RESUMO: O principal escopo deste trabalho é analisar as formas de controle judicial frente a discricionariedade dada aos acordos de colaboração premiada. No intuito de alcançar a finalidade proposta, aborda-se o direito premial, em suas diferentes formas, em dois países, sendo que um deles utiliza o sistema da common law (Direito Anglo-Saxônico) e outro da civil law (Direito Romano-Germânico). Consequentemente, pretende-se enunciar as similitudes e diferenças entre prática da justiça premial no Brasil e institutos análogos na Itália e nos Estados Unidos, países que inspiraram o ordenamento brasileiro. Por fim, adentra-se nos poderes negociais do órgão de acusação e seus contornos, no intuito de se perquirir sobre as regras e institutos ligados aos ordenamentos jurídicos dos EUA e Itália que conferem um tratamento penal mais favorável à persecução penal, ou seja, que oferece informações úteis para que haja desmantelamento de agrupamentos criminosos ou que garanta uma justiça mais célere.
Palavras-chave: Colaboração Premiada. Controle Judicial. Sistemas Estadunidense e Italiano.
1 INTRODUÇÃO
A colaboração premiada, regulamentada no Brasil desde a edição da Lei 12.850/2013, vem sendo reconhecida como importante instrumento de combate à criminalidade organizada, de forma que o Supremo Tribunal Federal, vinha, de forma recorrente, proferindo decisões de forma a respeitar o pactuado, sem imiscuir em seu conteúdo, já que não cabe ao julgador o lugar das partes na realização do juízo de conveniência e oportunidade do acordo, o qual se relaciona com critérios de estratégia acusatória e investigativa.
Contudo, sobretudo após o avanço da de grandes operações sobre segmentos da classe política e da edição do Pacote Anticrime, a Lei nº. 13.964/19, passou-se a indagar se, no exercício do dever de analisar sua adequação, o juízo homologatório poderia culminar em um exame de mérito do acordo e qual os limites da discricionariedade na negociação de uma pena.
Para tanto, no intuito de vislumbrar um possível caminho a ser indicado, o presente trabalho pretende explorar o tratamento dado ao tema no direito estadunidense e no italiano, comparando-os com o regramento de amparo à justiça premial no Brasil, já que aqueles já acolheram a negociação em matéria penal muito antes de se pensar até mesmo na delação premiada, quanto mais no instituto da colaboração.
Isto porque o plea bargaining – negociações americanas de sentença criminal em que podem acontecer pela declaração de culpa do acusado ou pela declaração de que não haverá contestação da acusação – é aplicado nos EUA desde o século XIX, e o Patteggiamento foi adotado na Itália em 1988.
Sendo então o direito negocial em matéria penal um tópico contemporâneo do direito processual brasileiro, merece estudos que abranjam a compreensão das inspirações adotadas, bem como das práticas já antes estabelecidas em outros sistemas.
2 SISTEMAS JURÍDICOS
Embora o Brasil esteja ligado ao sistema de justiça romano-germânico, civil law, caracterizado pela existência de codificação de normas pelo Poder Legislativo, com ênfase na supralegalidade do texto constitucional e seu controle de constitucionalidade, a divisão entre o direito público e o privado, o predomínio da lei escrita e a atuação do Poder Judiciário restrita à interpretação e aplicação da Constituição e das leis (DANTAS, 2000, p. 196-202), houve o reconhecimento da influência de características do sistema de origem inglesa em pontos como a previsão da possibilidade de produção de julgados baseados em precedentes, com eficácia vinculante pelos tribunais superiores e de segundo grau, e com a maior autonomia conferida às partes envolvidas no sistema de justiça criminal para celebração de acordos em processos de negociação consensual.
Nos Estados filiados ao common law, como Inglaterra, País de Gales, Estados Unidos (exceto Louisiana) e Canadá (exceto Quebec), privilegia-se a prática consuetudinária, baseando-se em precedentes jurisprudenciais, costumes, regramentos suficientes a garantir uma estabilidade no sistema adotado (BECKE, 2018, p. 305).
Contextualizando a adoção desses dois modelos jurídicos penais, com o maior interesse acerca da delação premiada como meio de obtenção de prova, esclarece Antônio Henrique Graciano Suxberger e Demerval Farias Gomes Filho:
Além da expansão penal, a segunda metade do século XX e o início do século XXI são marcados, no cenário processual penal, pela introdução de instrumentos de justiça negocial nos modelos jurídicos penais do civil law, que, até então, possuíam maior incidência, desde o século XIX, nos moldes do common law. [...] Nos países de civil law, a introdução dos modelos de justiça penal negociada coincide com o período de expansão do direito penal que se inicia na segunda metade do século XX. O plea bargaining é aplicado nos EUA desde o século XIX (as negociações americanas de sentença criminal podem acontecer pela declaração de culpa do acusado ou pela declaração de que não haverá contestação da acusação); a Absprachen surge na Alemanha em 2009 e o Patteggiamento é positivado na Itália em 1988. [...] A Absprachen consiste em uma espécie de acordo que ocorre, geralmente, na fase judicial, entre o juiz e o acusado com o seu defensor, sem uma participação ativa do Ministério Público. [...] No modelo italiano do patteggiamento, as partes (acusação e defesa) estabelecem um acordo sobre a sentença e pedem ao juiz para aplicar a pena acordada. Compete ao magistrado fazer um juízo de legalidade, possuindo o poder de absolver o acusado se verificar a possibilidade diante da prova colhida. (GOMES FILHO; SUXBERGER, 2016, p. 383 -384).
Assim, numa inspiração do que ocorre nos países que adotaram a common law, ao privilegiar o próprio caso concreto para decisão, alguns países que adotaram o sistema da civil law passaram a conferir maior discricionariedade aos órgãos de persecução, observando, todavia, os limites da lei, razão pela qual os acordos de colaboração premiada são submetidos ao controle judicial horizontal, limitado ao juízo de delibação.
Como é cediço, nos países de tradição romano-germânica, o judiciário exercita menos sua discricionariedade no ato de decidir, não se admitindo a criação de normas pelo aplicador do direito; entretanto, mesmo em um sistema regido predominantemente por regras do civil law, em um contexto atual de busca pela eficiência e eficácia da persecução penal, principalmente em casos que envolvem a atuação de uma organização criminosa, adequa-se o princípio da obrigatoriedade da ação penal ao princípio da oportunidade regrada, sendo esta entendida como a que “se manifesta pela mitigação, ao menos parcial, do princípio da obrigatoriedade da ação penal, com a inserção de um critério de oportunidade regulada ou regrada ao titular da ação penal como resultado da abertura à bilateralidade negocial” (PEREIRA, 2020, p. 131).
Dessa forma, verifica-se que, sob a influência do sistema de tradição anglo-saxônica, os acordos na seara penal são propostos pelo órgão de acusação, o qual possuirá maior discricionariedade para propor as avenças, restringindo a atuação judicial sobre tais ajustes, podendo, inclusive, resultar numa mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, resultando em uma oportunidade regrada, e afastar a exigência da legalidade penal estrita na aplicação das sanções premiais.
Percebe-se, assim, uma aproximação entre os sistemas civil law e common law no ordenamento jurídico brasileiro, mormente a partir da inauguração da possibilidade de oferecimento de benefício ao criminoso em troca de sua colaboração, com a edição da Lei dos Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990) apenas em relação ao crime de extorsão mediante sequestro, acrescentando o §4º ao artigo 159 do Código Penal.
Mas, tanto o mencionado dispositivo, quanto os que se seguiram, como o art. 32, caput e §§ 1º, 2º e 3º da Lei n.º 10.409/02, que teve vida breve e foi provavelmente o germe do direito premial, não se voltavam ao combate ao crime organizado, não garantiam autonomia ao Ministério Público para conduzir negociações, não deixavam claro qual a robustez da colaboração a que o agente do crime se compromete e o concreto benefício que teria. Assim, por óbvio, tampouco havia previsão do controle judicial por meio da homologação.
Apenas com o advento da Lei n.º 12.850/13, a colaboração premiada assume papel absolutamente distinto das leis que a precederam, com maior amplitude de negociação entre as partes e participação meramente formal do magistrado (homologação) na determinação do prêmio.
2.1 No Direito italiano – civil law
Há similitude nas atribuições do Ministério Público italiano e do brasileiro no que tange à atuação na persecução penal, inclusive no âmbito da investigação criminal, que pode culminar em oferta de denúncia ou arquivamento dos autos, estando vigentes os princípios da legalidade e da obrigatoriedade da ação penal, nos termos do art. 112 da Constituição italiana, in verbis: “Art. 112. Il pubblico ministero ha l’obbligo di esercitare l’azione penale”[1].
Assim como ocorreu no Brasil, a resistência à adoção do princípio da oportunidade, conferindo maior discricionariedade ao órgão acusador e uma mitigação da obrigatoriedade da ação penal foi sendo enfraquecida ante a necessidade de se combaterem crimes envolvendo a máfia e de tornar o processo mais ágil, como preconizado no art. 6º, n. 1, da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Convenção Europeia dos Direitos do Homem), no que indica nas disposições sobre processo equitativo:
1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
A adoção da possibilidade de negociação da pena está prevista expressamente na Constituição italiana, em seus artigos 111 e 112, o que não ocorre, ao menos de maneira explícita, no Brasil. Assim, no mencionado art. 111 consta que “a lei regula os casos em que a formação da prova não tem lugar em contraditório por consenso do arguido ou por impossibilidade comprovada de natureza objetiva ou por efeito de conduta ilícita provada”.
Assim, a partir da reforma ocorrida no ano de 1988, mudanças ocorreram no sentido de conferir abertura mais acentuada à pena negociada. Assim, como dispõe o CPP italiano, o acusado pode pedir pelo juízo abreviado, o giudizio abbreviato do art. 438, em que se decide com o que há registrado em peças de informação, de forma a conceder redução da pena. Nesse caso, não há acordo com o Ministério Público, o pedido pelo rito mais breve é feito diretamente ao juiz, sendo desconhecidas as possibilidades do montante da pena sobre a qual haverá a aplicação da diminuição legal.
Já no instituto intitulado patteggiamento, ou applicazione della pena sulla richiesta della parti, de acordo com Torrão (2000, p. 175-176, apud BRANDALISE, 2016, p. 95), o que se prevê é “a resolução consensual dos conflitos processuais penais, visto que há requerimento da parte e concordância da parte adversa que legitimam a prolação de sentença de mérito”.
Dessa forma, há aqui, conforme disposto no art. 444, 1, do Código de Processo Penal italiano, a possibilidade de uma redução da pena apresentada ao juiz que, verificando não ser o caso de absolvição, realizará sua aplicação, de modo a conferir maior celeridade na resposta do acusado, sem que para isso este tivesse que confessar, mas renunciar, mesmo que tacitamente, à presunção de inocência.
O art. 444, 2, do CPP italiano previa um controle judicial do acordo sem abranger a proporcionalidade e adequação da pena negociada, mas tão somente se poderia tratar de caso de absolvição, num controle da legalidade que não a estrita, mas sim aquela que milita em favor do acusado frente ao poder de punir do Estado. Contudo, a Corte Constitucional italiana, na Sentença 313, de 1990, entendeu pela parcial inconstitucionalidade do mencionado dispositivo, passando a atuação judicial a abranger não só a conferência da formalidade do rito (regularidade), como a adequação da sanção negociada (gravidade do fato e culpabilidade do agente), podendo rejeitá-la, mas não a recalcular, assim como passou a ocorrer no Brasil, com o advento do Pacote Anticrime, a Lei nº. 13.964/2019. Demais disso, há a previsão da possibilidade de o juiz realizar a correção da qualificação jurídica dos fatos.
Assim como ocorre no Brasil, no processo penal italiano o magistrado não pode interferir na negociação da pena a ser sugerida, podendo apenas rejeitá-la, devolvendo ao Ministério Público para realizar os ajustes, se assim entender cabíveis, existindo, assim, um limitador da discricionariedade do Parquet.
A Lei nº 15/80 (Legge Cossiga), no intuito de combater as organizações criminosas terroristas, e a Lei nº 304/82, aumentando o quantum das atenuantes e o benefício ainda para a mera dissociação da organização criminosa, trouxeram denominação acerca dos colaboradores, seriam os pentiti, que deixa ou termina a organização criminosa e garante a não consumação dos seus crimes; dissociati, que assume a autoria e tenta minorar os danos causados e impedir a consumação de crimes conexos; e colaboratori, que, além de realizar todo o exposto acima, procura prover às autoridades elementos de prova para esclarecer fatos e a autoria de crimes. Assim, pouco antes de se iniciar aquela operação que seria mundialmente conhecida como “Mãos Limpas”[2], foi editada a Lei nº. 82/1991, que resultou na promulgação do Decreto-Lei nº. 8/1991 e regulamentou o instituto do colaborador de justiça (colaboratori dela giustiizia), entendido como aquele que, ante o conhecimento de um fato criminoso, para terrorismo, tipo mafioso e alguns crimes comuns, como extorsão mediante sequestro, em contexto de uma organização, decide colaborar com a justiça (FERNANDES, 2021, p. 75). Já a Lei nº. 45/2001 alterou alguns dispositivos do Decreto-Lei nº. 8/1991, mas manteve os benefícios das reduções de pena, contudo inseriu tempo limite de 6 (seis) meses para que o pentiti (arrependido) realize a delação, previu a necessidade da análise da importância e ineditismo das declarações prestadas, estabeleceu o cumprimento de pelo menos ¼ (um quarto) da pena e fixou que a proteção a ser conferida ao colaborador se estenderá até o final do perigo.
No procedimento da colaboração premiada italiana, há o instrumento denominado “verbale illustrativo dei contenuti della collaborazione”, pressuposto indispensável para que o juiz possa reconhecer atenuantes ou causas de redução de pena no caso da colaboração premiada, cujo conteúdo será submetido ao controle jurisdicional (arts. 16-quater, § 3º, e 16-quinquies, § 2º, do Decreto-lei 8/91, convertido pela Lei 82/91, introduzidos pela Lei 45/01), nos seguintes termos:
1. Para efeitos de concessão das medidas especiais de proteção referidas no Capítulo II, bem como para os efeitos referidos nos artigos 16.º-quinquies e 16.º-nonies, quem tiver manifestado vontade de colaborar reporta-se ao Ministério Público, no prazo de cento e oitenta dias a contar da referida manifestação de vontade, todas as informações em seu poder úteis à reconstrução dos fatos e circunstâncias sobre os quais é interrogado, bem como de outros fatos de maior gravidade e alarme social de que seja conhecimento, bem como para a identificação e captura dos seus autores e ainda as informações necessárias para proceder à identificação, apreensão e confisco do dinheiro, bens e qualquer outra utilidade de que ele próprio ou, com referência aos dados do seu conhecimento, outros membros de grupos criminosos têm acesso direto ou indireto. [...] 3. As declarações prestadas nos termos dos n.ºs 1 e 2 são documentadas num relatório denominado “relatório explicativo do conteúdo da colaboração”, elaborado segundo os métodos estabelecidos no artigo 141.º-bis do código de processo penal , que é inserido, integralmente, em arquivo próprio mantido pelo Ministério Público a quem foram prestadas as declarações e, em extrato, no arquivo previsto no artigo 416, parágrafo 2, do Código de Processo Penal relativo aos processos a que foram prestadas as declarações, respectivamente, e consulte diretamente. As atas são secretas desde que sejam secretos os extratos indicados no período anterior. A sua publicação é proibida nos termos do artigo 114.º do código de processo penal[3]. [...] (Tradução nossa).
Há na legislação italiana determinações legais acerca do procedimento da colaboração premiada, incluindo, assim como ocorre no Brasil, a necessidade de outros elementos que confirmem a autenticidade das colaborações e o incentivo por meio de sanções premiais; todavia há como diferencial a previsão de direitos imediatos de proteção ao colaborador, com medidas específicas de proteção para o colaborador e sua família, como a substituição de seus documentos e a mudança de residência para locais protegidos, a obrigação de o colaborador não prestar informações a terceiros.
Assim, é requisito para aceitação do juiz do acordo a elaboração do verbale illustrativo, no tempo determinado em lei, para que seja verificado se houve efetiva colaboração a justificar os benefícios e a proteção policial, mas nesse “contrato” não pode o Ministério Público dizer quais benefícios seriam aplicados, diferentemente do que ocorre no patteggiamento (BASSI, 2010, p. 207), existindo assim não somente um controle judicial de regularidade sobre o acordo, mas também uma decisão desvinculada de qualquer estipulação prévia do prêmio a ser conferido.
Porém, o que diverge profundamente entre os sistemas italiano e brasileiro é o tratamento da imparcialidade judicial, já que, naquele, qualquer decisão anterior que implique em mínima análise do mérito é motivo de quebra desta, causando impedimento para julgar o mesmo processo. Portanto, o verbale illustrativo será um objeto desconhecido para o juiz que julgar o mérito do processo.
Há, ainda, que se ressaltar que, ao contrário do que consta na legislação brasileira acerca do tema, especificamente a Lei nº. 12.850/2013, a lei italiana não prevê a concessão do perdão judicial ou imunidade processual ao colaborador, mas tão somente a diminuição da pena privativa de liberdade, talvez justamente porque a constitucionalização do princípio da obrigatoriedade seja um limitador da discricionariedade do órgão de acusação nos espaços de negociação no processo penal italiano.
O anteprojeto inicial da Lei de Crime Organizado (Lei nº 12.850/2013), o Projeto de Lei do Senado nº 150/2006, assim como na lei italiana que o inspirou, não previa a imunidade como um dos prêmios ao colaborador. Contudo, focando na utilidade de uma colaboração realizada o quanto antes, de modo a potencializar os seus objetivos para o Estado, tal possibilidade foi inserida pela Câmara dos Deputados, ficando os maiores benefícios para a fase investigatória e judicial para, assim, desestimular o agente a aguardar o resultado do julgamento para só então, na fase de execução, buscar a realização da colaboração.
2.2 No Direito estadunidense – common law
No sistema jurídico norte-americano, encontramos o mecanismo processual denominado plea bargaing no qual é possível a acusação e a defesa chegarem a um acordo sobre o caso, que será sujeito à homologação judicial, evitando que tenha que submeter a acusação ao julgamento, o que proporciona maior celeridade processual.
A inserção do instituto do plea bargain, mais precisamente o sentencing bargain (negociação quanto ao montante da pena ou quanto ao regime de seu cumprimento), no nosso ordenamento jurídico chegou a ser discutida no PL 882/19; entretanto foi retirado pelo grupo de trabalho da Câmara dos Deputados sobre legislação penal e processual do Pacote Anticrime, sob a justificativa de que o processo penal brasileiro observa o princípio da presunção da inocência e, conforme consta na exposição de motivos, no caso da denúncia recebida, “homologada a concordância, a pena será aplicada de pronto”. Contudo, o mesmo projeto incluiu o acordo de não persecução penal, no artigo 28-A do CPP, já que tal instituto não se trata de uma antecipação de condenação.
Há de se ressaltar que as penas no Brasil não são tão rígidas quanto nos EUA, existindo sistema progressivo de execução da pena, o que torna a negociação, pela via do plea bargain, nem tão interessante quanto em um Estado punitivista como os EUA. Além disso, o Ministério Público brasileiro, guiado pelo sistema acusatório romano-germânico, não apresenta discricionariedade plena, autonomia total para negociar, como os chamados prosecutors norte-americanos, que são conduzidos por conveniência política[4].
O plea bargaining abrange medidas diversas, como explanado por Fernandes (2021, p. 81-82):
[...] dentro do contexto de barganha, pode ser inserida a declaração de culpa (guilty plea) e não culpa (not guilty plea). Pode haver, ainda, a hipótese em que defesa não admite nem nega a culpa, mas apenas não contesta a acusação (nolo contendere ou no contest plea).
O que pode ser buscado com a plea bargaining é a assunção de culpa por um crime menos grave ou apenas quanto a um ou mais crimes dentre várias acusações (count bargaining), a estipulação da verdade acerca do fato ou sua versão (fact bargaining) ou a aceitação da acusação (guilty as charged), mas apresentando a acusação uma recomendação de pena atenuada (charge bargaining) ou alternativa à prisão, diferida (sentence bargaining), que o juiz, no exercício de seu controle judicial, pode não aceitar. Em qualquer caso, a negociação é submetida à aprovação da Corte, exceto em casos como os que a negociação é feita para assunção de culpa em crime menos grave, eis que, nesse ponto, abre-se mão da acusação pelo crime mais grave ou por outros crimes, o chamado drop charges (FERNANDES, 2021, p. 83-84).
Assim, apesar de vedada a participação de integrante do sistema judicial nas discussões, cabe à Corte verificar o cumprimento dos requisitos da inteligência da declaração do acusado e a voluntariedade, conforme previsto na Federal Rules of Criminal Procedure 11[5], nos casos em que não se tratar de drop charges.
No plea bargain até poderia ocorrer a inclusão da indicação de elementos probatórios a serem utilizados contra outros sujeitos ativos, mas tal não lhe é inerente. Assim, a colaboração premiada nos moldes brasileiros pode ocorrer dentro do plea bargain, mas com ele não se confunde.
Nem mesmo o ANPP se assemelha ao guilty plea ou ao nolo contendere (mais próximo do patteggiamento italiano, a propósito), já que estes só podem ocorrer no curso da ação, enquanto aquele pode, inclusive, evitar a instauração da ação penal, caso o Ministério Público, recebido o inquérito e verificados os requisitos do 28-A do CPP, oferecer o acordo ao indiciado, não sendo antecipação de condenação, nem mesmo assunção de culpa (confissão).
Importante ressaltar que o que entendemos no ordenamento jurídico brasileiro como colaboração premiada, em que se exige mais do que a assunção de culpa, o compromisso de colaborar com a persecução de corréus e revelação da organização criminosa, se aproximaria mais do cooperation agreement, a exemplo do non prosecution agreement (não persecução) e do deferred prosecution (adiamento da persecução), muito pouco utilizados nos EUA, até porque possuem regramentos específicos.
Esses acordos são administrados pelo Departamento de Justiça (DOJ) em processos criminais e pela Securities and Exchange Commission (SEC) em ações de execução de valores mobiliários. Assim, no caso do DPA ou NPA, a colaboração é considerada prova nos EUA, enquanto no Brasil é entendida como meio de obtenção de prova. Isso porque o DOJ (Departament of Justice), ao propor o acordo, já tem outros dados que incriminam o possível delator.
Esses acordos são feitos antes do julgamento, entre o governo e a empresa/organização, sendo que, no NPA (non prosecution agreement), a empresa não é obrigada a se declarar culpada e não arca com os custos consideráveis das condenações criminais, já que não conduz acusações criminais, desde que coopere com o governo e cumpra as exigências para corrigir a violação, necessitando, para celebrar a avença, da aprovação de Procurador dos Estados Unidos ou de um Procurador assistente supervisor. A exigência de aprovação por um superior destina-se a proporcionar a revisão para garantir a uniformidade de políticas e práticas com relação a tais acordos, mas não é realizado no âmbito judicial.
No DPA (deferred prosecution agreement), o andamento do processo é sobrestado até o final de certo período, no qual a empresa deve demonstrar a satisfação das exigências previstas no acordo, sendo nomeado um monitor para acompanhar a execução das medidas que, caso atendidas, levarão a promotoria a renunciar às multas aplicadas[6]. Um DPA é feito com a aprovação ou supervisão de um juiz.
Assim, constituem as principais diferenças entre NPA e o DPA: 1) o NPA é celebrado em um momento anterior ao oferecimento da denúncia, enquanto o DPA é negociado após a denúncia já ter sido apresentada, mas o Departamento de Justiça americano peticiona à Corte responsável que não prossiga com o processo imediatamente e, uma vez que o acordo seja cumprido plenamente, o DOJ descartará as acusações feitas; 2) o NPA normalmente não resulta em nenhuma acusação contra a empresa e não exige que a empresa admita a responsabilidade; por outro lado, o DPA exige que a empresa admita fatos suficientes para fundamentar uma acusação; 3) no DPA, o DOJ concorda que, em troca do cumprimento de certas condições pela empresa, ela não dará continuidade a uma ação judicial ou de execução civil; e 4) enquanto o DPA é protocolado no Tribunal Federal com um documento de cobrança e estão sujeitos à aprovação judicial, o NPA é simplesmente acordo por carta entre o DOJ e a entidade sujeita ao acordo.
Logo, dentro do campo da cooperation agreement, verificam-se processos negociais entre as autoridades de enforcement da lei, em particular da Foreign Corrupt Practices Act – FCPA, e as empresas, buscando o compromisso de fornecimento de informações que levem ao esclarecimento do funcionamento da organização criminosa e sua desarticulação, mas sem que isso resulte em prejuízo da atividade econômica, bem como reformas corporativas estruturais, que geralmente estão relacionadas à consolidação de programas de compliance e aperfeiçoamento de controles internos, além do ressarcimento pelos danos causados.
Nesses acordos (NPA/DPA), há a exclusão do poder judiciário do processo de negociação, sendo os poderes conferidos aos membros do Departamento de Justiça, amplamente discricionários, o que pode obviamente resultar em abusos, muitas vezes sendo utilizados grandes escritórios de advocacia nesses “negócios”; tal situação é expressa na observação externada por Marlos Corrêa da Costa Gomes (2020, p. 68):
Com relação ao suposto monopólio regulatório e “judicial” exercido pelas autoridades de enforcement, alguns autores sugerem a participação obrigatória do judiciário em todos os casos que se proponham ser resolvidos por meio de acordos. A sugestão seria transferir para o poder judiciário a avaliação quanto ao atendimento de interesse público, condicionando a homologação dos acordos à participação das vítimas por meio de audiências públicas.
Assim, verifica-se, diante da situação apresentada, que a submissão desses acordos ao crivo do poder judiciário seria importante para afastar eventual abuso de poder, sobretudo porque há renúncia de direitos fundamentais e até aspectos processuais. Acrescente-se a isso que o NPA e a DPA somam, de certa forma, medidas típicas de acordos de leniência da Lei nº. 12.846/2013, da lei anticorrupção, regulamentada pelo Decreto nº. 11.129/2022, e da colaboração premiada, da Lei nº. 12.850/2013.
Constatamos assim que o sistema negocial brasileiro é o único dos três (Brasil, Itália e Estados Unidos) que: 1) determina a dupla e prematura análise judicial do acordo de colaboração; 2) possibilita que o juiz determine a adequação do acordo, implicando em participação, ao menos indireta, na construção do ato; 3) autoriza que um mesmo juiz rejeite, mande adequar ou homologue um acordo e ainda assim sentencie o colaborador – o que poderá ser sanado com a efetiva implantação, inclusive nas comarcas menores, do juiz de garantias.
3 CONCLUSÃO
Percebe-se, adentrando nas regras existentes na justiça penal negocial de países que adotaram a common law (Estados Unidos) e a civil law (Itália), e nas formas de realização da persecução penal resultante, que são muitos os pontos em que nosso ordenamento difere daqueles no que tange à Justiça Negocial.
Inclusive, em alguns pontos a Itália, embora pioneira em matéria de Justiça negocial criminal, não permaneceu avançando na questão com relação ao Brasil que, com a possibilidade do não oferecimento da denúncia, valorizou ainda mais o colaborador da fase investigatória.
O ordenamento jurídico brasileiro apresenta, assim, uma mitigação do princípio da obrigatoriedade, algo que não ocorre no espaço de negociação do sistema italiano, ao passo que não possui o órgão de acusação brasileiro a ampla discricionariedade para estabelecer os termos do ajuste, como ocorre na prática estadunidense, onde há ajustes (NPA) que, inclusive, excluem o controle do poder judiciário, o que leva a persecução penal a um “balcão de negócios”, em nome de uma celeridade, o que também não é recomendável para realizar a justiça efetiva.
De qualquer forma, por meio deste estudo comparativo dos sistemas, foi possível se chegar à constatação de que apenas o Brasil, dentre os três ordenamentos jurídicos comparados, possui previsão de dupla análise judicial do acordo de colaboração premiada, logo, este controle judicial no primeiro momento (fase homologatória), constitui o limitador (típico do nosso sistema) da discricionariedade do órgão acusador e das possibilidades de negociação.
BASSI, Guido Stampanoni. Profilli processuali della disciplina sui cosiddetti collaboratori di giustizia, Dissertação (Mestrado em Direito) – Facoltà di Giurisprudenza, Libera Università Maria Ss. Assunta, 2010.
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[1] Art. 112. O Ministério Público tem a obrigação de conduzir o processo penal. (Tradução nossa).
[2] “Em 17 fevereiro de 1992, Mário Chiesa, diretor de um asilo de Milão filiado ao Partido Socialista Italiano, foi preso sob a acusação de achacar empresários em troca de suborno. “[...] A operação, comandada pelo magistrado do Ministério Público Antonio Di Pietro (na Itália, promotores e juízes integram a mesma carreira) hipertrofiou-se e desvendou um amplo esquema de fraudes em obras públicas, doações de empresários a políticos em troca de favores e desvio de recursos de empresas estatais.” (VALIATI, Matheus de Souza. Colaboração Premiada: Origens e Conceito. Toda Matéria, 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-fev-28/operacao-maos-limpas-completa-30-anos-legado-negativo>. Acesso em: 7 mar. 2024).
[3] “1. Ai fini della concessione delle speciali misure di protezione di cui al Capo II, nonché per gli effetti di cui agli articoli 16-quinquies e 16-nonies, la persona che ha manifestato la volontà di collaborare rende al procuratore della Repubblica, entro il termine di centottanta giorni dalla suddetta manifestazione di volontà, tutte le notizie in suo possesso utili alla ricostruzione dei fatti e delle circostanze sui quali è interrogato nonché degli altri fatti di maggiore gravità ed allarme sociale di cui è a conoscenza oltre che alla individuazione e alla cattura dei loro autori ed altresì le informazioni necessarie perché possa procedersi alla individuazione, al sequestro e alla confisca del denaro, dei beni e di ogni altra utilità dei quali essa stessa o, con riferimento ai dati a sua conoscenza, altri appartenenti a gruppi criminali dispongono direttamente o indirettamente. [...] 2. Le dichiarazioni rese ai sensi dei commi 1 e 2 sono documentate in un verbale denominato "verbale illustrativo dei contenuti della collaborazione", redatto secondo le modalità previste dall'articolo 141-bis del codice di procedura penale, che è inserito, per intero, in apposito fascicolo tenuto dal procuratore della Repubblica cui le dichiarazioni sono state rese e, per estratto, nel fascicolo previsto dall'articolo 416, comma 2, del codice di procedura penale relativo al procedimento cui le dichiarazioni rispettivamente e direttamente si riferiscono. Il verbale è segreto fino a quando sono segreti gli estratti indicati nel precedente periodo. Di esso è vietata la pubblicazione a norma dell'articolo 114 del codice di procedura penale.”
[4] Como bem pontuado por Cordeiro (2020, p. 26), “a ampla discricionariedade ministerial é tradição já incorporada ao sistema criminal norte-americano e serve o controle das eleições para alterar rumos de má condução de acordos, que exigem tão somente adesão voluntária e bem informada do acusado”.
[5] “(2) Ensuring That a Plea Is Voluntary. Before accepting a plea of guilty or nolo contendere, the court must address the defendant personally in open court and determine that the plea is voluntary and did not result from force, threats, or promises (Other than promises in a plea agreement).” Disponível em: <https://www.law.cornell.edu/rules/frcrmp/rule_11>. Acesso em: 12 mar. 2024.
[6] “Under a deferred prosecution agreement, or a DPA as it is commonly known, DOJ files a charging document with the court,379 but it simultaneously requests that the prosecution be deferred, that is, postponed for the purpose of allowing the company to demonstrate its good conduct. DPAs generally require a defendant to agree to pay a monetary penalty, waive the statute of limitations, cooperate with the government, admit the relevant facts, and enter into certain compliance and remediation commitments, potentially including a corporate compliance monitor. DPAs describe the company’s conduct, cooperation, and remediation, if any, and provide a calculation of the penalty pursuant to the U.S. Sentencing Guidelines. In addition to being publicly filed, DOJ places all of its DPAs on its website. If the company successfully completes the term of the agreement (typically two or three years), DOJ will then move to dismiss the filed charges. A company’s successful completion of a DPA is not treated as a criminal conviction. [...] Under a non-prosecution agreement, or an NPA as it is commonly known, DOJ maintains the right to file charges but refrains from doing so to allow the company to demonstrate its good conduct during the term of the NPA. Unlike a DPA, an NPA is not filed with a court but is instead maintained by the parties. In circumstances where an NPA is with a company for FCPA-related offenses, it is made available to the public through DOJ’s website. The requirements of an NPA are similar to those of a DPA, and generally require a waiver of the statute of limitations, ongoing cooperation, admission of the material facts, and compliance and remediation commitments, in addition to payment of a monetary penalty. If the company complies with the agreement throughout its term, DOJ does not file criminal charges. If an individual complies with the terms of his or her NPA, namely, truthful and complete cooperation and continued law-abiding conduct, DOJ will not pursue criminal charges.” (UNITED STATES. A Resourse Guide to the U.S. Foreign Corrupt Practices Act. U.S. Department of Justice and the Enforcement Division of the U.S. Securities and Exchange Commission, 2012, p. 76-77. Disponível em: <https://www.justice.gov/sites/default/files/criminal-fraud/legacy/2015/01/16/guide.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2024).
Pós-graduada em Direito Público pela ANAMAGES (Associação dos Magistrados Estaduais) - Newton Paiva -, em Direito Ambiental pelo CAD (Curso de Atualização em Direito) - Universidade Gama Filho -, bem como em Direito Penal e Processo Penal além de Direito da Criança, do Adolescente e do Idoso, ambos pela UCAMPROMINAS - Universidade Cândido Mendes. Já trabalhou como Oficial Judiciária no Tribunal de Justiça de Minas Gerais de agosto de 2003 a dezembro de 2010, quando foi nomeada para exercer funções de Analista de Direito do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Laura Maria Machado. Modelos de Controle Judicial da Justiça Premial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jul 2024, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/65908/modelos-de-controle-judicial-da-justia-premial. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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