Resumo: O presente trabalho explora a garantia constitucional da ampla defesa a partir da perspectiva de defesa dos Direitos Humanos. Para isso, discorri brevemente sobre a referida garantia, as principais normativas internacionais e nacionais sobre Direitos Humanos e propus, por fim, com a ajuda de teóricos sobre a ampla defesa e sobre os Direitos Humanos, uma interação entre esses dois grandes arcabouços políticos, legais e teóricos, especialmente no que diz respeito à garantia da ampla defesa para populações socialmente vulnerabilizadas socialmente pelo racismo, machismo, capacitismo, patriarcado, LGBTQIAPN+fobia, desigulades regionais e pelos próprios estados. Concluí que a garantia da ampla defesa não apenas fortalece o sistema de justiça, mas também contribui para a promoção e proteção dos Direitos Humanos em sua totalidade.
Palavras-chave: Ampla defesa; Direitos Humanos; enfrentamento às desigualdades; judiciário.
Abstract: This paper explores the constitutional guarantee of ample defense from a human rights perspective. To do this, I briefly discussed this guarantee, the main international and national regulations on Human Rights and finally proposed, with the help of theorists on the ample defense and Human Rights, an interaction between these two great political, legal and theoretical frameworks, especially with regard to the guarantee of the ample defense for socially vulnerable populations by racism, machismo, ableism, patriarchy, LGBTQIAPN+phobia, regional inequalities and by the states themselves. I concluded that the guarantee of a broad defense not only strengthens the justice system, but also contributes to the promotion and protection of human rights in their entirety.
Keywords: Broad defense; human rights; confronting inequalities; judiciary.
Sumário: 1. Introdução; 2. Considerações acerca da garantia constitucional da ampla defesa; 3. Ampla defesa e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos; 4. Ampla defesa e Direitos Humanos; 5. Conclusão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
Este artigo começou a ser gestado em uma aula da disciplina Garantias Constitucionais do Processo, ministrada pelo professor Sérgio Torres Teixeira, no Programa de Pós-graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em que um grupo de mulheres, do qual fiz parte, apresentou um seminário, no primeiro semestre de 2023 com reflexões sobre os princípios do contraditório, ampla defesa, igualdade processual e também acerca do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.
A parte que me coube no trabalho foi a de apresentar considerações acerca da garantia constitucional da ampla defesa. Durante meus estudos para a apresentação do seminário, acabei, sem nenhuma intenção, pelo menos consciente, conectando esta garantia constitucional, aos meus estudos em Direitos Humanos. Não consigo pesquisar sem este norte, pois, as minhas vivências pessoais e profissionais me levaram por este caminho. Não por acaso, a linha de pesquisa a qual estou vinculada no PPGD da UFPE é a 3.1, Justiça e Direitos Humanos na América Latina.
Dito isso, na minha apresentação do seminário narrado, fiz reflexões que ligavam o princípio da ampla defesa aos Direitos Humanos.
Além disso, a partir de uma reflexão feita por Guilherme César Pinheiro, que observei nos estudos para a apresentação, compartilhei a dificuldade em coletar materiais de estudo sobre a ampla defesa sem que estivessem atrelados ao contraditório, ou seja, tendo ela como o centro de debates e reflexões, com o aprofundamento que lhe é devido
Ao final da apresentação, e a partir destas reflexões, lancei um convite para a turma, de que escrevessem sobre a ampla defesa porque há um vasto espaço para debatê-la, doravante a constatação de que ela está sendo subutilizada pelos estudos acadêmicos.
Até o momento da finalização deste trabalho, agosto de 2023, não sei se meus colegas de turma aceitaram meu convite, até porque cada um(a) tem seus interesses particulares no campo das garantias constitucionais processuais, mas, como visto aqui, eu aceitei o desafio lançado por mim. Provavelmente, o objetivo da minha fala na apresentação do trabalho era esse mesmo.
No texto artigo aqui elaborado, aliei a necessidade de debruçar-me sobre a ampla defesa, a partir da percepção do potencial dessa garantia e a escassa literatura sobre o tema, à reflexões sobre os Direitos Humanos, especialmente no que diz respeito à Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que traz em suas garantias judiciais vários dispositivos que podem ser atrelados à ampla defesa.
Para isso, discorri brevemente sobre a garantia constitucional da ampla defesa, com a ajuda de professores que formularam conceitos clássicos sobre o princípio e identifiquei o cerne da ampla defesa, a fim de verificar se haveria conexão com os Direitos Humanos.
Nessa discussão trouxe também a perspectiva constitucional da ampla defesa, a partir do disposto na Constituição de 1988, marco nacional dos Direitos Humanos no Brasil, acerca do princípio e verifiquei que ela está garantida em outras importantes normativas infraconstitucionais brasileiras, como os códigos de processo civil e penal, e nas leis de Execução Penal e Estatuto da Advocacia.
Depois, utilizei o marco internacional dos Direitos humanos, qual seja a Declaração Universal dos Direitos Humanos para verificar se o seu texto trazia o direito à ampla defesa como um direito inerente às pessoas desde o seu nascimento, independente de sua nacionalidade, religião, cor, raça, etnia etc.
Em seguida, observei outra normativa internacional de extrema importância, qual seja a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), aprovada em 1969 pelos Estados Membros da Organização dos Estados Americanos e ratificada pelo Brasil em 1992, que coloca os Direitos Humanos no centro dos debates políticos e institucionais da região, para verificar se se a ampla defesa estava ali como Direito Humano.
A partir dos elementos que foram coletados e trazidos ao texto, visualizei uma importante conexão entre a garantia da ampla defesa e os Direitos Humanos e discorri sobre essa interação e possibilidades de trabalhar com esses dois marcos teóricos, em conjunto. Trouxe exemplos de que ampla defesa precisa estar conectada aos Direitos Humanos
Também trouxe um apontamento feito pelo filósofo Sílvio Almeida dee que o racismo, e podemos verificar que outras desigualdades são estruturantes na nossa sociedade e que o Direito precisa enfrentar essas questões.
Por fim, trouxe considerações finais pautadas nos debates formulados ao longo do artigo, especialmente da verificação da garantia da ampla defesa com um Direito Humano que, por assim o ser, é indivisível conectada aos demais direitos trazidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Convenção sobre Direitos Humanso0 e pela nossa Constituição Federal.
2. Considerações acerca da garantia constitucional da ampla defesa
A Constituição Federal brasileira de 1988 dispõe em seu Art. 5º, inciso LV, que está incluído no Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I, Dos Direitos e Deveres Individuais E Coletivos que, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Após essa menção, a nossa carta política, trata da ampla defesa, de forma solitária, sem o contraditório precedendo-lhe, em uma dezena de vezes, todas essas em relação à garantia, de que em processos administrativos contra servidores públicos, deputados ou juízes, seja ela assegurada.
Isso não retira ou diminui a importância da ampla defesa para o seio constitucional, pelo contrário, o fato de ela estar inserida no rol das Garantias e Direitos Fundamentais já lhe concede prestígio o suficiente para que seja largamente conhecida, citada e reivindicada, mas, normalmente como uma dupla com o contraditório.
Como já anunciado no capítulo introdutório deste artigo, Guilherme César Pinheiro, apontou uma importante reflexão, da qual, transcrevo e faço destaques em itálico:
A literatura jurídica especializada no assunto centrou estudos sobre o direito ao contraditório, preterindo a importância à ampla defesa. Delfino e Rossi (2013, p. 229) alertam que o contraditório adquiriu prevalência sobre as outras garantias processuais. De fato, muito se escreve a respeito da teoria do processo como procedimento em contraditório e das garantias decorrentes de sua compreensão dinâmica. Talvez isso tenha ocorrido porque tais estudos marcaram a virada democrático-constitucional do processo, sedimentando as bases teóricas necessárias à superação da ideia autoritária de processo como relação jurídica entre pessoas: – autor, réu e juiz (BÜLOW, 2008, p. 9-12) –, e instrumento de exercício da jurisdição (PINHEIRO, 2022, p. 100).
Nesse sentido vale conceituar essas duas garantias, a fim de diferenciá-las. Segundo o ministro Alexandre de Moraes,
ampla defesa é a garantia é dada ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade, já o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito de defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor (MORAES, 2013, p. 109).
Além disso, assevera Jorge que, como no contraditório, a ampla defesa carrega em si prerrogativas, que vão desde a defesa pessoal e a defesa técnica, passando pela acusação clara e precisa, a concessão de tempo e meios adequados para a preparação da defesa, até o direito de não ser obrigado a depor contra si. (JORGE, 2007, p.41).
Importante apontamento faz o renomado processualista brasileiro Fredie Didier Jr. Em seu livro “Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito processual Civil, Parte Geral e de Conhecimento” acerca do princípio da ampla defesa. Segundo ele, a ampla defesa garante o próprio exercício do contraditório (DIDIER JR, 2015, pág. 85).
Desse modo, a ampla defesa dá ao indivíduo não apenas o direito de se defender, mas também de participar ativamente do processo, assegurando-lhe uma oportunidade justa e equitativa de contraditar as acusações e argumentações apresentadas contra si.
O ordenamento jurídico brasileiro precisa seguir o princípio da ampla defesa porque ele está garantido na Constituição Federal. Desse modo, outras importantes legislações do país assim a seguem, como por exemplo, o Código de Processo Civil[1] (Lei 13,105 de 16 de Março de 2015) em seus artigos 7º e seguintes, que estabelece os princípios fundamentais do processo civil, incluindo o princípio da ampla defesa. É ele quem regula o procedimento nos processos judiciais cíveis.
No mesmo sentido, o Código de Processo Penal[2] (Decreto-lei n° 3.689 de 3 de Outubro de 1941), em seus artigos 261 e seguintes, estabelece as regras e garantias processuais no âmbito criminal, incluindo o direito à ampla defesa para os acusados em processos penais.
A Lei de Execução Penal[3] (Lei n° 7.210 de 11 de Julho de1984) regula a execução das penas privativas de liberdade e das medidas de segurança no Brasil, estabelecendo os direitos e garantias dos presos, incluindo o direito à ampla defesa em processos administrativos e judiciais relacionados à execução penal.
O Estatuto da Advocacia e da OAB[4] (Lei 8.906 de 4 de Julho de 1994) dispõe sobre o exercício da advocacia no Brasil e estabelece as prerrogativas dos advogados e advogadas, incluindo o direito de exercer a ampla defesa em favor das pessoas a quem eles e elas representam.
Vimos neste capítulo que a ampla defesa é um dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, estabelecido tanto na Constituição Federal quanto em diversas leis do país, uma vez que, porque além de estar presente no texto constitucional, foi esculpido nas principais legislações brasileiras acerca de procedimentos judiciais.
Para a Constituição Brasileira e todas as leis do Brasil, a ampla defesa é essencial para garantir a justiça e a equidade nos processos legais. Ela está intimamente ligada ao princípio do devido processo legal, que visa garantir que todas as partes envolvidas em um processo tenham direitos iguais perante a lei e sejam tratadas de forma justa e imparcial.
Desse modo, já é de se perceber que a garantia da ampla defesa está intrinsecamente ligada à defesa da liberdade, dignidade, é uma defesa da cidadania e da condição de ser humano, questões essas que também são muito caras aos Direitos Humanos.
3. Ampla defesa e as principais normativas nacionais e internacionais sobre os Direitos Humanos
Vimos que a ampla defesa é um importante princípio constitucional que garante a um indivíduo a busca por justiça através de uma participação processual ativa. Agora, veremos que este mesmo princípio que está esculpido em nossa Constituição Federal já estava escrito em importantes mecanismos de Direitos Humanos antes mesmo de 1988.
Há um consenso entre os estudiosos e estudiosos dos Direitos Humanos que, no plano internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um marco teórico, político e legal no tema. Proclamada em 10 de dezembro de 1948, no pós-segunda guerra mundial e regimes liberticidas e totalitários, essa normativa surgiu com a tarefa de que novas guerras e horrores desumanos fossem evitados (TOSI, 2005, pág. 14).
Leonardo Jun Ferreira Hidaka afirma que a Declaração citada é considerada o “marco inicial do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e consequentemente, da tutela universal dos direitos humanos, que visa à proteção de todos os seres humanos, independente de quaisquer distinções” (HIDAKA, 2002, pág. 8).
A garantia da ampla defesa aparece na declaração Universal dos Direitos Humanos relacionada à garantia de um julgamento justo. O artigo 10 da referida Declaração, por exemplo, estabelece que
“Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”[5].
Este artigo destaca a importância de um julgamento justo, no qual todas as partes envolvidas tenham a oportunidade de ser ouvidas e de apresentar sua defesa perante um tribunal competente e imparcial.
Além disso, o dispositivo 1 do 11 da Declaração afirma que
"Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. (grifei)
Aqui, vemos a garantia da presunção de inocência no início do dispositivo, e, em seguida, mais explicitamente, a garantia à ampla defesa. Mesmo sem a expressão “ampla”, o contexto nos permite dizer que a garantia está presente na Declaração se trata deste princípio, uma vez que a expressão “todas as garantias necessárias à sua defesa” tem o mesmo dispositivo do princípio aqui estudado.
Importante dizer que os direitos citados na Declaração Universal dos Direitos Humanos são indivisíveis, interconexos, e indissociáveis uns dos outros, como bem nos alertou Giuseppe Tosi (TOSI, 2005, pág. 23), o que nos faz concluir que a ampla defesa é um princípio extremamente importante para a condição de ser humano, oposto a todos e todas, inclusive ao estado.
Dessa forma, os dispositivos, princípios e o próprio texto da Declaração dos Direitos Humanos nos fornecem uma base sólida para a proteção do direito de defesa em diversos contextos, tanto no âmbito criminal quanto em outras esferas da justiça. Assim, a DUDH serve como um documento fundamental na promoção dos direitos humanos e na garantia de um julgamento justo para todas as pessoas.
Outro importante marco para os Direitos Humanos na região brasileira é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) aprovada em 22 de novembro de 1969 pelos Estados Membros da Organização dos Estados Americanos e ratificada pelo Estado brasileiro em 1992, através do Decreto n° 678/1992 que reafirma o propósito de consolidar no continente um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do ser humano.
O documento instituiu o denominado Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), composto por dois órgãos principais: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). O Brasil reconheceu a competência jurisdicional contenciosa da Corte IDH para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998 através do Decreto n. 4.463/2002 (BRASIL, 2022).
Nesse sentido, é importante destacar que a referida Convenção traz em seu Artigo 8, diversas garantias judiciais, das quais destaco em itálico, palavras do texto que conectam o dispositivo à ampla defesa. Seguem abaixo:
Artigo 8. Garantias judiciais
1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
a. direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;
b. comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c. concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
d. direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
e. direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;
f. direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;
e
h. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.
Interessante notar que o Artigo 8 da Convenção em análise menciona o “direito a ser ouvida”, uma vez que, de nada adianta a melhor defesa, provas de inocência se não há a disposição de que a pessoa seja escutada e seus argumentos levados em consideração. Essa interpretação da garantia de ser ouvida, a partir da perspectiva da ampla defesa, leva-nos a reforçar a necessidade de visualizarmos as garantias judiciais ou processuais, em consonância com os Direitos Humanos.
Após caminhar pela presunção de inocência, o Artigo 8 apresenta o que chamou de garantias mínimas de todas as pessoas acusadas de um delito. Logo de início, mais uma vez, de nada adianta ampla defesa, se ela não é escutada, ou ainda, não há ampla defesa sem que os argumentos da pessoa acusada sejam compreendidos. Nesse sentido, a língua, comunicação da pessoa precisa ser entendida, seja ela qual for, logo, a Convenção acertou neste dispositivo.
O tempo também é necessário para uma ampla defesa. A produção de provas através de qualquer meio, escrito, mídia, testemunhas pedem um intervalo razoável para a sua confecção. Junto ao tempo, a Convenção destaca como garantia mínima judicial, a informação dos meios adequados para a defesa.
Além disso, o Artigo 8 também é categórico ao dizer que o Estado precisa garantir um defensor às pessoas acusadas que não têm condições materiais para contratar um profissional de sua escolha para defender-lhes. Aqui há espaço para a defesa do fortalecimento da Defensoria Pública.
A Convenção traz como garantia mínima, o direito a inquirir testemunhas presentes no tribunal que, além da obtenção de prova para a ampla defesa, também pode configurar um direito à possibilidade de ressignificação dos fatos apresentados por quem acusa, para que possam ser confrontados a partir de outras vozes, a fim de que a defesa seja ampla.
Percebemos também no trecho do artigo em tela, a afirmação categórica de que “a confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza”. Esse compromisso, extravasa a esfera judicial da ampla defesa. Ele foi reafirmado pela Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, ratificada pelo Estado brasileiro através do Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989. Mais um momento em que garantias judiciais são fortalecidas em consonância com os Direitos Humanos.
Pelo exposto, verificamos a expressão da ampla defesa na Convenção Americana sobre Direitos Humanos em uma significativa variedade, a partir da perspectiva dos Direitos Humanos.
Um exemplo emblemático da aplicação desse princípio é o caso "Ximenes Lopes vs. Brasil"[6], julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujo objetivo é aplicar e interpretar a Convenção Americana. Nesse caso, a Corte condenou o Estado brasileiro por violações aos direitos humanos de pacientes psiquiátricos, incluindo a falta de acesso efetivo à defesa e à assistência jurídica adequada durante os processos de internação compulsória. A decisão da Corte ressaltou a importância da ampla defesa como um elemento essencial para garantir a proteção dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade.
No âmbito nacional, o marco dos Direitos Humanos do Brasil é a Constituição Federal de 1988 que surgiu após o fim da ditadura militar no país, cujo fim ocorreu em 1985. A carta política refletiu em seu texto os debates acerca dos Direitos Humanos que já estavam consolidados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
O tratamento pela Constituição Federal de 1988 à ampla defesa foi tratado também no tópico anterior. Verificar que a ampla defesa está nesta carta que, como pontuado, segue as principais normativas internacionais de Direitos Humanos é um indício da conexão da ampla defesa com os Direitos Humanos no âmbito internacional e nacional.
4. Ampla defesa e Direitos Humanos
Diante dos elementos trazidos nos tópicos anteriores, verifiquei a existência de uma importante conexão entre a garantia da ampla defesa com os Direitos Humanos. Para que haja uma participação ativa, justa e equitativa no processo, como defendem a Constituição e a doutrina ao invocarem a ampla defesa, é necessário que o procedimento judicial garanta, através de seus atores e de suas previsões legais, o enfrentamento às desigualdades que possam existir na vida das suas partes. Isso, nada mais é do que atenção humanista do processo judicial.
Vale ressaltar a importância da igualdade de armas entre as partes no processo. Como dito, em uma sociedade marcada por desigualdades sociais e econômicas, é imprescindível que o sistema judiciário assegure que todas as partes envolvidas tenham acesso equitativo aos recursos e oportunidades necessários para exercerem plenamente seus direitos.
Isso implica, por exemplo, na disponibilização de tradutores e intérpretes para pessoas que não falam o idioma oficial do tribunal, ou na garantia de um ambiente seguro e livre de coação para testemunhas e partes vulneráveis, uma maneira de garantir a ampla defesa para as pessoas com deficiência auditiva, por exemplo, que tem, além da garantia deste princípio, a previsão nesse mesmo sentido prevista no Estatuto da Pessoa com deficiência, Lei 13.146, de 6 de Julho de 2015.
Outro exemplo da atenção aos Direitos Humanos ao lado da ampla defesa é, no enfrentamento à violência de gênero, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero[7]. O referido protocolo surgiu a partir da Resolução nº 492 de 17 de março de 2023 do Conselho Nacional de Justiça brasileiro que estabelece as diretrizes para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário através de um protocolo cujo objetivo é o de enfrentar as desigualdades de gênero e suas repercussões e consequências jurídicas.
No que diz respeito ao princípio da ampla defesa, por exemplo, o protocolo trás um exemplo de como este princípio deve ser utilizado em casos em que esteja se investigando a prática do tráfico transnacional, por exemplo, já que não raro, envolve estrangeiros(as) sem laços no território brasileiro e que enfrentam a barreira da língua, assegurando-se, entre outras coisas, a atuação de tradutores e intérpretes que garantam a plena compreensão de todo o processado.
O protocolo reconhece uma desigualdade de gênero para com as mulheres, percebida nos mais diversos âmbitos da vida e visa garantir que os julgamentos considerem adequadamente as questões de gênero, reconhecendo as diferentes formas como mulheres e homens podem experimentar e ser afetados pelo crime, pela justiça criminal e pelo processo judicial.
Uma das principais preocupações do protocolo é assegurar a ampla defesa para as mulheres envolvidas no sistema de justiça. Isso significa garantir que as mulheres tenham acesso a uma defesa robusta e eficaz, que respeite seus direitos e considere suas experiências específicas como mulheres.
O protocolo afirma estar alinhado aos objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 e 16 da Agenda 2023 da ONU, o primeiro visa a igualdade de gênero e este último, paz, justiça e instituições eficazes. Os ODS’s estão em consonância com os Direitos Humanos em nível internacional.
Nessa mesma perspectiva, o filósofo e jurista Silvio Almeida (2020, pág. 35) afirma que o racismo é estruturante no Brasil e que pessoas negras, indígenas, ciganas, atravessam o racismo no judiciário e, por consequência, devem ter sua ampla defesa afetada por esse mesmo estruturante da sociedade do país.
Silvio Almeida refere-se a uma forma de discriminação racial que está enraizada nas estruturas sociais, políticas e econômicas de uma sociedade. Em sua análise, Almeida argumenta que o racismo não se limita a atos individuais de preconceito ou discriminação, mas é também perpetuado e mantido por instituições e sistemas que reproduzem desigualdades raciais de forma sistemática (ALMEIDA, 2020, pág. 35).
O autor também faz uma importante consideração acerca de figuras importantes que utilizaram o Direito numa perspectiva antirracista, como a mulher escravizada Esperança Garcia que endereçava cartas às autoridades brasileiras, no século XVIII contra o sofrimento e a desumanidade causada pela escravização de pessoas negras (ALMEIDA, 2020, pág. 149.). Ou seja, o direito reproduz o racismo e precisa estar atento para enfrenta-lo, especialmente numa garantia essencial para pessoas negras como a ampla defesa.
Da mesma forma, percebemos como a ampla defesa precisa estar preparada para a garantia de que pessoas com deficiências variadas, como de locomoção, visão, audição, possam apresentar seus argumentos em processos em que porventura estejam como partes. Uma rápida observação no cotidiano do judiciário brasileiro é fácil contatar que não há um número suficiente de intérpretes da língua brasileira de sinais (LIBRAS) nem um grande treinamento no atendimento de pessoas com deficiência, o que pode ser uma mácula nesta garantia para essas pessoas.
Nesse sentido, também verificamos dificuldades na ampla defesa de pessoas hipossuficientes que não podem pagar seus(uas) defensores(as). Aqui o fortalecimento da Defensoria Pública está aliado à garantia da ampla defesa.
No mesmo sentido, as pessoas LGBTQIAPN+ não estão imunes aos preconceitos relacionados à orientação sexual que podem estar refletidos no judiciário. Esse poder precisa garantir que os Direitos Humanos dessas pessoas, aqui especialmente o da ampla defesa, seja garantido a partir das especificidades das vivências de cada uma delas.
5. Conclusão
A partir da análise realizada, é possível concluir que a garantia da ampla defesa está intrinsicamente ligada aos Direitos Humanos, tanto no âmbito nacional quanto internacional. Através de uma abordagem interdisciplinar que combina os princípios processuais com as normativas de Direitos Humanos, este trabalho demonstrou a importância de assegurar a todos os envolvidos em processos judiciais uma participação ativa, justa e equitativa. A ampla defesa não é apenas um direito processual, mas também uma defesa da liberdade, dignidade e condição de ser humano, estando diretamente relacionada à igualdade de armas entre as partes, à presunção de inocência e ao direito a um julgamento justo.
Pelo tratado neste artigo, vimos que a ampla defesa é um Direito Humano garantido na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos e um Direito fundamental esculpido na Constituição Federal de 1988. Dessa forma, ela precisa estar aliada à defesa dos Direitos Humanos, caso contrário, não será garantida para todas as pessoas, principalmente aquelas em condições de vulnerabilidade social.
A ampla defesa é um direito garantido pela Declaração que inaugura o Direito Internacional dos Direitos Humanos, qual seja a Universal de Direitos Humanos, nesse sentido, violar esta garantia é uma agressão direta a um direito considerado inerente à própria garantia de ser humano.
Na mesma perspectiva seguem a Convenção Americana de Direitos Humanos e a constituição Federal de 1988 ao garantirem a ampla defesa como direitos fundamentais à existência. A referida Convenção, por exemplo, traz detalhes enriquecedores para esta garantia, como a necessidade de meios adequados para esta defesa, defensores(as) públicos disponíveis a quem necessita etc.
Dessa maneira, essa importante garantia constitucional estará em ordem também com os mandamentos da carta política brasileira que, além de trazê-la como uma garantia fundamental, incorporou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos ao ordenamento jurídico do país. A ampla defesa de tão importante ao ser humano foi garantidas nas principais legislações brasileiras em matéria de direito processual, inclusive no Estatuto da Advocacia.
Verificamos que o princípio da ampla defesa tem terreno fértil para ser efetivado em conjunto com os Direitos Humanos no processo judicial e no judiciário, com exemplos exitosos como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.
No entanto, apesar dos avanços na proteção dos direitos humanos e da garantia da ampla defesa, ainda enfrentamos desafios significativos, especialmente no que diz respeito à efetivação desses direitos na prática. A falta de acesso à justiça, a morosidade dos processos judiciais e a falta de recursos adequados para a defesa são apenas algumas das questões que continuam a desafiar o pleno exercício da ampla defesa e dos direitos humanos em nossa sociedade.
Portanto, é fundamental que o Estado e a sociedade civil trabalhem em conjunto para promover a conscientização sobre a importância da ampla defesa e dos direitos humanos, bem como para fortalecer as instituições e os mecanismos de proteção desses direitos. Somente assim poderemos garantir que todas as pessoas tenham acesso igualitário à justiça e sejam tratadas com dignidade e respeito em todos os aspectos de suas vidas.
Em suma, a garantia da ampla defesa não apenas fortalece o sistema de justiça, mas também contribui para a promoção e proteção dos Direitos Humanos em sua totalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro / Jandaíra, 2020. 255 p.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 25 jul. 2023.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Convenção Americana sobre Direitos Humanos [recurso eletrônico]: anotada com a jurisprudência do supremo tribunal federal e da corte interamericana de direitos humanos. 2. ed. Brasília: F, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2022. 470 p. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaInternacional/anexo/STF_ConvencaoAmericanaSobreDireitosHumanos_SegundaEdicao.pdf. Acesso em: 05 ago. 2023.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e de conhecimento. 17. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. 1 v.
JORGE, André Guilherme Lemos. A efetividade dos Princípios Constitucionais do Contraditório e da Ampla Defesa no Inquérito Civil. Disponível em: http://livros01.livrosgratis.com.br/cp041079.pdf. Acesso em: 20 ago. 2019.
HIDAKA, Leonardo Jun Ferreira. Introdução ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. In: LIMA JUNIOR, Jayme Benvenuto. Manual de Direitos Humanos Internacionais: acesso aos sistemas global e regional de proteção dos direitos humanos. São Paulo: Loyola, 2002. p. 4-16. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=2313424. Acesso em: 13 abr. 2024.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2013. 940 p.
OLIVEIRA, L. A. DE. Os princípios do contraditório e da ampla defesa nas medidas de proteção à luz do estatuto da criança e do adolescente. Virtuajus, v. 5, n. 9, p. 310-325, 14 mar. 2021. Disponível em: Acesso em 15 ago. 2023.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 20 ago. 2023.
PINHEIRO, Guilherme César. Fundamentos teóricos e aspectos técnicos do direito à ampla defesa. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 59, n. 233, p. 99-115, jan./mar. 2022. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/59/233/ril_v59_n233_p99.
Acesso em: 05 ago. 2023.
TOSI, Giuseppe. Os Direitos Humanos: reflexões iniciais. In: TOSI, Giuseppe. Direitos Humanos: história, teoria e prática. João Pessoa: Universitária, 2005. p. 18-46. Disponível em: https://www.cchla.ufpb.br/ncdh/wp-content/uploads/2015/11/2005.DH_.-historia-teoria-pr%C3%A1tica.pdf. Acesso em: 13 abr. 2024.
NOTAS:
[1] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em 10/04/2024.
[2] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em 12/04/2024.
[3] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em 14/04/2024.
[4] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm. Acesso em 14/04/2024.
[5] Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em 13/04/2024.
[6] Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em 04/04/2024.
[7] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf. Acesso em 01/04/2024.
Mestranda em Teoria do Direito e Justiça no Programa de Pós Graduação em Direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE - 2016). Pesquisa Direitos Humanos, Justiça de Transição, Decolonialidade e processos constitucionais latino-americanos. É Técnica Judiciária no Tribunal de Justiça de Pernambuco e reúne experiência profissional em advocacia cível, processo legislativo e assessoria jurídica feminista, antirracista, anticapitalista e popular.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Josenira Ilze da Silva. A garantia da ampla defesa como Direito Humano Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2024, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/65222/a-garantia-da-ampla-defesa-como-direito-humano. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
Precisa estar logado para fazer comentários.