RESUMO: Neste artigo a principal tarefa que nos propomos é discutir a violência e o Estado, por entendermos que já no contratualismo, o Estado surge para coibir ou diminuir a violência, sendo a ordem jurídica a responsável pela garantia da segurança e da paz. Dentro do contratualismo, nos propomos a discutir a questão da violência/segurança no pensamento de Hobbes e Locke, pois, a crítica que fazem ao Estado de Natureza – que antecede o Estado Positivo – aborda a questão da violência, um dos aspectos que justificam o contrato. Portanto, a constituição de uma ordem jurídica – leis positivas advindas do surgimento do Estado - aparece como um dos mecanismos fundamentais para regular os conflitos e a violência.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A paz e a segurança como garantias do Estado de Direito e o controle da violência; 3. O controle Lockeano e a segurança; 4. Conclusão; 5. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
No dicionário brasileiro Globo a violência é definida como: “qualidade do que é violento; abuso de força; tirania; opressão; veemência; ação violenta; coação; (jur.) coação física ou moral. (do lat. Violentia.)”. Essa definição traz em si elementos que precisam ser esclarecidos, como por exemplo, qual a qualidade do que é violento, de que tipo de abuso de força se está falando, quem a exerce, contra quem ela é exercida, quem detém esse poder de usar a violência? Todas essas questões precisam ser debatidas e discutidas a fim de se chegar a um entendimento do que é violência.
Não existe uma definição exata do que é violência, mas sabe-se que alguns elementos precisam estar entendidos em sua concepção. Entre eles estão os conceitos de poder, coerção, força e, sobretudo, Estado.
Para Norberto Bobbio violência é “a intervenção física de um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo (ou também contra si mesmo)” (Bobbio, 1986. Pág 1291). Portanto, em primeiro lugar, essa intervenção deve ser voluntária com a intenção de destruir, ofender e coagir, sendo, geralmente, contra a vontade da vítima, salvo nos casos do suicídio ou com a finalidade de chamar a atenção. Em segundo, é uma intervenção, ou seja, ela é proveniente de uma ação (física ou psicológica) que gera uma consequência (física ou psicológica), podendo ser direta, quando age imediatamente no corpo de quem sofre, ou indireta, quando usa de outros meios indiretos, isso em ambos os casos, gera uma mudança prejudicial no grupo ou no indivíduo que é alvo da ação.
Bobbio diz que a violência no sentido puramente descritivo pode ser considerada como força, pois a diferença entre força e violência, seria a justificativa pela qual cada uma delas é usada. A violência é injustificada e destrói a ordem social ou impede o bem comum, enquanto a força seria a intervenção justa, que preserva a ordem e o bem comum. Portanto, a noção do que é uma e do que é outra depende da visão de quem a usa, por isso, para que se evite qualquer equívoco, o melhor, é deixar de lado a diferença entre os conceitos e usá-los como sinônimos ou somente um deles para designar as intervenções físicas, distinguindo, porém, entre os valores que o grupo percebe como legítimos ou ilegítimos (BOBBIO 1986).
Contudo, a violência se diferencia de poder de maneira precisa. “O poder é a modificação da conduta do indivíduo ou grupo, dotada de um mínimo de vontade própria. A violência é a alteração danosa do estado físico de indivíduos ou grupos. O poder muda a vontade do outro; a violência, o estado do corpo ou de suas possibilidades ambientais e instrumentais” (BOBBIO, 1986, pág 1292), ou seja, o poder é a capacidade de se mudar a vontade de outra pessoa, podendo a violência ser usada para isso, principalmente na violência de tipo político. O autor ainda distingue os possíveis resultados das duas ações. Referente ao poder, poderia haver uma conduta externa ou interna, tanto uma ação como uma omissão, tanto um acreditar como um desacreditar. Já em relação à violência, o que se consegue é uma omissão, um impedimento ao indivíduo de tomar qualquer atitude socialmente relevante.
Dessa distinção entre violência e poder pode-se tirar a diferença que envolve o poder coercitivo e a violência. A coerção é baseada nas sanções físicas e comporta, por isso, a distinção entre violência em ato e ameaça de violência. A violência como ameaça seria aquela em que o poder é mantido através do medo do indivíduo sofrer as penas e sanções estabelecidas pelo dominador. Já a violência como ato consistiria na agressão propriamente dita, ou seja, contra o outro ou o grupo. É usada, normalmente, quando a violência, como ameaça, deixou de ser motivo de medo e o ameaçador a usa para mostrar que cumpre suas ameaças e faz manter seu poder. Serve para alertar os que desrespeitam sua ordem. Nessa relação de coerção através da ameaça e/ou do uso da forca, sempre coloca elementos que são de natureza a demonstrar que quem domina precisa estar em constante demonstração de que é capaz de cumprir o que ameaçou, ou seja, é preciso haver uma credibilidade da parte do ameaçador para que a violência seja temida ou cumprida. É o caso do Estado, que, em muitos casos, precisa mostrar seu poder através do uso da violência legitimada, ou seja, aquela violência para manter a ordem.
Neste artigo a principal tarefa que nos propomos é discutir a violência e o Estado, por entenderemos que já no contratualismo, o Estado surge para coibir ou diminuir a violência, sendo a ordem jurídica a responsável pela garantia da segurança e da paz. Dentro do contratualismo, nos propomos a discutir a questão da violência/segurança no pensamento de Hobbes e Locke, pois, a crítica que fazem ao Estado de Natureza – que antecede o Estado Positivo – aborda a questão da violência, um dos aspectos que justificam o contrato. Portanto, a constituição de uma ordem jurídica – leis positivas advindas do surgimento do Estado - aparece como um dos mecanismos fundamentais para regular os conflitos e a violência.
2. A PAZ E A SEGURANÇA COMO GARANTIAS DO ESTADO DE DIREITO E O CONTROLE DA VIOLÊNCIA.
Para se entender os jusnaturalistas/contratualistas é preciso partir da concepção que cada um deles possuía do estado de natureza, e como eles encontraram a saída para findar esse estado e formar o Estado.
Começando por Hobbes, temos que para ele os homens, em qualquer época, possuem a razão para guiá-los, bem como a igualdade física e intelectual, tendo todos as mesmas capacidades para fazer todas as coisas – mesmo os mais fracos podem se unir e derrotar um outro indivíduo mais forte, igualando novamente suas capacidades. Considerando que todos são iguais, todos têm uma parcela de poder, mas nenhum possui um poder maior que o outro, por isso ninguém pode, sem que haja resistência, dominar nem escravizar um outro indivíduo legitimamente.
Da igualdade de capacidade física e intelectual surge também a igualdade em atingir os fins desejados, mas quando dois homens desejam a mesma coisa e esta não pode ser usufruída por ambos, eles se tornam inimigos e passam a disputar aquele objeto. Como cada um precisa defender sua própria vida, eles esforçam-se para subjugar ou destruir o outro da forma que melhor lhes parecer. Entretanto, sempre que alguém possuir um lugar para trabalhar, uma terra, uma casa, um terreno ele será atacado por outro, que tomará posse do seu bem e que certamente será atacado por outro. Por isso, a única proteção do indivíduo, no estado de natureza hobbesiano, é aumentar constantemente seu domínio, subjugando o máximo de indivíduos que possam representar para si uma ameaça de ataque.
Hobbes fala de três causas para a discórdia entre os homens: a competição, a desconfiança e a glória. A primeira leva os homens a se atacarem em busca de lucro. A segunda para buscarem segurança e a terceira para manterem sua honra (Ribeiro, 1989). Todas essas causas são intimamente interligadas e possuem a violência como pano de fundo para acontecerem.
O lucro é aquilo que os homens acumulam e muito dessa acumulação é feita através da violência na dominação de outros homens, mulheres e propriedades. A desconfiança leva-os a se atacarem para se prevenirem da competição e obterem a sua segurança. A glória é a causa que mais gera violência entre os homens, pois todos sendo iguais e possuindo sua razão, se consideram uns mais inteligentes, mais fortes e poderosos que os outros e querem que todos os outros reconheçam esse valor que ele mesmo se dá, por isso, qualquer sinal de desprezo contra sua honra gera a violência e os leva a se atacarem. Essa honra é mantida através do dano a quem lhe afronta e causando dano aos outros, procura explicitar o poder que tem. Vale lembrar que a riqueza faz parte da glória porque mostra que quanto mais se possui maior será seu poder perante os outros. Essas três causas levam os homens a viverem em um estado de guerra de todos contra todos e não podendo aproveitar o que a vida pode lhes proporcionar.
As paixões e desejos dos homens não podem ser julgados até o momento em que uma lei diga que é proibido fazer determinada coisa, mas para que essa lei exista é preciso saber antes quem a faça e enquanto não se sabe, os homens ficam livres para fazer o que bem entenderem para preservarem suas vidas inclusive usar dos artifícios da guerra para isso.
A partir desse momento de sua reflexão, Hobbes procura fundamentar juridicamente a instituição do contrato para a saída do estado de natureza e o início da formação do Estado. Esses fundamentos estão nas leis da natureza. A regra geral é a que proíbe a qualquer homem fazer tudo que possa destruir sua vida ou se omitir para que ela seja preservada. Por isso a primeira lei da natureza é a de que todos os homens devem procurar a paz e segui-la desde que haja o desejo de todos em querer viver em segurança. A segunda é que todos devem ceder todos os seus direitos naturais, com a condição de que os demais também o façam. Assim, todos serão novamente iguais, pois todos abdicando de sua parcela de poder de ação tornam-se todos dependentes do poder do Estado, nenhum podendo agir fora das regras estabelecidas. Ou seja, o pacto consiste na união desses dois preceitos: o desejo da paz e a renúncia aos direitos naturais, fazendo o acordo de cada um com cada um. Todavia, para que o contrato seja válido é preciso a força do Estado, que traz o temor do poder capaz de fazer as leis da natureza serem respeitadas, pois o contrato sem a espada, seria rompido pelas paixões naturais, que levam os homens à parcialidade, ao orgulho, à vingança e coisas semelhantes (HOBBES,1988). Por isso a construção do Estado se faz necessária e este deve ser absoluto, no sentido de ser o único detentor da força e do poder político, assim como deve possuir toda a autoridade para resolver as pendências e arbitrar qualquer decisão com vistas à paz e a segurança. Portanto, a sociedade, como um todo organizado, somente surge com a instituição do Estado.
A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim, civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e de ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.
Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui o poder soberano. Todos os outros são súditos. (LEVIATÃ, cap XVII, p.105-6).
No pacto hobbesiano, o governante ou governantes surgem depois de todos terem feito a pacto de cada um com todos, isso porque ainda não existe o Estado, que aparece com a instituição do pacto e vem para validar o mesmo, através da força que lhe foi cedida por todos. Sendo pactuado dessa maneira o Estado fica acima e fora dos compromissos que os homens estabeleceram para si. Em contrapartida, o Estado fica impedido de se livrar do pacto, mas também não pode ser julgado por ninguém, já que o soberano representa a vontade de todos. Seus atos são como se fossem os atos de todos, por isso ele jamais age injustamente.
A função do Estado é a de proteger e dar segurança aos cidadãos, por isso ele possui legitimidade de a usar a força que a ele foi delegada e do modo que melhor lhe parecer. Por isso, os homens ao instituírem o Estado cedem todos os seus direitos e passam a depender de sua proteção, tendo uma ´´liberdade civil`` para fazerem o que quiserem desde que a lei não proíba. Contudo, caso o Estado deixe de cumprir com sua função de manter a paz, pela regra geral de que cada um deve manter sua vida, os súditos ficam livres da subordinação imposta pelo pacto. Isso porque ao se fazer o pacto, os indivíduos querem sair daquele estado de guerra e medo e, portanto, se forem atacados seja por um outro indivíduo ou pelo soberano, não importa, a sua vida corre perigo do mesmo modo e, por isso, ele volta a contar apenas com sua própria força para assegurar sua vida.
Enfim, em Hobbes o Estado deve ser forte e protetor, cuidando de todos os seus cidadãos, mantendo todos os súditos em igualdade civil no âmbito da sociedade.
3. O CONTRATO LOCKEANO E A SEGURANÇA.
Em Locke, o contrato surge como uma regulação da sociedade e o Estado passa a ser o detentor legítimo da criação e da execução das leis. Entretanto para que possamos entender como o autor chega a essa ideia precisamos entender toda sua argumentação, começando pelo estado de natureza.
O estado de natureza lockeano é um estado de relativa paz, harmonia e tranquilidade. Nele todos os homens têm a liberdade para agirem conforme quiserem, tendo, entretanto, a lei da natureza, que é a razão de cada um, como limite ditando o que é certo e o que é errado. Por este motivo esse não é um estado de licenciosidade, pois o homem sabe o que lhe prejudica e, consequentemente, sabe que o que lhe faz mal também faz a todos os outros, como uma proteção de espécie. Além disso, todos são perfeitamente iguais, não havendo homem algum com poder ou jurisprudência maior que outro e é essa igualdade que permite a liberdade, pois todos recebem as mesmas capacidades físicas e intelectuais da natureza. Sendo todos capazes têm a liberdade de fazer o que desejarem. Entre aquilo que a natureza deu aos homens estão a vida, a liberdade e a terra, o que Locke englobou no conceito de propriedade, contudo, esta última somente se torna privativa quando ela é trabalhada, deixando assim de ser aquela terra comum a todos e passando a ser a extensão do indivíduo, como aquilo que é único, individual. Portanto, a propriedade privada faz parte do estado de natureza, independendo de existir sociedade ou Estado.
Porém, esses elementos não explicam por qual razão o homem deixaria, por livre e espontânea vontade, o estado de natureza, sendo este harmônico, pacífico e tendo uma lei que dita o que é certo e o que é errado, não havendo razão aparente para deixá-lo. O que ocorre é que nem todos os homens são detentores dessa razão ou seguidores da lei da natureza e por isso cometem crimes contra as propriedades de seus semelhantes. Estes crimes podem ser de escravidão, assassinato ou de invasão em uma terra trabalhada, que são os direitos que a natureza garante igualmente a todos.
Como todos são livres e iguais, a natureza garante uma punição aos crimes. Todos os indivíduos possuem a ´´jurisprudência recíproca``, ou seja, todos têm direito de aplicar uma punição a quem age contra as leis da natureza. Entretanto, assim como todos podem impor uma punição, todos também podem interpretar a lei conforme desejam e aplicam-na de acordo com essa interpretação, como normalmente quem aplica a pena foi quem sofreu o dano ou alguém próximo que se encarregou de cumprir a pena, a punição quase nunca é justa. Gera-se, com isso, dois problemas em vez de apenas um. Tem-se agora o crime e o crime da pena exagerada. Além disso, ao ser atacado ou escravizado, o indivíduo tem o direito de resistir, e essa situação de ataque e defesa, criando um estado de guerra, que é um momento do estado de natureza que a violência se faz presente, como uma guerra latente, que se manifesta, pondo em risco a segurança da propriedade. Esse estado somente cessa quando surge um juiz ou um poder acima e imparcial aos outros, para que essas controvérsias sejam resolvidas.
Diante desses imperativos um número qualquer de homens resolve se unir, cedendo seu poder de julgar e punir para um ente que se digne a ser imparcial e seguir as leis, ou seja, eles fazem o contrato de consentimento e instituem a Sociedade Política ou Civil, porque percebem que, em sociedade, suas propriedades estarão em melhor segurança que no estado de natureza, por isso, a primeira providência a se tomar, em sociedade, é instalar um legislativo e um executivo, pois com leis feitas e válidas para todos, fica coibida a liberdade de interpretação e com um poder exclusivo para executar essas leis, segundo o que está escrito, exclui-se a “jurisprudência recíproca” e fica apenas um órgão autorizado - o Estado - para castigar os crimes conforme as leis instituídas pelo legislativo, evitando-se assim os abusos das penas.
Vale lembrar duas coisas quando da fundação da sociedade. Primeiro, em Locke, não há um rompimento entre a sociedade e o estado de natureza, e sim uma organização deste último. Tanto é assim que o legislativo deve sempre ter em mente que as leis devem, antes de tudo, proteger a propriedade do indivíduo, entendendo essa como sua vida, sua liberdade e seus bens, ou seja, as leis civis devem seguir o que a lei da natureza ditou. A diferença é que agora ela é instituída e deve ser obedecida por todos. O segundo ponto é que ainda que os homens transfiram seus poderes, eles continuarão sendo a base do poder, o que permite assegurar que caso os indivíduos eleitos - para exercerem as funções de governo - deixem de cumprir com seu papel e coloquem em risco a segurança dos indivíduos e de suas propriedades, o povo pode depô-los, pois, eles, ao não cumprirem seus papéis, entram em estado de guerra com a população e está precisa defender sua vida, portanto recuperam seu poder de julgar e de punir já que ficam sem um poder superior a quem recorrer.
Por essa razão, em Locke, a sociedade política ou civil se define especificamente pela existência de um juiz superior ao qual os indivíduos, que se uniram por meio de um pacto, se submetem para obedecer-lhe às decisões, ficando, todos, sujeitos às mesmas leis e às mesmas punições criadas pelo legislativo e aplicadas pelo executivo, garantindo-se assim uma regulação dos direitos dos homens. Portanto, o Estado fica sendo o único órgão responsável pela segurança e a paz de todos, mas devendo sempre defender os interesses da população, pois o poder emana do povo e é ele quem deve ser o maior beneficiário do contrato.
Baseando-se na ideia de Estado que cada autor possui, analisaremos quais as possíveis consequências para a Sociedade Civil ou Política do mau funcionamento do Governo. Mas antes é preciso ter em mente que para ambos é função legitima do Estado tratar da segurança e da paz, ou seja, o Estado é o único que pode usar da força para manter a ordem e garantir a paz. Na teoria hobbesiana essa força é usada para que todos sigam as regras da sociedade e obedeçam ao que ditam as leis controlando as paixões que guiam os homens. Já na teoria lockeana, a força é usada para assegurar o cumprimento das leis, mas, além disso, o Estado deve ser o árbitro maior de toda e qualquer disputa entre seus cidadãos e sua força consiste, justamente em impor que a lei seja seguida, pois somente assim a propriedade do homem estará garantida. Por isso, em ambos, a eficiência do Estado é necessária para que a sociedade caminhe em segurança e em paz.
Contudo, nem sempre o Estado é eficiente e nossa sociedade assiste quase que diariamente casos dessa ineficiência. O que aconteceria se o Estado não cumprisse sua função de protetor depois do contrato celebrado?
Em Hobbes temos que o pacto, que instituiu o Estado, somente foi celebrado porque os homens perceberam ser melhor viver protegidos e em segurança, do que continuar no estado de guerra, que é um estado de constante beligerância. Portanto, os homens depositaram todas as suas esperanças de alcançar a paz no Estado, por isso, quando este deixa de cumprir com o seu papel, duas coisas acontecem. A primeira, o próprio autor vislumbrou, pois seria o caso do soberano atentar contra a vida do súdito e este ficar isento da subordinação que celebrou no contrato, já que a regra geral da natureza diz que todo homem deve fazer o que for possível para manter sua vida. A segunda, é própria da natureza tensa e contraditória do contrato que ao incluir, também exclui (Boaventura, 1999) gerando na sociedade atual, áreas de conflito e insegurança, as quais Boaventura de Sousa Santos vai considerar que decorrem do “fascismo societal”: “Não se trata de regresso ao fascismo dos anos 30 e 40. ao contrário deste último, não se trata de um regime político, mas antes de um regime social e civilizacional” (BOAVENTURA,1999, p 51).
Já em Locke, o pacto por ele concebido já é problemático. Ao colocar que apenas alguns indivíduos podem celebrar o contrato e que esses indivíduos devem ser cidadãos e não qualquer indivíduo, exclui uma boa parte das pessoas que vivem no estado de natureza e essas pessoas ficam desamparadas da proteção e segurança. Locke procurou proteger a propriedade e para isso regulou a sociedade. Por isso a força do Estado deve ser usada para proteger aquilo que o cidadão possui, ou seja, sua vida, sua liberdade e seus bens e essa proteção deve ser contra os possíveis ataques daqueles que não são considerados cidadãos para serem incluídos no contrato. Desse modo, a teoria de Locke deixa antever a contradição que está na base do contrato, pois a inclusão pressupõe exclusão. Aqueles que ficam fora do contrato são considerados a priori desprovidos de razão, ficando à margem da cidadania e potencialmente responsáveis por colocar em risco a segurança dos que fazem parte da sociedade política e civil. Por isso, neste caso, a ineficiência do Estado gera uma insegurança quanto à proteção dessa propriedade, pois sem o Estado trabalhando corretamente, não se tem a quem recorrer para julgar e punir os transgressores as transgressões. Contudo, esse contrato coloca no povo a base do governo e por isso, caso este não aja de forma correta o povo pode destituí-lo e eleger outro governo. Portanto, em Locke, o Estado sempre terá que seguir o que os cidadãos decidirem como o melhor para eles, caso contrário não haverá razão para continuidade dos mesmos dirigentes.
Assim, o que se observa é uma racionalidade que perpassa toda a ideia de contrato no pensamento de Locke. Quando a racionalidade do Estado de Direito não cumpre com as suas funções, especialmente, nos seus fundamentos jurídicos, as áreas de conflito e insegurança surgem na sociedade civil.
Sobre essas áreas reveladoras da crise que acomete o contrato social da modernidade, Boaventura de Sousa Santos não só as entende como um tipo de fascismo societário, como identifica seis de suas variações: a do apartheid social, a do Estado paralelo, a paraestatal - que se divide em contratual e territorial -, a populista, a da insegurança e a do financeiro.
Desse modo, a discussão dessas formas de fascismo societário pode esclarecer a questão da violência não apenas como um limite do contrato, mas como um novo tipo de sociabilidade que se manifesta, ora pela ausência do Estado, ora como presença exacerbada. Por essa razão trataremos de alguns desses fascismos procurando analisar as consequências desse modo de agir do Estado na sociedade civil.
Para entendermos a questão da violência a partir da ideia de “fascismos societários” precisamos analisar alguns desses seis tipos a começar pelo “fascismo do apartheid social”. A ideia desse tipo é a de que dentro da sociedade civil, política e organizada, existem zonas de estado de natureza. O contrato social não abrange todos os indivíduos, alguns – muitos – ficam de fora e isso significa não desfrutar dos benefícios da segurança, da paz e de todas as garantias que somente são possíveis com a instituição do Estado. Essas ´´zonas selvagens``, como denomina Boaventura de Sousa Santos, provoca uma série de dificuldades que o pacto jamais poderia prever, a violência é uma delas. Pois, os estado de natureza ao qual o autor se refere seria o de Hobbes, e o estado hobbesiano é um estado de beligerância, no qual o ataque é a forma de defesa. Diante disso temos locais que se tornam verdadeiros campos de guerra dentro da sociedade civil. É o caso das favelas e dos bairros pobres dominados por traficantes. O resto da sociedade amedrontada com esses locais – que ela mesma criou ao excluir e segregar – leva os aparelhos repressores do Estado a serem mais duros nesses locais, criando uma duplicidade de ação, o que não deixa de ser mais uma forma de acentuar a segregação, numa busca constante de tirar de perto dela esses indivíduos que não se “enquadram” como cidadãos.
Além disso, o próprio Estado coopera para a estigmatização desses indivíduos, pois ao invés de cumprir com seu papel de protetor, ele age ao contrário, como seu agressor. É o que Boaventura de Sousa Santos denomina de “fascismo do Estado paralelo”. Em zonas civilizadas o Estado age democraticamente como defensor, protetor, mesmo que nem sempre seja confiável, ainda sim cumprindo com a ideia básica do contrato. Nas zonas selvagens, ele age como predador, usurpador dos direitos e repressor autoritário das vontades desses indivíduos.
O grande problema dessa divisão em duas áreas dentro da sociedade está que as zonas selvagens estão dentro da sociedade civil e estão na sociedade civil, de algum modo revelam que os indivíduos aceitaram a subordinação ao contrato, portanto, também são detentoras do direito às suas garantias, contudo ao serem segregados como “selvagens” para lugares cada vez mais inóspitos, sem higiene, educação, saúde e principalmente proteção, eles ficam de posse apenas da sua própria força para manter sua vida, sendo esse um dos fatores que mais gera violência em nossa sociedade. É claro que a violência acentuada de hoje não existe apenas porque pessoas são excluídas para áreas segregadas, mas existe sim, um alto índice nesses locais devido ao fato de nelas não haver atuação concreta do Estado.
Outro fascismo societal que concorre para a violência é o “fascismo territorial”. Existem locais em que atores sociais muito poderosos retiram do Estado suas prerrogativas e passam a controlar determinado território. Os casos concretos de maior destaque nesse caso são os grandes latifundiários em suas fazendas e o chefe local do tráfico – incluindo aqui as Milícias. Esses indivíduos corrompem a força legítima do Estado de mantenedor garantidor da paz. Eles passam a determinar o que se faz e o que se deixa de fazer naquele local. Possuem força de polícia, justiça, como se fossem bem feitores. Muitos desses casos só são possíveis devido a conivência do Estado em não coibir tais ações e dando margem para que setores das suas forças repressivas se associem a esses agentes que usurpam a ação legítima do Estado.
O fascismo da “insegurança” consiste na manipulação indiscriminada do imaginário da população. É a constante propagação da ideia de que a sociedade está caótica e que a qualquer momento os indivíduos serão feridos ou roubados. Depreciam-se os serviços estatais e se traz como alternativa viável e eficiente serviços privados. É o caso da saúde, educação e da segurança. Além disso, mantendo a sociedade receosa quanto a sua segurança, pode-se impor sempre medidas que ela aceitará como normal. É o caso de quando se usa das forças armadas para controlar a violência civil. O exército que deveria ser usado apenas em casos extremos é usado com frequência. Com isso a população acredita que as polícias civil, militar ou federal não conseguem dar conta da violência social e que vivemos tempos de guerra. A população acreditando que vive em tempos de guerra e sem acreditar no Estado, passa a buscar outras formas de suprir suas necessidades – momento em que os serviços privados ganham força. A consequência que esse fascismo traz para a sociedade é, que além de aumentar o uso da violência privatiza determinados serviços, deprecia os estatais e a população que não tem condições de pagar para ter sua segurança garantida se vê empurrada novamente para o ´´estado de natureza hobbesiano``, o que se torna uma grande contradição social, já que eles também fazem parte do contrato e da sociedade como um todo.
Portanto, unindo esses elementos temos que a violência do Estado assume diversas formas, não apenas aquela expressa na forma de abuso de poder. A ausência em incluir, sanear, educar também são formas de violência que partem do Estado. Manipular o imaginário social é uma forma de violência que parte do Estado e atinge diretamente a esfera societal.
4 - CONCLUSÃO
Considerando o objetivo do presente artigo, percebe-se que a relação Estado/violência ainda está bem distante de ser um assunto simples e de fácil compreensão. A segurança deve ser monopólio apenas do Estado ou a vontade da sociedade também deve estar inserida nesse contexto?
A razão de se fazer uma mudança na sociedade, e não apenas na forma de atuação do Estado, seria o princípio de uma mudança estrutural em toda ordem, alterando as formas de agir e pensar dos indivíduos. Como explica Vera Telles (1994), é preciso que a noção de direitos esteja enraizada nos indivíduos, pois, somente assim a possibilidade de convivência pode ser concretizada. E com o respeito às diferenças, cria-se também a possibilidade de diálogo, de sociabilidade entre os diferentes segmentos sociais, que de um modo ou de outro precisam se entender para assim poderem consolidar uma verdadeira cidadania, que pratique a inclusão de todos e não que lute e exija que os órgãos públicos acabem por reproduzir ainda mais a miséria e a violência nas áreas mais pobres e destituídas das cidades.
Enfim, os pensamentos de Locke e Hobbes ainda servem de base para questionamentos sobre como se dá essa relação Estado/violência e fornece elementos para se pensar uma real mudança na sociedade.
5 - BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. Tempo Social; Revista de Sociologia. USP, São Paulo, 10 (1): maio 1998, p. 19-47.
BENEVIDES, Maria Victoria. Violência, povo e polícia: violência urbana no noticiário de imprensa. Brasiliense: São Paulo, 1983.
BOBBIO, N. Dicionário de política. 2 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1986.
CHEVIGNY, Paul. Definindo o papel da polícia na América Latina. In: MENDEZ, J.E, O`DONNELL, G. PINHEIRO, P.S. (Org.) Democracia, Violência e Injustiça: o não estado de Direito na América Latina. São Paulo: Paz e terra, 2000, p 65-87.
DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: DAGNINO, Evelina (Org.). Os anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 103-115
DAGNINO, Evelina. Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. In: DAGNINO, Evelina (Org.). Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 9-15.
DAGNINO, Evelina. Sociedade Civil, Espaços Públicos e a Construção Democrática no Brasil: Limites e Possibilidades. In: DAGNINO, Evelina (Org.). Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 279-302.
KUNTZ, Rolf. Locke, liberdade, igualdade e propriedade. In: QUIRINO, Célia N. Galvão; BRANDÃO, Gildo Marçal; VOUGA, Claudio José T. (Org.). Clássicos do Pensamento Político. São Paulo: EDUSP, 2004.
MACÉ, Eric. As formas da Violência Urbana: uma comparação entre França e Brasil. Tempo Social; Revista de Sociologia. USP, São Paulo, 9 (1), maio 1997, p. 177-188.
MELLO, Leonel Itaussu Almeida. Jonh Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, Francisco C. (Org.), Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática, 1989.
MORRESI, Sergio. Pactos e Política: o modelo lockeano e a ocultação do conflito. In: BORON, Atílio A. (org.), Filosofia Política Moderna De Hobbes a Marx. Buenos Aires; São Paulo: CLACSO, EDUSP, 2006.
RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco C. (Org.), Os clássicos da Política. São Paulo: Ática, 1989.
RIBEIRO, Renato Janine. Thomas Hobbes, ou: a paz contra o clero. BORON, Atílio A. (org.), Filosofia Política Moderna De Hobbes a Marx. Buenos Aires; São Paulo: CLACSO, EDUSP, 2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós contratualismo. In: HELLER, Agnes (et. al.) A crise dos paradigmas em Ciências Sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
SILVA, Luís Antonio Machado. Criminalidade Violenta: por uma nova perspectiva de análise. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, 13, nov. 1999, p 115-124.
SOARES, Luiz Eduardo. Meu Casaco de General: 500 dias no front da segurança pública. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
TABAGIBA, Luciana. Os Conselhos Gestores e a Democratização das Políticas Públicas no Brasil. In: DAGNINO, Evelina (Org.). Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 47-103.
TELLES,Vera da Silva. Sociedade Civil e a Construção de Espaços Públicos. In: DAGNINO, Evelina (Org.). Os anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 91-102.
VELHO, Gilberto. Violência e cidadania. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 23. 1980, p. 361-364.
ZALUAR, Alba. Violência e crime. In: MICELI, Sergio. (org.). O que ler na Ciência Social brasileira. (1970-1995). São Paulo: Sumaré. ANPOCS; Brasília: Capes. 1999. P.13-95.
Residente Jurídico da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UNESA); Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Graduado em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA) .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FRANCISCO, RODRIGO KSZAN. A violência e o Estado: Hobbes e Locke Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 ago 2024, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66141/a-violncia-e-o-estado-hobbes-e-locke. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Marco Aurelio Nascimento Amado
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
Por: Adel El Tasse
Por: André Jales Falcão Silva
Precisa estar logado para fazer comentários.