do evento (dissolução parcial), os elementos são indicados pelos valores de saída. O valor de saída empregado no balanço de determinação tem por finalidade simular que todos os bens que compõem o ativo da sociedade seriam alienados a terceiros, portanto, o valor de mercado deve guiar a avaliação.”
O Colendo Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar o Recurso de Apelação nº 1058804-37.2020.8.26.0100, de Relatoria do Desembargador Cesar Ciampolini[9], da 01ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, reconheceu que “o balanço especialmente levantado para fins de apuração de haveres não é um balanço que deva seguir regras contábeis; busca apurar o valor efetivo do empreendimento segundo os critérios de mercado.”
Nesse mesmo sentido, é a observação de Antonio Carlos Marcato[10]:
“Esse balanço de determinação (ou balanço especial) previsto no art. 1.031 do Código Civil deverá ser elaborado para a apuração do valor da sociedade da forma mais ampla possível, com a indicação do valor de mercado de cada um dos bens e direitos que integram seu ativo, bem como do passivo a ser contabilmente levantado. Já o preço de saída representa o valor real de mercado pelo qual os ativos podem ser vendidos ou trocados.
Integram o valor devido ao ex-sócio, ao espólio ou aos sucessores do sócio falecido até a data da resolução da sociedade, sua participação nos lucros ou nos juros sobre o capital próprio declarado da sociedade, mais a remuneração que o ex-sócio ou o sócio falecido percebia como administrador, caso exercesse esse cargo. Definida a data da resolução da sociedade, esses credores terão direito, exclusivamente, à correção monetária dos valores apurados e aos juros estabelecidos contratualmente ou, no silêncio do contrato societário, aos juros legais (CPC, art. 608 e parágrafo)”
Desta forma, constata-se que o balanço de determinação não se confunde com o balanço especial, pois deve levar em consideração os bens materiais e imateriais, tangíveis e intangíveis, o goodwill da sociedade empresária limitada e não somente os ativos e passivos previstos em um balaço patrimonial ordinário.
4.1. Os poderes instrutórios do juiz na determinação do método para apuração de haveres
Os poderes instrutórios do juiz são o conjunto de prerrogativas que permitem ao magistrado conduzir o processo de forma a alcançar a verdade dos fatos e a justa solução do caso concreto, que encontra previsão no artigo 139, VI, do Código de Processo Civil.
Trata-se de poderes que visam garantir que as partes apresentem todas as provas necessárias ao julgamento da causa e que as provas produzidas sejam analisadas de forma adequada.
Na ação de dissolução parcial de sociedade limitada, os poderes instrutórios do juiz possuem regramento e delimitação nas previsões constantes nos artigos 606 e 607 do Código de Processo Civil.
O artigo 606 do Código de Processo Civil prescreve que: “Art. 606. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.”
O dispositivo em questão concede ao magistrado poderes instrutórios ao magistrado para definir o critério de apuração de haveres que melhor atenda cada caso em concreto. Sobre o tema, é importante trazer à baila o entendimento de Eduardo Azuma Nishi[11]:
“Caberá ao juiz estabelecer o critério de avaliação do quinhão patrimonial do sócio retirante, à luz do que dispõe a Lei, conforme consta do artigo 606 do CPC e do artigo 1.031 do CC.
Ao definir o critério de apuração dos haveres no despacho inaugural desta fase (artigo 604 CPC), o juiz fará o balizamento indispensável para a produção pericial. É o juiz quem deve determinar a data base e o critério de apuração a ser adotado, cabendo ao perito efetuar o seu trabalho de levantamento e apuração dos haveres, baseado nas diretrizes por ele estabelecidas.
[...]
Neste ponto o CPC 2015, em seu artigo 604, inovou ao destacar o papel condutor do juiz na definição do critério de avaliação a ser adota- do, quando define que caberá a ele definir o critério de apuração de ha- veres, critério esse que pode ser revisto a qualquer tempo antes do início da perícia, a pedido da parte (artigo 607). Porém, o juiz não tem atuação discricionária ou aleatória na fixação das balizas para a apuração do quantum, devendo se circunscrever aos parâmetros legais.”
Já o artigo 607 do Código de Processo Civil prevê que: “Art. 607. A data da resolução e o critério de apuração de haveres podem ser revistos pelo juiz, a pedido da parte, a qualquer tempo antes do início da perícia.”.
O dispositivo em comento prevê ao juiz a discricionariedade para alterar o objeto da apuração de haveres antes do início da perícia.
Referida disposição tem por fundamento adequar a apuração de haveres da forma mais adequada possível, pois são diversas as causas que podem levar a quebra da affectio societatis.
Uma delas é o desvio de capital por parte dos sócios remanescentes para lesar o sócio retirante. Em referida hipótese, o magistrado poderá orientar a perícia a um período maior que o prazo usual de 5 (cinco) anos e, ainda, determinar que o método contábil utilizado seja o do fluxo de caixa descontado para o fim de constatar fuga de capital na data da resolução da sociedade empresária.
Outra situação é quando o sócio retirante pratica equívocos na gestão da sociedade, o que pode ocasionar prejuízos nos exercícios futuros à data da dissolução da sociedade empresária. Em referida hipótese, o magistrado poderá alterar a data da dissolução da sociedade empresária, a fim de computar no balanço de determinação os prejuízos causados pelo sócio retirante, bem como evitar seu enriquecimento sem causa.
Sobre o tema, é pertinente a observação de Márcio Bellocchi ao comentar o artigo 607 do CPC[12]:
“Explica-se, a partir de um exemplo: suponha-se que a dissolução parcial respectivo da sociedade tenha resultado da retirada imotivada de sócio, de sociedade por indeterminado. Contudo, após a sentença declaratória de procedência da ADPS e, mesmo antes do início do levantamento dos haveres, apura-se a concretização de um prejuízo, à sociedade, decorrente de ato do sócio retirante, praticado durante a época em que administrava a sociedade, mas que gera seus efeitos (o prejuízo) em data posterior à sua retirada. Típico caso, parece, em que se pode aventar a possibilidade de a parte interessada - a própria sociedade- requerer ao juiz, antes do início da perícia, a revisão da data da resolução. Isso porque lembre-se: a data da resolução da sociedade, nos termos da lei, é o que referência apuração dos haveres devidos ao socio e, no caso, o prejuízo causado pelo sócio retirante impactará no valor das verbas a ele devidas a título desses haveres.
A hipótese do art. 607 é uma forma de se tentar equalizar essas possíveis distorções, mediante a previsão da possibilidade de revisão de elementos que constaram da decisão-mesmo que ja transitada em julgado. Não se trata de correção de erro material ou de engano, pois, se disso se tratasse, desnecessária, até, seria tal previsão, em vista do disposto no art. 494, CPC.
[...]
Assim, temos que no art. 607, CPC deve ser aplicado com parcimônia pelo julgador, a fim de que não se desvirtue a sua razão de ser: a preservação dos interesses da sociedade e dos direitos de todas as partes envolvidas, assim como de interessados, evitando-se, consequentemente, o enriquecimento indevido de quem quer que seja , pois, conforme exposição de motivos do CPC/2015, seu objetivo é criar condições para que o juiz possa proferir decisão de forma mais rente à realidade fática subjacente à causa.”
Em vista disso, infere-se o magistrado, a depender das exigências do caso concreto e da natureza da sociedade empresária dissolvida, poderá determinar que o perito utilize de critérios além do valor patrimonial da sociedade empresária para elaboração do balanço de determinação.
Sobre o tema, é importante a lição de Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França e Marcelo Vieira von Adamek[13]:
“A imposição de um critério supletivo específico de avaliação pela lei processual (que, a rigor, não deveria se ocupar de tema eminentemente material) apresenta o inconveniente de tratar as sociedades como uma só realidade, olvidando que, a depender da atividade desenvolvida, poderá o mesmo se mostrar total- mente iniquo: uma sociedade de prestação de serviços intelectuais, uma siderúrgica e uma panificadora, para aqui ficar em poucos exemplos, não devem ser avaliadas a partir de uma mesma fórmula ou por uma só régua.
[…]
Quando se cogita de ativos intangíveis a primeira ideia que vem a mente é a marca; mas há outros vários elementos intangíveis, tão ou mais difíceis de avaliação isolada - como a capacidade gerencial dos administradores, o treinamento, o know-how acumulado pelos funcionários, mercê de gastos por vezes intensos em treinamento etc., que dificilmente são mensuráveis de forma segregada e que integram o aviamento, o qual pode e deve ser considerado, ainda quando se levante um balanço de determinação.
Por tudo isso, nossa convicção é a de que o critério de avaliação não pode ser estipulado unitariamente pelo legislador, de forma arbitrária, para toda e qualquer sociedade, ainda que seja por meio de regra dispositiva. Resta saber se os tribunais interpretarão o art. 606 do CPC com a mesma extensão do art. 1.031 do CC, se entenderão que doravante só uma única metodologia deve ser aplicada a todos os casos e, ainda nessa última situação, se para o cálculo do aviamento (goodwill ou "fundo de comércio") continuarão a aceitar, como amiúde ocorre, que outras metodologias sejam conjuntamente aplicadas (e, mais do que isso, se estas poderão apreender essa realidade como um todo ou se os intangíveis terão que ser sempre avaliados separadamente - solução, essa, que, a nosso ver, seria descabida) - de modo a que, ao final, talvez se chegue àquele mesmo resultado e, em última análise, a sensibilidade do avaliador continue a operar. No geral, trata-se de matéria sempre complexa.”
Nesse mesmo sentido, é o entendimento de Alfredo de Assis Gonçalves Neto[14]. Para o renomado comercialista, a natureza da atividade empresarial e/ou intelectual exercida pela sociedade empresária não só pode, como deve determinar os critérios para apuração de haveres. Observe-se:
“Não me parece possível firmar uma posição prévia e uniforme a respeito, se pela análise de cada caso concreto, onde devem ser dimensionadas as particularidades que poderão justificar ou não a inserção do fundo de comércio-melhor dizendo do aviamento no cálculo do valor da quota do sócio em relação ao qual é rompido vínculo societário.
Nas sociedades que tem por objeto o exercício de profissões regulamentada o fundo de comércio é uma grandeza difícil de determinar, já que, normalmente prevalece o vínculo pessoal entre o socio e o cliente. Tercio Sampaio Ferraz Junior teve oportunidade de abordar o tema, na análise de um caso concreto: "Um escritório nesse sentido, não tem um fundo de comércio, mas um centro de competência que resulta da atividade de cada profissional" (Da inexistência de fundo de comércio sociedades de profissionais de engenharia. RDM, v.111, p. 45-51). Também sustente esse entendimento ao tratar das sociedades de advogados, dizendo que, em rega a apuração de haveres de socio que se desliga de uma sociedade de advogados não comporta determinação do valor do fundo de comércio, pois ela não o possui. De fato, a sociedade não tem cliente, porque este se vincula a pessoa do advogado que The presta os serviços ou que coordena a atuação advocatícia. O que vale é a relação de confiança, que não decorre da organização, mas da qualificação e da competência profissionais (Sociedade de advogados, n. 66, p. 206).
[…]
Pode acontecer, porém, que o vínculo personalista, que liga o cliente ao presta dor de serviços intelectuais, não se apresente em algumas situações concretas. Isso acontece quando o fator estrutural do estabelecimento ao qual está vinculado esse profissional faz-se inegavelmente decisivo para o cliente. Tomando novamente o exemplo de um escritório de advocacia, que me provocou essa reflexão, vê-se que alguns que se dedicam à denominada advocacia de massa ou de volume, os quais atraem a clientela não em razão deste ou daquele profissional (personal goodwill). s da estrutura que permite atender numerosos casos tratando de temas repetitivos corporate goodwill). E há situações, em certo sentido opostas a essas, em que o fator estrutural também se faz decisivo ao cliente que busca atendimento integral (full service), insuscetível de ser prestado por um advogado isoladamente, como se dá nas operações complexas, que envolvem a atuação integrada de vários profissionais da advocacia ou de setores especializados.”
Diante do exposto, considerando o acima exposto, constata-se que o caso concreto e a disposição prevista nos artigos 606 e 607 do Código de Processo Civil conferem poderes instrutórios para o magistrado determinar o método para apuração de haveres.
4.2. Entendimento Jurisprudencial
O Colendo Superior Tribunal de Justiça, em 03/05/2015, ao julgar o Recurso Especial nº 1.335.619/SP[15], de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, decidiu que o critério econômico, em especial a metodologia do fluxo de caixa descontado, representa a melhor forma para se apurar o valor de uma empresa e dos haveres, conforme se verifica na ementa abaixo:
“DIREITO EMPRESARIAL. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. SÓCIO DISSIDENTE. CRITÉRIOS PARA APURAÇÃO DE HAVERES. BALANÇO DE DETERMINAÇÃO. FLUXO DE CAIXA. 1. Na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado. 2. Em caso de dissenso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está consolidada no sentido de que o balanço de determinação é o critério que melhor reflete o valor patrimonial da empresa. 3. O fluxo de caixa descontado, por representar a metodologia que melhor revela a situação econômica e a capacidade de geração de riqueza de uma empresa, pode ser aplicado juntamente com o balanço de determinação na apuração de haveres do sócio dissidente. 4. Recurso especial desprovido.”
Em referido voto condutor, a D. Relatora, fundamentando a viabilidade do método do fluxo de caixa descontado, concluiu que: “se na alienação de participação societária se aceita de forma pacífica que o valor de mercado das quotas seja apurado mediante aplicação da metodologia do fluxo de caixa descontado, não se vislumbra motivo para que esse mesmo método não seja utilizado na apuração de haveres do sócio retirante. Afinal, não há como reembolsar de forma digna e justa o sócio dissidente sem incluir na apuração de haveres a mais valia da empresa no mercado.”
Entretanto, a própria Terceira Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 1.877.331[16], de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi – cujo voto vencedor foi do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva –, prevaleceu o entendimento de que o método do fluxo de caixa descontado deve ser desconsiderado como método de apuração de haveres, conforme se verifica na ementa abaixo:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. SOCIEDADE EMPRESÁRIA LIMITADA. DISSOLUÇÃO PARCIAL. SÓCIO RETIRANTE. APURAÇÃO DE HAVERES. CONTRATO SOCIAL. OMISSÃO. CRITÉRIO LEGAL. ART. 1.031 DO CCB/2002. ART. 606 DO CPC/2015. VALOR PATRIMONIAL. BALANÇO ESPECIAL DE DETERMINAÇÃO. FUNDO DE COMÉRCIO. BENS INTANGÍVEIS. METODOLOGIA. FLUXO DE CAIXA DESCONTADO. INADEQUAÇÃO. EXPECTATIVAS FUTURAS. EXCLUSÃO. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a definir se o Tribunal de origem, ao afastar a utilização da metodologia do fluxo de caixa descontado para avaliação dos bens imateriais que integram o fundo de comércio na fixação dos critérios da perícia contábil para fins de apuração de haveres na dissolução parcial de sociedade, violou o disposto nos artigos 1.031, caput, do Código Civil e 606, caput, do Código de Processo Civil de 2015. 3. O artigo 606 do Código de Processo Civil de 2015 veio reforçar o que já estava previsto no Código Civil de 2002 (artigo 1.031), tornando ainda mais nítida a opção legislativa segundo a qual, na omissão do contrato social quanto ao critério de apuração de haveres no caso de dissolução parcial de sociedade, o valor da quota do sócio retirante deve ser avaliado pelo critério patrimonial mediante balanço de determinação. 4. O legislador, ao eleger o balanço de determinação como forma adequada para a apuração de haveres, excluiu a possibilidade de aplicação conjunta da metodologia do fluxo de caixa descontado. 5. Os precedentes do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema demonstram a preocupação desta Corte com a efetiva correspondência entre o valor da quota do sócio retirante e o real valor dos ativos da sociedade, de modo a refletir o seu verdadeiro valor patrimonial. 6. A metodologia do fluxo de caixa descontado, associada à aferição do valor econômico da sociedade, utilizada comumente como ferramenta de gestão para a tomada de decisões acerca de novos investimentos e negociações, por comportar relevante grau de incerteza e prognose, sem total fidelidade aos valores reais dos ativos, não é aconselhável na apuração de haveres do sócio dissidente. 7. A doutrina especializada, produzida já sob a égide do Código de Processo Civil de 2015, entende que o critério legal (patrimonial) é o mais acertado e está mais afinado com o princípio da preservação da empresa, ao passo que o econômico (do qual deflui a metodologia do fluxo de caixa descontado), além de inadequado para o contexto da apuração de haveres, pode ensejar consequências perniciosas, tais como (i) desestímulo ao cumprimento dos deveres dos sócios minoritários; (ii) incentivo ao exercício do direito de retirada, em prejuízo da estabilidade das empresas, e (iii) enriquecimento indevido do sócio desligado em detrimento daqueles que permanecem na sociedade. 8. Recurso especial não provido.
Em citado voto condutor, o D. Revisor, fundamentando a inviabilidade do método do fluxo de caixa descontado, concluiu que: “Na determinação do preço a pagar ao sócio retirante, por outro lado, só haverá encontro de vontades se estipulada cláusula contratual prevendo o cálculo na respectiva apuração de haveres. Caso contrário, ocorrerá imposição de valor, que deve ser, por força da lei, da doutrina e da jurisprudência, o mais próximo possível do real, ou seja, sem elementos arbitrários como as prognoses acerca de eventos futuros e incertos”.
Diante do exposto, considerando as jurisprudências acima expostas, verifica-se que a questão da possibilidade de aplicar o método de fluxo de caixa descontado na apuração de haveres está longe de ser pacificada, o que confere ao magistrado o poder de orientar a apuração de haveres de acordo com sua convicção e a necessidade do caso concreto.
4.3. Da possibilidade de aplicar o método de fluxo de caixa descontado na apuração de haveres
O fluxo de caixa descontado é uma técnica de avaliação financeira que leva em consideração o valor do dinheiro no tempo. A ideia é que o dinheiro disponível hoje vale mais do que o mesmo valor que será recebido no futuro, pois ele pode ser investido e gerar rendimentos ao longo do tempo.
Sobre o tema, é pertinente a lição de Marcus Elidius Michelli de Almeida e Marcela Silbiger de Stefano que, ao analisarem o método do fluxo de caixa descontado segundo a jurimetria, concluíram que referido método permite uma avaliação muito mais ampla se comparado ao método contábil tradicional [17]:
“Durante a pesquisa analisamos cada um dos métodos e concluímos que a aplicação do fluxo de caixa permite uma avaliação muito mais ampla da empresa em comparação com o método contábil, pois são levados em consideração os ativos tangíveis e intangíveis da sociedade, maximizando-se sua capacidade de geração de riqueza, bem como a ampla verificação do passivo, interpretando o perito a dinamicidade e a real produção da empresa naquele momento específico. Embora a avaliação econômica envolva certa incerteza, a análise contábil da empresa distorce a real conjuntura da sociedade, a qual é falsamente liquidada, abstraindo certos elementos essenciais à respectiva valoração, como, por exemplo, o fundo de comércio e a clientela.
Em relação, especificamente, aos valores intangíveis, inobstante o entendimento de alguns doutrinadores pela não inclusão de alguns dos bens incorpóreos no cálculo do ativo, entendemos que os referidos valores integram o patrimônio da empresa, sendo diferencial de seu sucesso e das atividades desenvolvidas. De fato, o entendimento mais elaborado indica a necessidade de apuração destes bens, a qual deverá ser feita em conjunto:
[…]
Concluindo, entendemos ser lógica e correta a opção pelo método que atribua maior (e justo) valor à sociedade, cabendo ao juiz e ao perito a verificação da hipótese mais adequada para apurar os haveres.”
Nessa técnica, projeta-se o fluxo de caixa futuro esperado de um negócio ou investimento e, em seguida, desconta-se o valor desses fluxos de caixa para o seu valor presente, utilizando uma taxa de desconto que leva em conta o custo de oportunidade de investir o dinheiro em outra oportunidade.
Por esse motivo, em outro trabalho, Marcus Elidius Michelli de Almeida[18] defende novamente que o método do fluxo de caixa descontado é o melhor método para encontrar o valor da empresa:
“É inegável que a empresa possui um valor de mercado deveras superior ao que consegue obter numa simples análise contábil como se dissolução total fosse. A propósito, é oportuna a manifestação de Rocco, quando menciona que a partir do momento em que 'a organização dos vários elementos da produção atinge um certo grau de eficiência, o valor do complexo organizado é superior ao da soma dos diferentes elementos que o compõem'. A apuração deve ser sempre da forma mais ampla possível, levando em conta o fundo de comércio, os bens corpóreos e incorpóreos, o goodwill da empresa.
No nosso entender, é necessário que o aplicador da lei, seja ele juiz, advogado, árbitro ou perito, volte os olhos para outros critérios de avaliação que representem o valor real e justo da sociedade, que muitas vezes pode ser apurado pelo critério de avaliação de empresa com base no fluxo de caixa descontado trazido a valor presente. É cristalino, em toda a literatura contábil e econômica, que o critério de fluxo de caixa descontado é hoje o melhor método para encontrar o valor da empresa, sendo uma tecnologia científica contábil.”
Por outro lado, Antonio Augusto Tiburcio e Michel Glatt[19] defendem que o método do fluxo de caixa descontado pode ser aplicado em conjunto com o método do valor patrimonial:
“De fato, não há como eliminar a incerteza na aplicação do fluxo de caixa descontado, que, contudo, também está presente no balanço de determinação - sobretudo ao se mensurar os ativos intangíveis. O que se apura é o que seria provável, com amparo na estatística, já que não há certeza quanto ao futuro. E mais, como uma concessão pela utilização do critério, existe a alternativa de se utilizar estimativas conservadoras ou até pessimistas, acerca da geração de recursos da empresa.
Aliás, no contexto de um processo judicial, nem sempre a aplicação do fluxo de caixa descontado será tão abstrata. Isso porque, entre a data da resolução da sociedade que será o marco para a avaliação - e a data da realização da perícia, pode ter decorrido um longo lapso temporal. Nesses casos, pode-se consultar as demonstrações de resultado ou, se houver, dos fluxos de caixa da sociedade e utilizar, em alguma medida, aqueles dados como parâmetros.
[…]
O critério do fluxo de caixa descontado não precisa ser aplicado sozinho. Pode ser conjugado não apenas com a avaliação patrimonial, mas também com a avaliação relativa. De fato, existe o risco de a comparação ser realizada com as sociedades erradas ou de o negócio subjacente ser único, mas a conjugação dos métodos diminui o risco de erros. Para aproximar o método da avaliação relativa da linguagem jurídica, pode-se pensar naquelas outras operações como precedentes que se referem não a situações idênticas, mas talvez próximas o suficiente para a sua aplicação ao caso, com as devidas adaptações.”
Nesse sentido, é o entendimento de Cristiano Padial Fogaça Pereira[20], ao defender que o método do fluxo de caixa descontado pode ser aplicado em conjunto a outros métodos:
“Embora o fluxo de caixa descontado seja uma demonstração contábil diversa do balanço de determinação, já há Resolução do Conselho Federal de Contabilidade, sob número 1121/08, nos números 53 e 54, no sentido de admitir plenamente o conceito de fluxo de caixa para avaliação do valor real de empresas, de sorte que o fluxo de caixa descontado pode integrar o balanço de determinação. Ou seja, não são métodos excludentes, ao contrário, o free cash flow (FCF) ou fluxo de caixa descontado e o balanço de determinação, de modo que o fluxo de caixa descontado é uma rubrica a ser consignada no balanço de determinação.
Quanto maior o valor da rubrica "fluxo de caixa descontado" no bojo do balanço de determinação obviamente tanto maior será sua relevância no computo final dos haveres. Se o FCF for inexpressivo, não exercerá grande reflexo no cálculo. No entanto, a despeito de seu valor ser ou não proporcionalmente alto no contexto do balanço, tal rubrica poderá ali ser alocada sempre.”
[...]
Sob nosso sentir, cada atividade econômica poderá demandar uma análise própria do cálculo de apuração de haveres, ou seja, uma metodologia capaz de trazer, ao cálculo, o maior valor para aquela atividade. Entendemos também que o valor do aviamento deve ser levado em consideração e integrar o balanço de determinação, podendo ser calculado pelo fluxo de caixa descontado.”
Por fim, importante destacar que, assim como na jurisprudência, na doutrina tem entendimento de que o método de fluxo de caixa descontado é incompatível com a apuração de haveres. Sobre o tema, é importante trazer à baila o entendimento de Eduardo Azuma Nishi[21]:
“Muito se fala sobre a adoção do método do fluxo de caixa descontado para melhor avaliar o valor de um negócio ou de uma empresa. Tal metodologia pressupõe a avaliação baseada no fluxo de caixa esperado nos anos seguintes, portanto, avaliação tendo como critério o valor econômico' das quotas ou ações, 'com mira no futuro', nos dizeres de Fábio Ulhoa. Tal metodologia não tem abrigo nos critérios expressos no artigo 606 do CPC nem no artigo 1.031 do CC, que consideram a história da sociedade e não o seu futuro, a despeito de algumas respeitadas e balizadas posições doutrinárias.
Assim, não há que se falar em avaliação das quotas sociais baseada na perspectiva futura de resultados da sociedade, pelo menos não é o que a Lei define como o critério legal, na falta de estipulação contratual a respeito.”
Desta feita, verifica-se que, tanto para a doutrina como para a jurisprudência, a aplicação do método do fluxo de caixa descontado na ação de dissolução parcial de sociedade não é pacífica, pois a utilização de referido método pode resultar em justiça para o sócio retirante, como também pode resultar em injustiça para os sócios remanescentes.
5.Conclusão
O presente trabalho objetivou demonstrar os poderes instrutórios do juiz para determinação do(s) método(s) para apuração de haveres.
Pois bem. Analisando as disposições constantes no artigo 1.031 do Código Civil e nos artigos 606 e 607 do Código de Processo Civil, resta cristalino que valor patrimonial pode servir de parâmetro para o perito elaborar o balanço de determinação.
Entretanto, o mesmo não ocorre quando o método de apuração de haveres é o fluxo de caixa descontado, pois referido método pode implicar em valoração das quotas do sócio retirante, eis que se trata de um método de avaliação que se baseia na projeção do fluxo de caixa futuro esperado de uma empresa, em que ocorre o desconto a uma taxa de juros adequada para se chegar a um valor presente líquido da empresa.
Desta forma, vislumbro que o método de fluxo de caixa descontado pode ser definido como parâmetro pelo magistrado; entretanto, a sua utilização deve ser justificada pelo juiz ou então aplicada em conjunto com outros métodos, sobretudo o valor patrimonial para a data da dissolução da sociedade empresarial.
Em recente julgado, o Colendo Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar o Agravo de Instrumento nº 2108653- 96.2022.8.26.0000[22], de Relatoria do Desembargador Fortes Barbosa da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, manteve na íntegra a decisão de primeiro grau que delimitou a apuração de haveres através da conjugação dos métodos do fluxo de caixa descontado e do valor patrimonial e, ainda, determinou que o perito deverá apurar os livros contábeis dos últimos 20 (vinte) anos, conforme se verifica na ementa abaixo:
“Sociedade Limitada - Ação de dissolução parcial de sociedade e de apuração de haveres julgada parcialmente procedente Ajuizamento de ação declaratória, objetivando o reconhecimento de distribuição incorreta de quotas no contrato social, com trâmite conjunto Solução parcial do mérito, decretada a dissolução parcial da sociedade Determinação da produção de prova pericial, com o fim de serem apurados haveres do sócio retirante e para a verificação da real participação societária do autor a partir de retiradas e contribuições de cada sócio diante da pessoa jurídica Delimitação do período da apuração em 20 (vinte) anos e determinação da adoção de dois critérios de avaliação (puramente patrimonial e de fluxo de caixa descontado) Inconformismo quanto ao período de abrangência da perícia Pedido formulado na ação declaratória remissivo ao período delimitado no “decisum” Apuração de fatos pretéritos justificada Adoção dos dois critérios contábeis determinados, visando seja possibilitada comparação final Possibilidade Observância de circunstâncias concretas Jurisprudência do STJ Decisão mantida Recurso desprovido.”
Nesse caso em concreto, a Turma Julgadora entendeu ser possível a conjugação dos dois métodos – in casu, os métodos do fluxo de caixa descontado e do valor patrimonial –, pois o sócio retirante evidenciou que os sócios remanescentes desviaram capital da empresa, o que, inclusive, resultou na quebra da affectio societatis.
Desta forma, objetivando que a prova pericial comprove o alegado desvio de capital, o magistrado determinou a apuração pelos dois métodos, para o fim de verificar eventual esvaziamento da empresa na data da dissolução da sociedade empresária.
Diante do exposto, considerando que a escolha do método do fluxo de caixa descontado como critério para apuração de haveres pode ensejar em enriquecimento ilícito tanto em desfavor do sócio retirante como em desfavor do sócio remanescente, entende-se que a adoção de referido método deve ser justificada com parcimônia pelo magistrado ou conjugado com outro método, assim como decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ao julgar o Agravo de Instrumento nº 2108653- 96.2022.8.26.0000.
6.Bibliografia
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[1] Mestranda em Direito pela FADISP. Pós-Graduada em Arbitragem pela Fundação Getúlio Vargas - FGV/SP (2019). Pós-Graduanda em “Acesso à justiça e o direito ao método adequado de solução de conflitos” pela Escola Brasileira de Direito – EBRADI. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2018). Advogada. E-mail: [email protected]. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/4350549079410179.
[2] Sobre o tema é pertinente a observação de Marcelo Martins Bertoldi: “O art. 1.031 do CC e o art. 606 do CPC de 2015 estabelecem que, na hipótese de omissão do contrato social, e obviamente não existindo acordo entre as partes, caberá ao juiz definir como critério de apuração dos haveres o valor patrimonial a ser apurado em balanço de determinação que nada mais e senão uma atualização das contas do balanço contábil da empresa. Por esse balanço de determinação serão reavaliados os ativos e passivos com o objetivo de se buscar o justo e real valor da sociedade, incluído aí bens tangíveis e intangíveis que compõem o chamado fundo de comércio. Entre os ativos e passivos, no momento em que é realizado o balanço de determinação, caberá incluir itens que não constam originalmente do balanço contábil da empresa, como pode ser o caso de bens intangíveis, ou até mesmo passivos até então não reconhecidos no balanço e que devem ser contingenciados.” In BERTOLDI, Marcelo Marco. Curso avançado de direito comercial. – 12 ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 168
[3] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial – vol.2: direito empresa. – 20 ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, edição eletrônica Proview.
[4] NERY JÚNIOR, Nelson. Código de processo civil comentado. / Nelson Nery Júnior, Rosa Maria de Andrade Nery. – 16 ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, edição eletrônica Proview.
[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – vol. II: procedimentos especiais. - 50 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2016., p. 354.
[6] PEREIRA, Cristiano Padial Fogaça. Dissolução parcial de sociedades limitadas. – São Paulo: Almedina, 2021, p. 71/72.
[7] GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa. – 10 ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 445.
[8]Op. Cit., p. 133.
[9] TJ-SP - AC: 10588043720208260100 SP 1058804-37.2020.8.26.0100, Relator: Cesar Ciampolini, Data de Julgamento: 10/08/2022, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 12/08/2022.
[10] MARCATO, Antonio Carlos. Procedimentos especiais. – 18 ed. - São Paulo: Atlas, 2020, p. 240 e ss.
[11] NISHI, Eduardo Azuma. Apuração de haveres: novos paradigmas na ordem jurídica. - São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 150/151.
[12] BELLOCCHI, Márcio. Breves reflexões sobre o art. 607, CPC. In Jurisdição e direito privado: estudos em homenagem aos 20 anos da Ministra Nancy Andrighi no STJ/ Coordenadores: José Flávio Bianchi, Rodrigo Gomes de Mendonça e Teresa Arruda Alvim. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 458/464.
[13] Op. Cit. p. 87/89.
[14] Op. Cit, p. 455/456.
[15] STJ - REsp: 1335619 SP 2011/0266256-3, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 03/03/2015, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/03/2015.
[16] STJ - REsp: 1877331 SP 2019/0226289-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 13/04/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/05/2021
[17] ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli. Questões polêmicas sobre a apuração de haveres na dissolução parcial de sociedade limitada: análise segundo a jurimetria. /Marcelle Silbiger de Stefano e Marcus Elidius Michelli de Almeida. In Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais | vol. 65/2014 | p. 333 - 347 | Jul - Set / 2014
[18]ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli. Sociedade limitada: causas de dissolução parcial e apuração de haveres. In Direito processual empresarial. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 551/552.
[19]TIBURCIO, Antonio Augusto. Critérios para apuração de haveres na dissolução parcial da sociedade à luz do CPC/2015: consensualismo, previsibilidade, e controle judicial mínimo. In Processo civil empresarial/ Coordenação: Marco Aurélio Bellizze Oliveira, Marco Antonio Rodrigues e Thiago Dias Delfino Cabral - São Paulo: Juspodium, 2022, p. 328/329.
[20] Op. Cit., p. 136/146.
[21] NISHI, Eduardo Azuma. Apuração de haveres: novos paradigmas na ordem jurídica. - São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 150/151.
[22] TJ-SP - AI: 21086539620228260000 SP 2108653-96.2022.8.26.0000, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 29/09/2022, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 29/09/2022
Advogado. Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP, em Direito Processual Civil pela Faculdade IBMEC e Mestrando pela PUC/SP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Daniel Pinheiro de. A apuração de haveres em ação de dissolução parcial de sociedade limitada: poderes instrutórios do juiz Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jan 2024, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/64459/a-apurao-de-haveres-em-ao-de-dissoluo-parcial-de-sociedade-limitada-poderes-instrutrios-do-juiz. Acesso em: 23 nov 2024.
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