MARCOS AURÉLIO MOTA JORDÃO[1]
MARIA BEATRIZ DOS SANTOS[2]
(coautores)
RESUMO: O presente artigo debruça-se sobre um problema sensível que tem bastante relevância, não apenas acadêmica, mas especialmente no âmbito social. Questões que perpassam o imaginário popular: como pode uma criatura que deveria dar amor e proteção, ser capaz de cometer muitas vezes atrocidades contra seres que ela mesmo gerou e pôs no mundo? O que faz uma mãe incidir no cometimento de violência doméstica contra seus filhos? De que forma a legislação estaria exercendo o seu papel no processo de repreensão nestes casos? Falando-se especificamente em violência doméstica e familiar cometida por meio das mães para com os seus filhos, busca-se analisar a linha tênue que há nessas relações paradoxais e complexas que estão presentes nos lares de tantas famílias brasileiras, e que é de certa forma pouco explorada no âmbito acadêmico e até mesmo nos debates atuais, quando trata-se da aplicação e da importância da Lei Maria da Penha. Basilar na sociedade, a mãe tem papel fundamental na vida do ser humano. A ausência da mãe na vida de seu rebento, seja por não mais existir ou por motivos outros, causa inúmeros danos emocionais. Agora imagine uma mãe que existe e de certa forma que é presente na vida do filho, só que de forma totalmente inversa e indesejada, se utiliza da autoridade que possui para cometer violências incontáveis, inimagináveis contra seu filho; será que o direito se preocupa com esse tipo de conduta que passa de forma silenciosa na sociedade? Esse trabalho visa demonstrar que as discussões acadêmicas sobre o tema não são suficientemente específicas quanto ao aprofundamento do efetivo papel da legislação no processo de combate ao fim dessa violência, que consequentemente gera um ciclo de outras violências; e o quanto a educação pode ser dignificante na vida de um ser humano vítima de tais atrocidades; a discussão de políticas públicas concretas na implementação da educação como instrumento erradicador das violências presentes nos lares brasileiros; com visões doutrinárias nas áreas sociológicas, jurídicas e de direitos humanos como um todo, sobre os caminhos que se podem avançar na concretude dos direitos de filhos vítimas de violência perpetradas pelas mães.
PALAVRAS-CHAVE: violência; filhos; mães; família.
ABSTRACT: This article focuses on a sensitive problem that is very relevant, not only academically but especially in the social sphere. Questions that permeate popular imagination, how can a creature that should provide love and protection, be capable of often committing atrocities against beings that it itself generated and placed in the world? What makes a mother commit domestic violence against her children? How would legislation play its role in the reprimand process in these cases? Speaking specifically about domestic and family violence committed by mothers towards their children, we seek to analyze the fine line that exists in these paradoxical and complex relationships that are present in the homes of so many Brazilian families, and which is, in a certain way, little explored in the academic field and even in current debates, when it comes to the application and importance of the Maria da Penha Law. Basic in society, the mother plays a fundamental role in the life of human beings. The absence of a mother in her child's life, whether because she no longer exists or for other reasons, causes countless emotional damages. Now imagine a mother who exists and in a certain way is present in her child's life, but in a completely opposite and unwanted way, when she uses the authority she has to commit countless, unimaginable violence against her child, would the right Are you concerned about this type of conduct that passes silently in society? This work aims to demonstrate that academic discussions on the topic are not sufficiently specific in terms of deepening the effective role of legislation in the process of combating the end of this violence, which consequently generates a cycle of other violence and how education can be dignifying in life of a human being victim of such atrocities; the discussion of concrete public policies in the implementation of education as an instrument to eradicate violence present in Brazilian homes; with doctrinal views in the sociological, legal and human rights areas as a whole, on the paths that can be taken to achieve the concrete rights of children who are victims of violence perpetrated by their mothers.
KEYWORDS: violence; children; mothers; family.
1. INTRODUÇÃO
Ser mãe, sem sombra de dúvidas, é uma dádiva, um papel essencial não só para a sociedade como um todo, mas especialmente para aqueles que estão destinados a serem os filhos. Portanto, uma mulher deveria exercer o papel de mãe da forma mais dignificante possível. Contudo, não é sempre assim que acontece.
Idealizadas para serem perfeitas, as mães são vistas pela sociedade como algo sagrado, imaculado, onde tudo o que fazem é apenas e exclusivamente pelo bem-estar dos filhos, mas muitos se esquecem que assim como qualquer outra pessoa, as mães são seres humanos, dotadas de qualidades e também de defeitos, passíveis de cometerem erros e até mesmo crimes contra os próprios filhos.
Quantos relatos podemos observar nos noticiários de mães que agrediram, abusaram ou até mesmo assinaram os seus filhos? Seja por meio da prática do infanticídio, que conforme o disposto no Código Penal no seu art. 123 matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após, resulta em pena de dois a seis anos; seja por qualquer outro meio vil que não justifica tantas outras violências.
Há também a figura das mães narcisistas, essas com requintes de crueldade cometem diversos abusos contra os próprios filhos. O narcisismo materno é marcado por um relacionamento abusivo que, geralmente, envolve a destruição da autoestima, confiança e autonomia dos filhos.[3]
Podemos conceituar o narcisismo conforme Drauzio Varella (2022):
O transtorno de personalidade narcisista é uma condição psiquiátrica complexa, que provoca no indivíduo um padrão generalizado de grandiosidade (sentem-se superiores aos outros), necessidade de atenção constante e adulação, além de falta de empatia. Esses comportamentos costumam causar relacionamentos conturbados.
De acordo com Roussillon (2023, p. 07) considera-se narcisismo:
Arriscando uma definição mais aproximada do narcisismo, podemos concebê-lo como um investimento do sujeito em si mesmo. Em outras palavras, é o modo pelo qual o sujeito mantém uma relação libidinal consigo mesmo: “eu me amo” ou “eu não me amo”, “eu me odeio” ou “eu me adulo”, “eu me admiro” ou “eu me detesto”, “eu me mataria”, além de todas as formas do sentimento interno de culpa. Todos os aspectos da relação do sujeito com ele próprio, portanto, estão envolvidos no narcisismo. Ressalto isso porque, quando se fala em narcisismo na mídia, sempre se trata do amor de alguém por si mesmo. De fato, se nós nos referirmos ao mito de Narciso, das Metamorfoses de Ovídio, sabemos que o Narciso da lenda se apaixona por si próprio. Porém esse amor é complexo, porque a paixão de Narciso por si mesmo é tão avassaladora que o paralisa e o faz perecer. Em outras palavras, esse amor comporta em si uma espécie de êxtase destrutivo, de apagamento de si na relação consigo.
Para a Organização Mundial da Saúde o transtorno de personalidade narcisista é caracterizado por um padrão de grandiosidade, falta de empatia e uma necessidade de bajulação, o diagnóstico somente poderá ser dado por critérios clínicos e o tratamento se dá mediante psicoterapia.
Sendo assim, é válido ressaltar como a OMS (2023) conceitua o transtorno de personalidade narcisista, senão vejamos:
Pacientes com transtorno de personalidade narcisista superestimam suas habilidades e exageram suas realizações. Eles acham que são superiores, originais ou especiais. Essa superestimação de seu próprio valor e realizações muitas vezes implica uma subestimação do valor e das realizações dos outros. Esses pacientes estão preocupados com fantasias de grandes realizações—de serem admirados por sua inteligência ou beleza avassaladora, de ter prestígio e influência ou de experimentar um grande amor. Eles sentem que devem se relacionar apenas com outros tão especiais e talentosos quanto eles mesmos, não com pessoas comuns. Esse relacionamento com pessoas extraordinárias é utilizado para suportar e melhorar sua autoestima. Como os pacientes com transtorno narcisista precisam ser admirados, sua autoestima depende da consideração positiva dos outros e é, portanto, geralmente muito frágil. As pessoas com esse transtorno frequentemente observam para ver o que os outros pensam deles e avaliar o quão bem eles estão fazendo. Eles são sensíveis e se chateiam com as críticas dos outros e pelo fracasso, o que faz com que se sintam humilhados e derrotados. Eles podem responder com raiva ou desprezo, ou podem contra-atacar violentamente. Ou eles podem se afastar ou aceitar externamente a situação em um esforço para proteger sua sensação de autoimportância (grandiosidade). Eles podem evitar situações em que podem falhar.
Sendo assim, observa-se que o a característica principal da pessoa com transtorno de personalidade narcisista é a necessidade de admiração. Dotadas de egocentrismo e por busca incessante de reconhecimento, o seu principal gatilho é o questionamento real ou suposto de capacidade. Como dito anteriormente, o tratamento para essa patologia se dá apenas por meio de psicoterapia, sendo o uso de medicações utilizados apenas em estado de extrema gravidade.
No mesmo sentido assevera Asciutti, Macaya e Sallet (2023, p. 219):
Quanto à psicofarmacologia, não há ensaios clínicos realizados avaliando a eficácia de medicações para o TPN. É recomendado que medicações sejam utilizadas apenas quando houver sintomas graves, como agressividade, alterações cognitivas perceptuais, desregulação emocional importante ou comorbidade com outros transtornos psiquiátricos.
A mãe narcisista no entanto, por possuir as características descritas no transtorno de personalidade narcisista, expressa a grande necessidade de ser superior ao seu filho, e sendo assim, por meio de arteficios vis e cruéis inicia uma série de maus-tratos para com o filho, seja com agressões físicas, morais , psicólogicas e físicas-psicólogicas, onde envolve as duas formas de agressão de forma simultânea. Esse tipo de mãe passa despercebida no seio social, tendo em vista que a figura materna é endeusada pela sociedade, assim as mesmas fazem uso da proteção dada popularmente pela expressão “mãe é mãe” e praticam covardemente uma série de violências contra os seus filhos.
Neste mesmo teor assevera Pinto (2020, p. 33):
Como a mãe narcisista manipula e deturpa a realidade de maneira convincente, vitimiza-se em relação ao filho, com o objetivo de se sentir apoiada no seu papel enquanto mãe, usando os demais contra este. As suas ações tornam-se assim invisíveis para todos, exceto para as suas vítimas, neste caso, o próprio filho. Nos casos em que tenham mais que um filho, as mães narcisistas tendem a favorecer um em relação ao outro, manipulando o filho favorito de forma a terem apoio no bullying sobre o filho que não corresponde às suas expectativas. Estes comportamentos da mãe narcisista tornam-se cada vez mais evidentes à medida que a criança atinge a puberdade ou a idade adulta, ao começar a procurar a sua própria identidade e independência. As mães narcisistas revelam-se, assim, possessivas em relação aos filhos, controlando-os com ameaças, chantagens e abusos emocionais (e por vezes físicos), reclamando que não são submissos o suficiente. Deste modo, negligenciam e desprezam também a autonomia e as fases normais de crescimento dos filhos, sentindo-se ameaçadas pela independência crescente destes, temendo deixarem de ser o centro das suas vidas. Estas ocorrências ampliam a gravidade das circunstâncias do filho, que se vê preso nesta relação tóxica.
Abusivas, manipuladoras e extremamente nocivas as mães narcisistas são extremamente prejudiciais para o desenvolvimento do seu filho, visto que seu modo de ser para com o rebento acarreta uma série de danos, e podemos ver como consequência o prejuízo que há na saúde mental dos filhos vítimas de abusos cometidos por essas mães.
Assim aduz Silva (2019, p. 21):
Não há limites para uma mãe narcisista. E ela se considera dona dos seus filhos. Eles são uma extensão dela mesma. Constantemente, a individualidade dos/das filhos/as é violada. Como exemplos de atitude narcisista têm-se: marcação de compromissos sem a criança expressar a vontade de ir ou não; escolha daquilo que o/a filho/a pode vestir, comer, ouvir, ver; projeções de sentimentos, sonhos e expectativas, fazendo com que os/as filhos/as só se sintam amados/as e aceitos quando atendem aos desejos maternos. Objetos são dados e retirados ao bel prazer materno, pois não pertencem de fato aos/às filhos/as, mas sim à mãe, quem os comprou e que, por tal condição, acha-se no direito de desfazer-se deles, sem consultar os/as filhos/as. A violação de limites é mais comum na infância, quando a criança ainda não formou uma percepção acerca de si e, consequentemente, do jogo no qual está inserida. Na adolescência, o/a filho/a já tem condições de se perceber e o desejo por autonomia e independência típico dessa fase do desenvolvimento torna-se fonte de conflitos. Aqui, a mãe narcisista encara a resistência adolescente como um questionamento da sua própria autoridade e, então, muitas vezes, utiliza-se de uma metodologia punitiva para repreender e evitar a independência e a autonomia, fazendo com que o/a filho/a sempre esteja em posição dependente e inferiorizada. Outra forma utilizada para controlar a resistência são a manipulação e os jogos de culpa, de forma que o/a filho/a desiste de lutar pela independência, porque sente-se um algoz se o fizer.
Destarte, é perceptível o quão danoso são as más condutas/violências perpetradas pelas mães narcisistas contra os seus filhos. Invisibilizadas por uma sociedade que idealiza a figura materna como um ser dotado de perfeição e ternura, as mães narcisistas se aproveitam da impunidade que gozam e maculam a vida de seus filhos com perseguições, manipulações, destruição de autoestima. Causadoras de danos emocionais e físicos, as mães narcisistas não têm limites, e acabam muitas vezes destruindo a vida de seus filhos para sempre.
Vale salientar que as violências perpetradas pelas mães não são necessariamente cometidas por mães narcisistas, mães que não tem esse distúrbio de personalidade também são passíveis de cometer tais atos violentos em face dos filhos.
2. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA OS FILHOS
A violência doméstica não escolhe idade, cor, classe social, etnia ou nível de escolaridade. A Lei Maria da Penha define em seus incisos de I a III do art. 5º que a violência doméstica ocorrerá no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa e por fim, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Ou seja, a violência doméstica e familiar não compreende apenas a violência de gênero sofrida pela mulher, mas diz respeito também a todo arcabouço que envolve a unidade familiar; qual seja as relações que envolvem pais e filhos, irmãos e irmãs, esposo e esposa, e assim por diante.
Sendo assim, em que pese majoritariamente a Lei Maria da Penha ser aplicada nos casos em que há violência contra a mulher, deve-se levar em consideração que ela é fonte basilar do direito no que concerne a garantia de proteção às vítimas de violência no âmbito doméstico. Desta maneira, os filhos que sofrem abusos de suas mães, que necessariamente não serão narcisistas, devem também ser amparados pela lei retromencionada. Esse também é o entendimento da quinta turma do STJ, conforme informativo nº 551[4], senão vejamos:
É possível a incidência da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) nas relações entre mãe e filha. Isso porque, de acordo com o art. 5º, III, da Lei 11.340/2006, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Da análise do dispositivo citado, infere-se que o objeto de tutela da Lei é a mulher em situação de vulnerabilidade, não só em relação ao cônjuge ou companheiro, mas também qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a vítima, independentemente do gênero do agressor. Nessa mesma linha, entende a jurisprudência do STJ que o sujeito ativo do crime pode ser tanto o homem como a mulher, desde que esteja presente o estado de vulnerabilidade caracterizado por uma relação de poder e submissão. Precedentes citados: HC 175.816-RS, Quinta Turma, DJe 28/6/2013; e HC 250.435-RJ, Quinta Turma, DJe 27/9/2013. HC 277.561-AL, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 6/11/2014.
A criança e o adolescente gozam da proteção dos direitos à liberdade, ao respeito e à dignidade, tanto quanto pessoas adultas. Assim, devem ser resguardadas por todo aparato jurídico vigente no país, a fim de que não haja violações a tais direitos. De acordo com o art. 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Dessa maneira, leciona também Guilherme Nucci (2020, p. 80):
Integridade física, psíquica e moral: a integridade física, psíquica e moral dos infantes e jovens deve ser compreendida no cenário da proibição de qualquer abuso por parte de pais e responsáveis, mas jamais como inibidor dos deveres inerentes ao poder familiar, cuja meta principal é educar os filhos. Os excessos de toda ordem constituem conduta criminosa; fora disso, trata-se do exercício regular de direito, advindo do poder familiar.
Assim, para assegurar que o direito a integridade física, psíquica e moral das crianças e jovens sejam protegidos, tem-se no art. 18-A do ECA, uma expressa repressão do uso de castigos físicos ou quaisquer outros tratamentos cruéis e degradantes, que visem ser utilizados como forma de correção, disciplina e até mesmo educação dos pais para com os filhos, senão vejamos:
Art. 18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:
I – castigo físico: A ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em:
a) sofrimento físico; ou
b) lesão;
II – tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que:
a) humilhe; ou
b) ameace gravemente; ou
c) ridicularize.
A fim de combater os possíveis castigos cruéis e degradantes cometidos pelos pais para com os filhos como forma de “disciplinar e educar”, o ECA em seu art. 18-B trouxe sanções cabíveis que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso, todavia, sabe-se que essas sanções previstas não são suficientes para coibir os maus-tratos em que as crianças e jovens são covardemente submetidos. Tendo em vista que dificilmente há denúncias nesse sentido, só vindo à tona quando o caso é visto com indignação pela população.
Art. 18-B. Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, educá-los ou protegê-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso:
I – encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
II – encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;
III – encaminhamento a cursos ou programas de orientação;
IV – obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado;
V – advertência.
Parágrafo único. As medidas previstas neste artigo serão aplicadas pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais.
Quando abordamos especificamente acerca da violência doméstica e familiar perpetrada pelas mães para com os filhos, por ser tema sensível e praticamente invísivel na sociedade, tem-se uma dificuldade em haver não apenas denúncias nesse sentido, mas há especialmente desvalorização dessa conduta. No senso popular, os castigos, maus-tratos e outras formas vexatórias e humilhantes utilizadas como meio coercitivo, são vistos como forma de educação, desta forma a violência é minimizada.
As vítimas dessas agressões vivem em um mundo solitário, sombrio e silencioso. Sem amparo, ao perceberem que são vítimas de abusos, desenvolvem baixa autoestima, não confiam nos pares e passam automaticamente a desvalorizarem seus próprios sentimentos e também a se questionarem sobre o seu valor, afinal como a própria mãe que automaticamente deveria amar o filho, comete tamanhas atrocidades contra o seu rebento? Complexo e paradoxo, esse tipo de relacionamento é cercado de danos irreversíveis.
Assim preceitua Pinto (2020, p. 33-34):
O filho à partida cresce com carência afetiva materna, principalmente a partir do momento em que comece a querer ter os seus próprios gostos, vontades e relações, algo que a progenitora vê como uma ameaça. Estes são vítimas de uma violência maioritariamente psicológica, onde o facto de a progenitora controlar e depositar as suas expectativas e vontades de forma exagerada e persistente, sem permitir erros, pode causar danos irreversíveis no desenvolvimento do filho. Ao crescer com uma progenitora que não proporciona segurança para que este expresse os seus sentimentos e opiniões, o sujeito poderá desenvolver uma baixa autoestima, desvalorizando os seus sentimentos em prol dos sentimentos e opiniões do outro; neste caso, o sentimento de agradar a progenitora independentemente dos abusos que receba. Por outro lado, tal pode ser usado estrategicamente pelo filho para evitar os confrontos com o progenitor, num instinto de reduzir o nível de conflito, gerindo assim a sua própria ansiedade (Dutton, Denny-Keys, & Sells, 2011; Rappoport, 2005). Uma vez que os filhos sofrem de uma violência invisível, é difícil receberem apoio dos demais, principalmente se estes estiverem, igualmente, relacionados com a progenitora, apoiando-a como mãe. Com isto, as verdadeiras vítimas são os próprios filhos, que acabam por desenvolver ansiedade e baixa autonomia, já que foram educados de forma a não procurarem a independência da sua progenitora. Como esta é uma relação de difícil ou impossível solução, ter que cortar relações com a sua mãe poderá mostrar-se como o único desenlace possível para que o filho possa encontrar a sua liberdade, independência e felicidade, apesar de poder não ser uma solução fácil de concretizar.
Por mais que haja explicitamente no Estatuto da Criança e dos Adolescentes a vedação de castigos, maus-tratos e tratamentos cruéis e degradantes por parte dos pais no que tange à educação dos filhos, e o dever dos mesmos de garantir aos filhos o direito ao respeito, dignidade e à liberdade, observa-se que esses são ceifados pelas próprias mães quando as mesmas praticam violência contra seus filhos, seja física ou psicológica.
Em que pese haver sanções e medidas coibitivas no ECA, é necessário haver maior incentivo estatal em políticas públicas a fim de que seja erradicada a prática de violência pelas mães contra os seus rebentos e de que se torne público esse problema que está presente em tantos lares brasileiros, mas que infelizmente é invisibilizado pela sociedade. Ademais, deve haver também um enrijecimento da lei no que tange à punições mais severas para aquelas mães que cometerem atos violentos contra os seus filhos.
3. COMBATE AO ABUSO DAS MÃES PERPETRADAS EM FACE DOS FILHOS
Não deve ser naturalizado pela sociedade os maus-tratos perpetrados pelas mães em face dos seus filhos, como forma de “educação”. Deve ser portanto, incisivo o combate a tais violências. A criança e o adolescente, bem como o ser humano no todo deve ter a sua dignidade sempre preservada.
Conforme Cabral e Reback (2021, p. 27):
O que ocorre é que por vezes a sociedade em geral não compreende sua responsabilidade em relação à proteção de todas as crianças e adolescentes, ou desconhece os meios para notificar, denunciar as situações de violência com as quais se depara. Mas o que desperta maior preocupação é que, em grande parte das vezes, crianças e adolescentes sofrem violência praticada pelos cuidadores primários, aqueles que se presumem seriam os defensores principais de seus direitos. me proteja 28 Nesse sentido é que ganha importância o desenvolvimento de campanhas de conscientização da sociedade que disseminam conhecimento sobre as violências e formas de identificação das violações de direitos, bem como os meios de denunciar e os serviços e fluxos de atendimento. Enfatiza-se que, considerando-se a dinâmica da violência já exposta, surge de forma ainda mais importante a necessidade de orientar crianças e adolescentes sobre seus direitos, as formas de violência e como se proteger e pedir ajuda caso sejam vítimas ou testemunhas de uma agressão. Faz-se necessário criar meios para que crianças e adolescentes comuniquem que estão sofrendo uma violência para que as medidas adequadas à sua proteção sejam tomadas.
O Estado como garantidor de direitos e deveres aos cidadãos, deve por meio de incentivo em políticas públicas, focar na implementação de políticas públicas educacionais que visem conscientizar a população de que maus-tratos e tratamentos cruéis e degradantes nunca serão o meio que deverá ser utilizado para educar, sabe-se que existem outras formas de fazê-lo, e que essas não violarão à dignidade dos educandos.
É válido salientar a importância da Unicef no que diz respeito ao combate a violência contra crianças e adolescentes, bem como ao desenvolvimento de trabalhos para que nenhuma criança ou adolescente seja vítima de violência. Buscando dar visibilidade a este tema, a Unicef[5] tem como alicerce a compreensão do que é violência e o seus contextos na seara familiar, bem como a consequência de tais atos para as crianças e adolescentes vítimas, veja-se:
Na família, a violência contra crianças e adolescentes está muitas vezes associada à violência doméstica ou intrafamiliar e acaba por perpetuar, no núcleo familiar, ciclos de violência que ultrapassam gerações e afetam todos os membros da família. […] A violência contra crianças e adolescentes, portanto, afeta toda a sociedade, seja direta ou indiretamente. E sendo crianças e adolescentes pessoas em peculiar condição de desenvolvimento, seus direitos devem ser garantidos com absoluta prioridade pela família, comunidade, sociedade e poder público. Isso significa que todos têm um papel fundamental na proteção de crianças e adolescentes contra as violências.
Assim, a UNICEF[6] trabalha com parceria com diversos setores, a fim de realizar disseminação de contéudo e produção de dialógos nacionais e internacionais, na promoção ao combate à violência contra crianças e adolescentes, vejamos:
A área de Proteção de Crianças e Adolescentes contra as Violências do UNICEF trabalha para (1) dar visibilidade ao tema da violência, por meio da produção e disseminação de conteúdo, da realização de diálogos nacionais e locais e a realização de advocacy e parcerias com diversos setores; (2) ofertar apoio técnico especializado em nível nacional e local; e (3) promover a melhoria dos serviços públicos de prevenção e resposta às violências por meio do fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos, por exemplo, em sua atuação nos municípios inscritos no Selo Unicef e nas capitais participantes das Agendas Cidades Unicef.
Sendo assim, é necessário que haja políticas públicas voltadas a seara tanto educacional, a fim de que haja rompimento cultural no que diz respeito a aplicação de castigos e tratamentos cruéis e degradantes por parte das mães como meio de educar os seus filhos, bem como para cessar o ciclo de violência em que os filhos são submetidos.
Políticas públicas que visem a educação das mulheres quanto à natalidade, ou seja, as mulheres que não são capazes de desempenhar de forma digna e correta o papel de mãe, não deveriam fazê-lo. Ser mãe é um dom que deve ser a cada dia aprimorado. As relações entre mães e filhos são eternas e deveriam ser baseadas no respeito, amor e sobretudo preservação do bem-estar dos envolvidos.
O Estado deve buscar o combate efetivo para o fim da violência praticado por mães em face dos seus filhos. Sabe-se que esse é um problema que assola os lares brasileiros, não só por questões culturais, mas também por motivos outros, como as mães que não tem amor pelos seus filhos e os veem como encargos ou por perpetuação do ciclo de violência a qual as mesmas também foram submetidas quando infantes. Ou seja, a naturalizando desses ciclos de violência devem ser ceifados, a fim de que haja a busca pelo bem-estar social das crianças e adolescentes, para que os mesmos possam gozam de uma vida livre de problemas emocionais, e possam se desenvolver dignamente por completo.
4. CONCLUSÃO
Este estudo buscou analisar a linha tênue que há entre as complexas relações entre mães e filhos, especialmente aquelas marcadas por violência, sejam elas perpetradas por mães que sofrem do distúrbio de personalidade narcisista, seja por mães que não tenham esse problema na personalidade.
Utilizou-se o Estatuto da Criança e do Adolescente como parâmetro legislativo, onde pode-se ver que há normas explícitas que coíbem abusos, maus-tratos, castigos, e tratamentos cruéis e degradantes como forma de educar os menores.
Demonstrou-se que a Lei Maria da Penha não é apenas utilizada para a proteção das mulheres vítimas de violências, mas para todos aqueles que estejam no âmbito da violência doméstica familiar, ou seja, abarca filhos que sofrem abusos por parte de suas mães.
Destarte, analisou-se que por mais que haja normas que visem coibir os maus-tratos por parte das mães em face dos filhos, esse aparato legal ainda não é suficiente na efetividade ao combate ao fim da violência contra crianças e adolescentes, necessitando, pois, de um enrijecimento legislativo a fim de que haja penas mais duras para as mães abusadoras de filhos.
Conclui-se, portanto, que, é fundamental que seja estimulada a conscientização da população para que se cesse a naturalização de comportamentos agressivos e abusivos das mães para com os seus rebentos. Sabendo-se que esse é um problema de tema sensível, escasso na doutrina e na academia, mas que é presente e atual em milhares de lares brasileiros, o Estado como garantidor de direitos deve implementar políticas públicas educacionais voltadas ao rompimento cultural das violências como forma de educação e incentivar o bem-estar social como um todo entre mães e filhos, a fim de que os rebentos possam se desenvolver em sua integridade e dignidade, gozando de todo o aparato estatal necessário para alcançar este fim.
5. REFERÊNCIAS
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CABRAL, Trícia Navarro Xavier; REBACK, Noeli Salete Tavares. Campanha “Me proteja”: Campanha de enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes. Fórum Nacional da Justiça da infância e juventude – CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/12/campanha-contra-violencia-infantojuvenil-foninj-2.pdf. Acesso em: 18 abr. 2024.
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VARELA, Dauzio. Transtorno de personalidade narcisista: o que é e formas de tratamento. UOL: Drauzio. Pub. 21 nov. 2022. Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/transtorno-de-personalidade-narcisista-o-que-e-e-formas-de-tratamento/. Acesso em: 09 abr. 2024.
ZIMMERMAN, Mark. Transtorno de Personalidade Narcisista. Pub. set. 2023. Disponível em: https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/transtornos-psiqui%C3%A1tricos/transtornos-de-personalidade/transtorno-de-personalidade-narcisista-tpn. Acesso em: 09 abr. 2024.
[1]Mestre em Direito Econômico pela UFPB – Universidade Federal da Paraíba; Especialista em Direito Constitucional, Administrativo e Tributário pela ESMAPE – Escola da Magistratura de Pernambuco, em parceria com a UNINASSAU – Universidade Maurício de Nassau; Especialista em Direito Empresarial pela Faculdade Legale; Professor do curso de Graduação em Direito no CESA – Centro de Ensino Superior de Arcoverde, mantido pela AESA – Autarquia de Ensino Superior de Arcoverde; E-mail: [email protected].
[2]Advogada e Consultora jurídica; Pós-graduada em Direito da Mulher pela Faculdade Legale; Pós graduada em Direito Civil e Direito Penal pela Universidade Leonardo da Vinci; Pós graduanda em Direito da Seguridade Social: Previdenciário e Prática Previdenciária; Graduada em Direito pela ASCES-UNITA; Professora do curso de Graduação em Direito no CESA – Centro de Ensino Superior de Arcoverde, mantido pela AESA – Autarquia de Ensino Superior de Arcoverde; E-mail: [email protected].
[3]Conforme pesquisa disponível no Jornal da USP. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/maes-narcisistas quebram-o-ideal-da-figura-materna/. Acesso em 09 de abril de 2024.
[4]Conforme informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/?aplicacao=informativo&acao=pesquisar&livre=@cnot=015066#:~:text=%C3%89%20poss%C3%ADvel%20a%20incid%C3%AAncia%20da,rela%C3%A7%C3%B5es%20entre%20m%C3%A3e%20e%20filha. Acesso em 18 de abril de 2024.
[5]Segundo pesquisa realizada e dados coletados pela Unicef. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/protecao-de-criancas-e-adolescentes-contra-violencias#:~:text=Voc%C3%AA%20pode%20fazer%20den%C3%BAncias%20an%C3%B4nimas,de%20Pol%C3%ADcia%2C%20ou%20Minist%C3%A9rio%20P%C3%BAblico. Acesso em 18 de abril de 2024.
[6] Segundo pesquisa realizada e dados coletados pela Unicef. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/protecao-de-criancas-e-adolescentes-contra-violencias#:~:text=Voc%C3%AA%20pode%20fazer%20den%C3%BAncias%20an%C3%B4nimas,de%20Pol%C3%ADcia%2C%20ou%20Minist%C3%A9rio%20P%C3%BAblico. Acesso em 18 de abril de 2024.
Mestre em Ciências Jurídicas pela Veni Creator Christian University - VENIUNI; É especialista em Execução de Ordens Judiciais pelo Centro Universitário Mário Pontes Jucá - UMJ; em Direito Processual Civil pela UNINASSAU, em parceria com a ESA-PE/OAB-PE; em Direito Público e em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera-Uniderp; em Direito Ambiental pela Faculdade Venda Nova do Imigrante - FAVENI; e em Perícia Judicial e Extrajudicial, Perícias de Avaliação Patrimonial de Bens e Direitos e Perícia Econômica e Financeira, pela FACUMINAS. Graduando em Licenciatura em História pela UFRPE. Bacharel em Direito pela Associação Caruaruense de Ensino Superior - ASCES. É Oficial de Justiça do TJPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Wellington Santos de. Violência doméstica e familiar: a linha tênue entre o amor e o ódio das mães que abusam dos filhos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 set 2024, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66468/violncia-domstica-e-familiar-a-linha-tnue-entre-o-amor-e-o-dio-das-mes-que-abusam-dos-filhos. Acesso em: 07 nov 2024.
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