RESUMO: Neste artigo a principal tarefa que nos propomos é discutir o possível conceito de violência. A produção científica dedicada à violência urbana e seus desdobramentos, assim como causas e consequências, é significativa, por isso, algumas delas serão usadas nesse trabalho, com o fim de buscar uma concepção do que se entende por violência e em quais contextos.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Violência, pobreza e desigualdade; 3. Violência e cultura; 4. Violência e Estado – as polícias; 5. Conclusão; 6. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
O debate sobre a segurança pública e os meios de controle da violência no meio urbano, vêm ocupando cada vez mais espaço entre os diversos setores da sociedade civil, tanto nacional quanto internacionalmente. No Brasil a preocupação com as questões ligadas à violência urbana e à segurança não atingem apenas a sociedade civil, mas vem ganhando atenção também de segmentos ligados à política.
A produção científica dedicada à violência urbana e seus desdobramentos, assim como causas e consequências, é significativa. No Brasil, mesmo antes do fim da ditadura militar, diversos autores, tais como Alba Zaluar, Maria Victoria Benevides, Gilberto Velho, entre outros, já discutiam como se dava e quais as especificidades da violência brasileira.
Contudo, a grande discussão sobre o tema se dá a partir do retorno à democracia, pois com o fim do regime autoritário, delinearam-se várias possibilidades de participação popular na administração e distribuição de políticas públicas. Entretanto, mesmo com as mudanças no sistema político, e com a reflexão sistematizada acerca desta questão, a violência não diminuiu.
Em relação às concepções teóricas existentes acerca da problemática apontada (violência urbana e criminalidade, Estado e cidadania), é importante salientar que nesse trabalho nem todas serão discutidas, já que este não é o foco desta pesquisa. Assim sendo, as concepções aqui abordadas são as seguintes:
a) a que entende ser a violência um processo estrutural, consequência das desigualdades sociais e diferenças econômicas predominantes, gerando a criminalidade no Brasil;
b) a que considera que no Brasil a violência está totalmente ligada à formação social e cultural do país, caracterizada por processos extremamente violentos.
c) a que acredita estar no Estado a resposta para todas as questões relacionadas ao crime.
2. VIOLÊNCIA, POBREZA E DESIGUALDADE
Quanto à primeira, muitas discussões apontam para o problema da desigualdade como gerador da violência. O aumento do desemprego unido ao crescimento do crime organizado no país trouxe à tona discussões sobre a relação pobreza/violência, incluindo não somente a ausência de uma estrutura social, como também a formação das novas gerações que se espelham nos traficantes como figura paterna. Outros apontam para a questão da formação social do brasileiro, explicitando que a violência surge não apenas da conjuntura histórica social, mas sim da própria relação cotidiana do indivíduo. Por fim, temos aqueles que vêm no autoritarismo e corrupção da polícia, unido a incapacidade da Justiça em cumprir com seu papel, a causa da violência no Brasil. Portanto, o objetivo deste artigo é descrever cada uma dessas correntes explicativas da violência e suas consequências para a sociedade brasileira.
A desigualdade tem papel fundamental na discussão sobre a violência, pois partem dos locais menos favorecidos os maiores índices de violência, assim como é neles que o tráfico de drogas possui suas maiores redes. Por esta razão a relação desigualdade/violência, pobreza/crime precisa ser cuidadosamente trabalhada, não se fazendo uma ligação direta entre os dois (ZALUAR. 1999)
Durante muito tempo, sobre o conceito de “violência estrutural” se defendeu a ideia de que a violência era causada pela falta de infraestrutura básica para os cidadãos de classes mais pobres. Era uma violência praticada pelo Estado contra a sociedade e que a consequência dessa falta de recursos culminava no crime, ou seja, como os indivíduos não possuíam emprego, saúde, lazer, educação, praticavam crimes como forma de compensar essa falta.
Alguns autores, principalmente americanos, explicavam que essa situação se dava porque as sociedades haviam crescido rapidamente e gerado uma migração ainda maior para seus centros, o que fez com que as cidades inchassem e o Estado mostrou-se incapaz de atender a essas demandas. Mas assim como esses indivíduos ficavam concentrados nas periferias das cidades, eles também desejavam ocupar os espaços centrais, daí a prática de crimes, principalmente contra a propriedade, configurando-se, uma forma de obter os bens que eles não poderiam possuir de outro modo. Ou seja, haveria uma relação direta entre o crime e a pobreza desses bairros. Como esses indivíduos eram pobres roubavam para conseguir aqueles bens que as outras classes podiam obter pela via legal.
Essa teoria é problemática, primeiro, porque considera que todos que são pobres também são criminosos, excluindo-se a grande maioria dos trabalhadores, que não possuem ligação alguma com o crime. Segundo, essa teoria mostra uma visão das classes favorecidas, que acabam sofrendo os crimes, já que considera como sendo desejo de todos aquilo que elas possuem como seus bens, suas moradias, aquilo que elas conseguiram pela via legal.
Contudo, ao se considerar que as classes pobres desejam as mesmas coisas que as ricas e satisfazem esse desejo através da via ilegal cria-se uma contradição em relação às classes pobres. Por um lado, eles seriam conformados com sua situação de pobreza. Eles aceitam que são pobres e que seu esforço no trabalho não trará os mesmos benefícios que traz para as outras classes. Por outro lado, eles seriam inconformados com essa situação e por isso roubam para se igualarem ao resto da sociedade (ZALUAR, 1999).
Portanto, seria uma situação paradoxal, na qual esses indivíduos não teriam inclusive um porquê para cometerem crimes contra seus vizinhos, o que ocorre com muita frequência, já que seu objetivo seria conquistar aquilo que as outras classes possuem. Por fim, essa teoria acaba por segregar, discriminar e incitar a violência, diversas vezes a institucional, contra essas classes, apenas por serem pobres.
No Brasil alguns autores viram na violência das classes pobres não apenas um aumento da criminalidade, mas sim, uma forma de resposta política a condição que vivenciavam. Acreditavam que o crime teria um caráter político, que os jovens, ao cometerem furtos, estariam mostrando para o resto da sociedade quem eram e o que queriam. Esse pensamento foi desacreditado quando começaram a surgir os casos de linchamentos, que não eram dirigidos as outras classes e que possuía um viés de brutalidade impensado para uma ação política.
Outros viram no crime uma forma de sociabilidade específica. Uma influência clara do relativismo cultural, que viu na violência dos pobres um tipo de relação entre eles que os mantinham dentro daquela lógica. São as regras de respeito e honra que existem dentro das organizações criminosas, nas quais as traições são punidas com penas severas e até de morte (ZALUAR, 1999; SOARES, 2005). Essa teoria acreditava que essas regras eram um novo tipo de sociabilidade. Contudo, essa teoria não conseguiu explicar por que a violência, principalmente os homicídios, cresceu tanto dentro das próprias comunidades. Os jovens estavam matando outros jovens do próprio bairro, seus vizinhos, colegas.
Entretanto, o maior problema da relação violência/pobreza está no fato do tipo de crime que se instalou nos bairros mais pobres. O tráfico de drogas montou suas redes de vendas dentro das favelas e morros das grandes cidades. O motivo para que isso ocorresse foi, primeiro, porque essas são áreas onde o poder do Estado está enfraquecido, isto é, ele já não atende as necessidades básicas dessas populações, como saúde, educação, saneamento, lazer etc. Assim, nessas áreas, a face predominante do Estado é a polícia, que trata diferenciadamente os pobres, negando-lhes a mesma dignidade que confere a um rico, tornando-se, portanto, em campo favorável para o florescimento e manutenção de relações criminosas.
Segundo, nesses locais o tecido social está esfacelado, por isso, jovens e crianças ficam sem um referencial sobre o certo e o errado. Seus pais precisam trabalhar, muitas vezes em dois ou três empregos, quase sempre demoram 1 ou 2 horas para ir e vir do trabalho. A figura paterna, tão importante na fase de desenvolvimento da personalidade, é substituída pela figura do traficante. Ao verem esses indivíduos ostentarem poder, imporem medo, enriquecer de modo tão rápido, em oposição ao esforço dos pais, tendo que trabalhar muitas vezes doze horas por dia, acabam indo arriscar a vida na luta armada contra outros morros e contra a polícia.
Muitos desses meninos entram no mundo do tráfico para provarem que também são capazes e melhores que seus pais, diversas vezes inferiorizados por viverem a vida trabalhando sem conseguir acumular bens, prestígio e reconhecimento. É o que Alba Zaluar, usando o conceito de Nobert Elias, chama de “etos guerreiro”, que seria essa forma dos jovens arriscarem suas vidas como forma de provarem que podem ser considerados homens.
Atraídos por essa identidade masculina, os jovens, nem sempre os mais destituídos, incorporam-se aos grupos criminosos em que ficaram à mercê das rigorosas regras que proíbem a traição e a evasão de quaisquer recursos, por mínimos que sejam. Entre esses jovens, no entanto, são os mais destituídos que portam o estigma de eternos suspeitos, portanto incrimináveis, quando são usuários de drogas, aos olhos discriminatórios das agências de controle institucional. Com um agravante: policiais corruptos agem como grupos de extorsão, que pouca diferença guarda com os grupos de extermínio que se forma com o objetivo de matar os eternos suspeitos. Quadrilhas de traficantes e assaltantes não usam métodos diferentes dos primeiros e tudo leva a crer que a luta pelo butim entre eles estaria levando à morte os seus jovens peões. No esquema de extorsão e nas dívidas com traficantes ou policiais, os jovens que começaram como usuários de drogas, são levados a roubar, a assaltar e algumas vezes até a matar para pagar aqueles que os ameaçavam de morte – policiais ou traficantes – caso não consigam saldar a dívida. Muitos deles acabam tornando-se membros de quadrilhas, seja para pagar dívidas, seja para se sentirem mais fortes diante dos inimigos criados, afundando cada vez mais nesse círculo diabólico que eles próprios denominam “condomínio do diabo” (ZALUAR, 1999, p 67).
Enfim, a desigualdade se torna tão importante a partir do momento em que as populações pobres, abandonadas pelos órgãos públicos e inseridos em um sistema capitalista que cada dia mais restringe o mercado de trabalho, deixa à mercê de criminosos a regulação de toda vida social desses bairros.
Quem mais sofre com a relação pobreza/crime são os próprios indivíduos pobres que vivem no meio desses confrontos, ou seja, as populações pobres são tão culpadas como vítimas (ZALUAR, 1999), num processo que cada dia mis leva os jovens dos morros para o mundo do tráfico.
3. VIOLÊNCIA E CULTURA
Uma outra concepção de análise da violência urbana, leva em consideração a violência da sociedade brasileira, colocando que o próprio brasileiro é violento, por apoiar ideias de pena de morte e tortura contra criminosos. Esse argumento foi muito usado para explicar a violência policial: a polícia era violenta porque a população era violenta e pela polícia agir com violência a população reagia com violência, gerando um ciclo de violência crescente, sem explicações.
Alguns autores afirmavam que essas explanações por penas mais duras vinham do fato de que existia uma forte e excessiva manipulação política de imagens relacionadas ao crime nos meios de comunicação. Ou seja, haveria um “imaginário do medo” que manteria o apoio da população às políticas duras contra o crime. Em vez de investir em prevenção, criava-se o medo e com isso se reinvestia nos mesmos métodos arcaicos de políticas de segurança: maior efetivo policial nas ruas e uma liberação para manter a ordem através da repressão. Ao invés de se investir em educação, cultura, saúde, cria-se o medo na população com a ajuda da mídia e com isso se mantém a velha estrutura.
Haveria então uma situação paradoxal: “quanto mais se ampliam a percepção publica da criminalidade como problema central das grandes cidades e a demanda por políticas de segurança, menos conhecemos o fenômeno, e cada vez mais as lacunas cognitivas tendem a ser preenchidas por mitos, crenças e emoções” (PAIXÃO, 1987). Por sua vez, os medos populares, ainda que legítimos e compreensíveis, induziram mais a reações das autoridades (COELHO, 1986b) ou a demanda por escaladas punitivas (ZALUAR, 1985b), e menos à formulação de um elenco de políticas sistemáticas que, ampliando a eficiência do aparelho policial na prevenção e detecção de atores criminosos, tornaria mais rápida e equitativa a decisão judiciária e diminuiria os coeficientes de reincidência, reduzindo as taxas de criminalidade e garantindo a segurança pública nas cidades brasileiras. O círculo vicioso do medo e da ineficiência institucional se desfaria (ZALUAR, 1999, p 52).
Outros autores apostaram no estudo detalhado da vitimização para descobrir qual era o real sentimento de medo na população e as respostas vieram a confirmar o que a mídia dizia: as pessoas estavam sentindo medo, mesmo que muitas vezes elas nem tivessem vivido aquela situação; elas reproduziam o sentimento de medo das pessoas que elas ouviam ter sofrido algum tipo de violência (SOARES, 2005). Ou seja, muitas pessoas ficam presas a ideia de que é preciso maior repressão e até autoritarismo por parte dos órgãos de punição, sem terem vivido uma situação de perigo.
Contudo, esses estudos de vitimização mostraram que muitos casos são irreais e manipulados ou até mesmo inexistentes, pois, é impossível para o Instituto Médico Legal (IML) dizer que um indivíduo que morreu baleado foi morto por assalto, por acidente ou até mesmo pelos policiais. O mesmo vale para os assaltos e agressões. Ficou constatado que a maior parte da população não registra queixa quando é assaltada ou roubada, o que mostra que as pessoas não confiam no sistema de justiça e preferem resolver suas desavenças com as próprias mãos. Como descreve Zaluar citando Lamounier e Santos, que ao contrário dos pensadores da Primeira Republica, que acreditavam em um Leviatã benevolente e uma sociedade amorfa, porém cordial, os pensadores deste fim de milênio, como Santos, mostram um “Estado despótico e uma sociedade inorgânica, porém, malévola e negadora do conflito” (ZALUAR, 1999, p 53).
Esta situação mostra que mesmo com o desenvolvimento da democracia, o brasileiro não confia nas instituições públicas como capaz de resolver os conflitos que a sociedade demanda, e isso poderia ser entendido como um sinal de que a sociedade brasileira é violenta. Contudo, se isto fosse verdade então faltaria a explicação da razão pela qual desde os anos 1980 a violência vem crescendo tanto e se modificando na sua forma de atuar. Se o aumento da violência estivesse ligado ao comportamento do brasileiro, esta não teria por que aumentar ou diminuir apenas se manteria como estava e não foi o que aconteceu. Então qual seria a relação entre a violência e a população?
Muitos estudos mostraram que a resposta estaria no esfacelamento do tecido social provocado pelo aumento da criminalidade violenta e as desastrosas tentativas de seu controle. A violência teria aumentado porque, com a população com medo e cada vez menos participativa das ações em suas comunidades, ela perdeu espaço para o crime, que foi tomando conta inclusive dos pontos políticos desses lugares, como as associações de moradores, enfraquecidas pelos traficantes (ZALUAR, 1999). Isso fez com que os espaços públicos da sociedade ficassem cada vez mais vazios e ocupados por criminosos.
As relações sociais ficaram limitadas; a desconfiança e o medo fez com que muitos lugares, que seriam de convivência mútua, como as pessoas sentadas em frente as suas casas nos bairros afastados do centro da cidade, foram se perdendo por causa do medo e com isso também o fortalecimento da sociedade em suas relações mais especificas e próximas.
Enfim, o medo leva as pessoas a se defenderem e a medida mais rápida e barata para se defender é se armar. É o que acontece com a política pública de segurança: ao implantar o medo nos cidadãos, busca manter o mesmo sistema de repressão policial. Contratam-se mais policiais, mas que não são adequadamente preparados. Tem-se apenas um efetivo que reproduz as mesmas atrocidades autoritárias da época da ditadura militar na democracia (SOARES, 2005; ZALUAR, 1999; CHEVINY, 2000; MACÉ, 1998; ADORNO, 1998; BENEVIDES, 1983).
4. VIOLÊNCIA E ESTADO – AS POLÍCIAS
Por último temos os autores que discutem a questão das instituições do Estado na geração da violência. Muito se discute sobre as políticas de prevenção e repressão do crime e como esta ocupa lugar de destaque nas reclamações de ineficiência que trazem o medo e a insegurança. Alguns como Campos Coelho e Paixão acreditavam que o crime era feito por escolhas racionais e que por esta razão uma forma de desestimular o crime seria implantando medidas que promovessem maior emprego para os que possuíam maior dificuldade de encontrá-lo. Contudo, é consenso que existe uma situação emergencial e que o crime precisa ser contido, para que ao mesmo tempo medidas de reestruturação social possam ser aplicadas nos locais de maior necessidade. Mas para conter o crime é necessário o uso da polícia e a eficiência da justiça.
Desde a formação do pacto social – tanto hobbessiano quanto lockeano – a polícia sempre foi essencial para a manutenção da ordem, pois, sendo formada por membros da própria sociedade[1], são os responsáveis pela garantia da aplicação e seguimento das regras estabelecidas pelas leis, punindo os transgressores com as penas cabíveis. Durante o período militar brasileiro a ordem foi um objetivo obsessivo a ser alcançado pelo Estado, que para tal usou a força tanto do exército quanto da polícia comum para esta finalidade. Com o fim do regime, o exército saiu das ruas, mas a polícia continuou. A democracia retornou. Para a sociedade havia agora a possibilidade de participação nas decisões que afetavam suas vidas, maior transparência e, finalmente, o poder estava nas mãos do povo através de seus representantes políticos. Contudo, a polícia continuou a ser a mesma que utilizava métodos brutais para manter a ordem e numa sociedade onde todos, sem distinção, devem seguir as leis, os casos de brutalidade e abuso de poder acabam nas manchetes e trazem mais insegurança que proteção.
Dessa situação que se colocam os questionamentos sobre a forma como a polícia, que é o representante direto do Estado (SOARES, 2001), atua na sociedade. Se ela representa a lei também deveria seguir a lei e não criar uma lei própria para cada situação. Os casos de corrupção policial são um exemplo desse paradoxo, os casos de tortura e chacinas também. Mas na prática qual a consequência dessa situação para a sociedade? A resposta está na imagem que a população faz tanto da polícia quanto do Estado como responsável pela segurança. As pessoas perdem o parâmetro do que é certo e do que é errado, justificando muitas vezes seus atos com exemplos dessas instituições ou exigindo ações mais repressivas devido ao medo que sentem diante da situação que visualizam da violência da sociedade, ou seja, diante da insegurança: repressão. Portanto, o problema está na forma como a polícia age.
Primeiro antes de qualquer ação ela deve cuidar de seus atos, não há possibilidade de se cobrar respeito desrespeitando a lei e o direito dos indivíduos. Segundo a diferença com que age nos lugares pobres e nos bairros ricos: nos primeiros, como um predador que tem como objetivo manter aquelas pessoas encarceradas em seus locais; nos outros, os bairros ricos, agem como verdadeiros protetores da lei e da segurança impedindo assaltos e indivíduos suspeitos de circularem pela área (SANTOS, 1999).
Boaventura de Sousa Santos chama essa situação de “estado paralelo”, que reitera a separação entre áreas civilizadas e as áreas selvagens. Luis Eduardo Soares mostra que a violência policial insere mais medo que a violência do bandido, pois, a do bandido é sempre certa. É fato que se um bandido vir um indivíduo na rua ele poderá roubar, mas ele somente poderá roubar ou continuar andando. Já a polícia não se tem essa de certeza, ela pode tanto proteger quanto prender ou pedir suborno, e isso gera muito mais insegurança que ser ameaçado por bandidos (SOARES, 2005).
Além da polícia existe o problema da justiça ineficiente. O Brasil, com a Constituição de 1988, buscou implementar uma sociedade democrática e igualitária para todos, principalmente na questão da punição contra as más condutas. Os direitos humanos e a dignidade da pessoa estão por todo o texto da Carta Magna. Contudo, depois de quase trinta anos da promulgação o que se vê é o oposto, a justiça age com maior rigor contra pobres e constrói medidas de proteger cada vez mais os ricos[2].
Outro problema está no tempo que cada julgamento demora, assim como a resolução dos casos. Hoje a média de duração de um processo na Justiça é de quatro a seis anos, se a disputa for simples e não houver um acordo. Isso porque muitas ações desnecessárias são resolvidas no poder judiciário. Mas não que isto esteja errado. A democracia foi criada para isso: resolver os conflitos de modo justo. Contudo, existe uma má organização e uma burocratização excessiva por parte do Estado que segrega ainda mais a participação da população pobre na vida democrática do país. Pois, ao se cobrarem preços absurdos para se propor uma ação, muitas pessoas que sofrem abusos graves dos seus direitos acabam ficando sem justiça, resultado que no fim da pirâmide leva ao enfraquecimento da confiança no Estado como instituição protetora e aumenta os casos de justiça com as próprias mãos.
Quanto à polícia, o que é preciso é uma reestruturação em toda sua forma de agir com a população. Toda ação de segurança deve ser praticada em conjunto com políticas públicas tanto de incentivo ao emprego, a saúde e ao lazer, quanto ao tratamento policial no combate ao crime organizado, que deve ser mais amplo e definitivo, não apenas reativo. Os direitos humanos não impõem apenas respeito à vida, mas sim respeito aos direitos de sobrevivência de cada um e o incentivo a essas conquistas devem partir tanto do Estado quanto da sociedade, o que inclui uma retomada das discussões sobre a cidadania brasileira.
5. CONCLUSÃO
Diante do que foi exposto e dos objetivos propostos para este trabalho, pode-se chegar à seguinte conclusão: para que a violência, em todas as suas formas e modos, venha a ser diminuída - pois resolvê-la de vez seria quase impossível já que ela se insere na dinâmica social e assim como esta também passa por transformações - depende da atitude da sociedade em acreditar na postura cidadã modificante e exigir, de quem possui o poder de mudar, que o faça. O que isso quer dizer é que para que a sociedade como um todo se transforme é necessário que sua base mude. Os indivíduos de uma sociedade somente terão aquilo que desejam quando encararem o espaço social como um lugar seu. Um local que depende de sua postura para melhorar, pois, assim o espaço público, que é um espaço de conflito, se tornará aberto e composto dos diferentes indivíduos que formam a sociedade.
A razão de se fazer uma mudança na sociedade, e não apenas na forma de atuação do Estado, seria o princípio de uma mudança estrutural em toda ordem, alterando as formas de agir e pensar dos indivíduos. Como explica Vera Telles (1994), é preciso que a noção de direitos esteja enraizada nos indivíduos, pois, somente assim a possibilidade de convivência pode ser concretizada. E com o respeito às diferenças, cria-se também a possibilidade de diálogo, de sociabilidade entre os diferentes segmentos sociais, que de um modo ou de outro precisam se entender para assim poderem consolidar uma verdadeira cidadania, que pratique a inclusão de todos e não que lute e exija que os órgãos públicos acabem por reproduzir ainda mais a miséria e a violência nas áreas mais pobres e destituídas das cidades.
Contudo, o motivo mais forte de se depositar na sociedade a esperança de mudança advém do fato de que ela é a beneficiária final de todas as ações que se empreendem no universo público. Ou seja, o Estado, a organização social, as leis, quase tudo existe pela razão única de que a sociedade é formada de indivíduos que dependem de outros indivíduos, por isso, a partir do momento que essas pessoas compreendem que o espaço público de debate é um espaço seu, que a preservação dele depende de cada um, assim a transformação contínua da sociedade será possível.
Essa atitude a longo prazo é capaz de transformar inclusive a atuação do Estado. Primeiro, porque conforme os indivíduos vão se organizando e se respeitando em suas diferenças, mais definidas se tornam as exigências para mudanças. Segundo, se o respeito vier da base, que é a sociedade, se esta mudar e passar a exigir uma vida e uma política mais honesta, também o Estado mudará. Os políticos que governar serão obrigados a respeitar as exigências de todos, assim como as polícias e outros representantes da máquina pública perante a sociedade.
Enfim, o presente trabalho mostrou que a violência urbana ainda envolve muitas outras questões que primeiro precisam ser resolvidas. O pacto social não pode continuar como fator de exclusão e a sociedade não deve aceitar apenas medidas de repressão que terão, em um futuro não distante, um resultado como o visto pela ditadura militar de 1964 – o caos acaba levando a atitudes extremadas que no seu ápice acaba por obrigar o sacrifício de toda a sociedade. Questões de como a cidadania deve se consolidar, sem cometer os erros que são vistos por quase todas as ações de cunho popular e que acabam por no máximo discutir como conseguir recursos o discutindo sua própria organização, procurando restringir a divisão do poder dentro dessas iniciativas.
Portanto, a violência ainda merece muito mais atenção, tanto dos órgãos públicos, quanto do mundo acadêmico e quanto da sociedade. Uma integração multidisciplinar deve procurar responder quais as causas e como resolver o problema. Somente assim os motivos que levam os indivíduos a se envolverem com o mundo do crime podem ser evitados e com isso poderá diminuir a insegurança que hoje paira sobre a vida de todas as pessoas.
5 - BIBLIOGRAFIA
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[1] Isso é importante ressaltar porque os policiais atuam em sua própria sociedade, são parte dela e suas ações acabam voltando muitas vezes para si mesmos.
[2] Vale lembrar que muitas vezes não se burla a lei para proteção e sim se usam de brechas pré-estabelecidas para a não punição. Os casos de CPI não terminados são um exemplo, assim como a imunidade parlamentar.
Residente Jurídico da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UNESA); Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Graduado em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA) .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FRANCISCO, RODRIGO KSZAN. Violência: a construção de um conceito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 set 2024, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66403/violncia-a-construo-de-um-conceito. Acesso em: 24 nov 2024.
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