LETÍCIA LOURENÇO SANGALETO TERRON[1]
(orientadora)
RESUMO: Com o passar do tempo, a sociedade conquistou um conjunto significativo de direitos e garantias fundamentais. Contudo, a atividade policial, munida de poder e autonomia, muitas vezes resultou na obtenção de provas ilícitas, culminando na violação da residência de supostos réus. Esses indivíduos foram detidos, e seus direitos foram comprometidos. Este trabalho se propõe a examinar a evolução das leis relacionadas ao Abuso de Autoridade, destacando as legislações anteriores à atual, que trouxe mudanças importantes ao estabelecer um rol taxativo de responsabilização para os agentes públicos. Para tanto, foram analisadas diversas decisões judiciais, com o intuito de esclarecer as medidas aplicáveis aos agentes de segurança e a evolução das práticas desses órgãos até a promulgação da Nova Lei do Abuso de Autoridade. A metodologia adotada inclui pesquisa bibliográfica e análise de jurisprudência, com foco nas decisões dos Superiores Tribunais de Justiça. O objetivo é proporcionar uma compreensão mais clara sobre a responsabilização dos agentes públicos sob a nova legislação, contribuindo para o debate sobre a proteção dos direitos fundamentais e a eficácia do sistema de justiça.
PALAVRAS-CHAVE: Abuso de autoridade. Direito Penal. Responsabilização. Segurança Pública.
ABSTRACT: Over time, society gained a significant set of fundamental rights and guarantees. However, police activity, armed with power and autonomy, often resulted in the obtaining of illicit evidence, culminating in the violation of the residence of alleged defendants. These individuals were detained, and their rights were compromised. This work aims to examine the evolution of laws related to Abuse of Authority, highlighting legislation prior to the current one, which brought important changes by establishing a strict list of accountability for public agents. To this end, several judicial decisions were analyzed, with the aim of clarifying the measures applicable to security agents and the evolution of the practices of these bodies until the promulgation of the New Abuse of Authority Law. The methodology adopted includes bibliographical research and case law analysis, focusing on the decisions of the Superior Courts of Justice. The objective is to provide a clearer understanding of the accountability of public agents under the new legislation, contributing to the debate on the protection of fundamental rights and the effectiveness of the justice system.
KEYWORDS: Abuse of authority. Criminal Law. Accountability. Public Security.
1 INTRODUÇÃO
O texto constitucional brasileiro desempenha um papel crucial na proteção dos direitos e na imposição dos deveres dos cidadãos, além de ser fundamental para o desenvolvimento e a organização do Estado. A Constituição abrange várias áreas sociais, como educação, saúde, segurança e infraestrutura. Nesse cenário, o artigo 5º se destaca por sua importância, pois estabelece um conjunto abrangente de direitos e deveres, tanto individuais quanto coletivos, que buscam impedir a restrição de direitos e, sobretudo, limitar o poder do Estado.
Entre os direitos fundamentais consagrados, a inviolabilidade do domicílio é um dos mais relevantes, resultado de uma construção histórica que valoriza a liberdade de possuir propriedade privada. A Constituição Federal de 1988 consagra a residência como um espaço inviolável, determinando que ninguém pode entrar sem a autorização do proprietário ou possuidor, exceto nas situações previstas na própria norma. Assim, a Constituição e as leis infraconstitucionais consideram inaceitável qualquer prova obtida de maneira ilícita, especialmente em casos de violação de direitos fundamentais, como a invasão de domicílio.
Nesse contexto, a função dos órgãos públicos é garantir a ordem pública e a segurança das pessoas e de seus bens. Os agentes de segurança pública, como representantes legítimos do Estado, têm a autorização para usar a força necessária para restabelecer a paz e a tranquilidade.
No entanto, recentemente, a sociedade tem presenciado diversos episódios em que agentes de segurança pública invadem residências e coletam provas sem a devida autorização judicial ou justa causa. Isso levanta a questão sobre a legalidade da entrada de policiais nas casas de suspeitos, seja por observações diretas de atividades ilícitas ou por denúncias anônimas. Quando esses agentes encontram provas ilícitas, surge a dúvida sobre se os suspeitos devem permanecer detidos, considerando que a entrada é uma violação ilegal do domicílio. Nesse cenário, há uma série de decisões divergentes dos Superiores Tribunais, refletindo diferentes interpretações sobre o assunto.
Diante disso, este trabalho tem como objetivo analisar a nova Lei de Abuso de Autoridade e suas consequências nas ações dos agentes de segurança pública que invadem domicílios para colher provas ou efetuar prisões sem um mandado judicial. A pesquisa buscará identificar e discutir as normas que regulam a inviolabilidade do domicílio, a proteção dos direitos fundamentais e a responsabilização dos agentes públicos. Além disso, pretende-se examinar as decisões dos Superiores Tribunais sobre a legalidade da entrada em residências sem autorização e a admissibilidade das provas obtidas nessas circunstâncias, buscando esclarecer a aplicação da lei e as divergências existentes na jurisprudência.
A metodologia deste trabalho é predominantemente qualitativa, envolvendo pesquisa bibliográfica e análise de jurisprudência. Essa abordagem permitirá uma compreensão mais profunda das implicações legais e das práticas dos agentes de segurança pública, além de promover uma reflexão crítica sobre a efetividade das garantias constitucionais e a proteção dos direitos individuais em face da atuação do Estado.
2 ASPECTO SOBRE ATIVIDADE POLICIAL
No Brasil, as polícias são órgãos do Estado que têm a finalidade constitucional de preservar a ordem pública, de proteger pessoas e o patrimônio, e realizar a investigação e a repressão dos crimes, além do controle da violência. A atividade policial significa preservação da ordem pública, cumprimento das Leis, do ordenamento jurídico e limitação de direitos, quando necessário para a preservação da ordem jurídica. A “polícia” se exerce por intermédio dos órgãos públicos. Os órgãos policiais são formas de exercício da “polícia”.
Termo similar, mas diverso, diz respeito ao poder de polícia, previsto no artigo 78, do Código Tributário Nacional:
Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos ( Brasil, 1966, n.p.).
A polícia tem um papel essencial na manutenção da ordem e na garantia de segurança pública. Sem uma atuação eficiente e respeitosa, a sociedade corre o risco de conviver com níveis ainda maiores de violência, corrupção e criminalidade. No entanto, é igualmente importante que a polícia atue de forma a respeitar os direitos e garantias fundamentais, para que seu trabalho não comprometa os valores democráticos e constitucionais que deve proteger
Assim, atividade policial é uma parcela especifica do poder de polícia, contudo está ligada a órbita penal e aos arranjos da segurança pública, envolvendo, inclusive, a investigação criminal. Como exemplo, o poder de polícia pode ser visualizado quando a defesa civil interdita uma obra ou residência. Por outro lado, quando o agente policial exerce sua atividade nos moldes legais seria uma manifestação do poder de polícia estatal (Costa, 2018).
Para Luiz Otavio de Oliveira Amaral (2003), outrora, a ordem pública se restringe á segurança pública e o poder de polícia equivale a segurança coletiva. Porém, para este, o Estado assumiu novas atribuições e o conceito de ordem pública envolve, agora, a ordem econômica e social, ampliando-se este tema relevante que é o poder de polícia.
Luiz Otávio de Oliveira Amaral (2003, p. 23) conceitua segurança pública como:
[...]o afastamento, por meio de organizações próprias, de todo o perigo, ou de todo o mal, que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade, ou dos direitos de propriedade do cidadão. A segurança pública, assim, limita as liberdades individuais, estabelecendo que a liberdade de cada cidadão, mesmo em fazer aquilo que a Lei não lhe veda, não pode ir além da liberdade assegurada aos demais, ofendendo-a (Amaral, 2003, p.23).
É, pois, uma atividade pertinente aos órgãos estatais e à comunidade todo, realizada com o fito de proteger a cidadania, prevenindo e controlando manifestações de criminalidade e de violência, efetivas ou potenciais, garantindo o exercício pleno da cidadania nos limites da Lei.
A Constituição Federal de 1988, no Título V, que estabelece “Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas”, designou o Capítulo III, como o “Da segurança Pública”, tratando no seu art. 144, os órgãos que promovem a segurança pública no estado brasileiro: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares; e, polícia penal federal, estadual e distrital.
Com o fim de regular as atividades dos órgãos de segurança pública, surgiram várias disposições legais. De início, o Decreto-Lei 4.898 de 1965, voltou-se a tal finalidade, mas, a nova Lei de Abuso de Autoridade 13.869 de 2019, surgiu com ânimo de complementar as disposições da Lei anterior, que já estava ultrapassada, como será exposto (BRASIL, 1988).
3 EVOLUÇÃO DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE, ASPECTO DA ANTIGA LEI 4.898/65
A antiga Lei de Abuso de Autoridade, Decreto-Lei 4.898, foi desenvolvida pelo poder legislativo pretendendo curatelar os direitos fundamentais e impossibilitar ações abusivas decorrentes dos agentes públicos. Com esse objetivo, em nove de dezembro de 1965 foi sancionada a primeira Lei em âmbito nacional voltada a reprimir crimes atinentes ao Abuso de Autoridade. No mesmo sentido prevê Gonçalves e Baltazar Junior:
A Lei de Abuso de Autoridade foi concebida para incriminar os abusos genéricos ou inominados de autoridade, isto é, para abranger os fatos não previstos como crime no CP ou em leis especiais, tendo em conta que vários dos crimes funcionais, como o peculato, a corrupção, a concussão, os crimes de prefeitos ou aqueles previstos na Lei de Licitações podem consubstanciar- se em abuso — mau uso ou uso excessivo — da autoridade do funcionário público. (2017, p. 471 apud Nascimento, 2020, p.6-7).
Nesse caminho, foram desenvolvidas através de uma evolução histórica relevante as várias previsões legais voltadas a inibir abusos praticados por autoridades que tenham poder de mando, como: juízes, delegados, policiais, membros do Ministério Público e qualquer autoridade que exerce cargo, emprego ou função pública, mesmo que por tempo transitório ou sem remuneração. O ato abusivo deveria ser praticado no exercício da função (BRASIL, 1965).
Posteriormente, em 1979, foram incluídas alterações na Lei 4.898, por meio da Lei 6.657. Passou a constituir crime qualquer atentado os direitos individuais, que, na época, ainda não eram previstos pelo respectivo Texto constitucional, quais sejam:
a) à liberdade de locomoção; b) à inviolabilidade do domicílio; c) ao sigilo da correspondência; d) à liberdade de consciência e de crença; e) ao livre exercício do culto religioso; f) à liberdade de associação; g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; h) ao direito de reunião;
i) à incolumidade física do indivíduo;j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional (Brasil, 1979, n.p.).
Observa - se que as alterações visaram materializar os abusos praticados no período do regime militar, buscando proteger os direitos fundamentais. Com a Constituição de 1988 estas previsões foram esvaziadas, pois o artigo 5° positivou todos os direitos essenciais aos indivíduos, impossibilitando e incriminando qualquer ofensa.
Dessa forma, a Lei nº 4.898/65, que originalmente regulava o abuso de autoridade no Brasil, desempenhou um papel importante no estabelecimento de normas para coibir abusos por parte de agentes públicos. Contudo, sua aplicação prática foi limitada devido à falta de clareza nas definições e à ausência de sanções efetivas. Em muitos casos, a legislação era insuficiente para responsabilizar autoridades que violavam os direitos fundamentais dos cidadãos, o que contribuiu para um ambiente de impunidade, especialmente durante períodos de regimes autoritários, como o regime militar. A lei de 1965 não acompanhou as transformações sociais e jurídicas do país, deixando lacunas na proteção dos cidadãos contra abusos de poder.
Insta observar que no decorrer dos anos, houve ainda outras alterações significativas, dessa vez promovidas pela Lei 7.960, em 1989, que incluiu o artigo 4° prevendo mutações no caráter processual e material da norma. Promulgada em 21 de dezembro de 1989, trouxe mudanças importantes ao sistema de justiça penal no Brasil, introduzindo a prisão temporária como medida cautelar. Seu objetivo principal foi fornecer uma ferramenta para as autoridades policiais e o Ministério Público durante a fase de investigação, especialmente em casos de crimes graves, onde era necessária a detenção provisória de suspeitos para garantir o andamento das investigações.
No entanto, com o passar do tempo, ficou evidente a necessidade de uma legislação mais clara e moderna para enfrentar o abuso de autoridade, levando à criação da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019), o Brasil deu um passo significativo na modernização do combate ao abuso de autoridade. A nova legislação especificou com mais precisão as condutas abusivas e fortaleceu a responsabilização penal, civil e administrativa de agentes públicos, corrigindo muitas das falhas da lei anterior.
Dessa forma, a evolução da legislação reflete o compromisso em assegurar uma atuação estatal mais transparente e respeitosa dos direitos fundamentais, fortalecendo o Estado de Direito.
3.1 Abuso de autoridade, mudanças com a nova Lei 13.869/2019
Em 2017, foi proposto o projeto de Lei 85/2017 voltado a criminalizar com maior abrangência as ações das autoridades dos três poderes. O projeto foi embaçado pelo senador Randolfe Robrigues e outros parlamentares do central. Os excessos praticados por membros do poder judiciário e agentes da Segurança Pública, a falta de previsão legal para algumas práticas abusivas e a divergência interpretativa da Lei 6.898 de 1964 cumulam entre os motivos do desenvolvimento do seguinte projeto (Simonetti, 2021).
Como resultado do projeto, a nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019) foi aprovada, sancionada e promulgada em 2019, revogando implicitamente a antiga Lei nº 4.898 de 1965. A nova legislação trouxe uma atualização significativa no ordenamento jurídico, substituindo a antiga norma que já não atendia mais às necessidades contemporâneas de proteção aos direitos fundamentais.
Cumpre observar que a nova Lei representa significativa evolução no combate aos crimes de Abuso de Autoridade. A própria Organização das Nações Unidas (ONU), pela Resolução n° 40/34, de 29 de novembro de 1985, expôs a seguinte previsão:
Consciente de que milhões de pessoas em todo o mundo sofreram prejuízos em consequência de crimes e de outros atos representando um abuso de poder e que os direitos destas vítimas não foram devidamente reconhecidos, Consciente de que as vítimas da criminalidade e as vítimas de abuso de poder e, frequentemente, também as respectivas famílias, testemunhas e outras pessoas que acorrem em seu auxílio sofrem injustamente perdas, danos ou prejuízos e que podem, além disso, ser submetidas a provações suplementares quando colaboram na perseguição dos delinquentes (ONU, 1985).
A atual Lei tipifica o crime de abuso de autoridade quando praticado por agente público, servidor ou não, que, desenvolvendo sua função ou a pretexto de desenvolver, abusa do poder atinente a sua posição. Os atos autoritários praticados pelas autoridades devem se revestir do ânimo de prejudicar terceiro, ou benefício próprio ou alheio, ou mero capricho ou satisfação pessoal. Saliento que, para configurar o crime, deve haver um desses elementos subjetivos, não bastando somente à vontade quanto à conduta (Brasil, 2019).
Os órgãos da segurança pública foram os mais impactados pela atual Lei. A grande maioria dos tipos penais foi direcionada para a classe policial, gerando controvérsias, principalmente entre agentes da segurança pública e o Ministério Público. Algumas críticas apontam que a nova legislação poderia inibir a atuação legítima de autoridades por receio de serem processadas, criando um ambiente de insegurança jurídica. Por outro lado, defensores da lei acreditam que ela é essencial para conter abusos e proteger os direitos fundamentais, especialmente em um contexto onde o abuso de poder é uma preocupação recorrente
Segundo a Lei, tornou-se crime a obtenção de provas por meios ilícitos; entrada em imóvel alheio sem determinação judicial; decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado sem intimação prévia; expor o preso sem o seu consentimento ou para expô-lo a vexame; e colocar algemas no detido quando não existir indícios de resistência (Simonetti, 2021).
Assim, a Lei nº 13.869/2019 trouxe avanços importantes ao detalhar as condutas que configuram abuso de autoridade, aumentando a responsabilização e a proteção dos cidadãos contra o excesso de poder, promovendo um equilíbrio mais justo entre a atuação estatal e os direitos fundamentais da população.
No entanto, nota-se que, apesar da nova lei trazer uma segurança jurídica maior, atualmente, as decisões dos Tribunais Superiores estão conflitando quanto à interpretação do crime de invasão a propriedade privada sem mandado judicial ou situação de flagrante. Neste sentido, existe divergência sobre o conceito de fundada suspeita. E, assim, surge a dúvida sobre a validade das respectivas provas colhidas e a responsabilização dos agentes policiais.
4 A LEI NA PRÁTICA: COMO TEM JULGADOS OS TRIBUNAIS
Na prática, os tribunais têm analisado os casos sob o princípio de que, para configurar o abuso de autoridade, é necessário comprovar que o agente público agiu com a intenção específica de prejudicar ou obter vantagem indevida. Esse requisito tem dificultado a condenação em alguns casos, já que a intenção subjetiva precisa ser demonstrada, o que nem sempre é simples. Muitos julgamentos envolvem uma análise detalhada das circunstâncias e motivações do agente, bem como a interpretação de cada tribunal sobre a aplicação da lei.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou procedente o Habeas Corpus de número 598.051, DF, cuja matéria versava acerca do ingresso policial em residência privada, que ensejou na prisão do suspeito. A decisão deixou claro que a entrada sem mandado judicial é ilegal, salvo na situação de suspeita de crime em flagrante, devendo, ainda, existir justa causa indicando atividade ilícita no interior da residência. como descrito na decisão, mesmo em crimes de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio. Será permitido entrada quando o mandado estiver em atraso e isso possa comprometer a colheita de provas do crime (HC 598.051/ DF, Relator Min. Rogério Schietti Cruz, 6° Turma. Julgado Em 02/03/2021, DJE 06/03/2021).
Distintamente, descreve o respectivo HC, é a situação da entrada com consentimento do morador, devendo ser voluntária e livre de coação ou constrangimento. O Estado tem o ônus de provar a legalidade da ação, por meio de assinatura de quem autorizou, testemunhas (quando possível) e deve ser registrada em áudio-vídeo pelos próprios agentes. A violação dos preceitos gera na ilicitude das provas alcançadas.
No mesmo sentido o STJ, no Habeas Corpus n° 526.915, reconheceu a ilicitude das provas obtidas mediante entrada em residência sem mandado e sem fundada suspeita, mas em decorrência de denúncia anônima (Migalhas, 2022). O Tribunal discorreu que existiu cabal infração ao princípio da inviolabilidade do domicílio e aduziu a ilicitude de todas as provas. O ministro Rogerio Schietti Cruz, relator, discorre que: “Poderia haver ingresso se houvesse fundada suspeita, mas tal não ocorreria porque o que se tinha então era uma denúncia (HC 526.915/ SP, Relator Min. Rogério Schietti Cruz, 6° Turma, Julgado Em 15/02/2022, DJE 30/02/2022).
Outra decisão curiosa foi prolatada pela 12° Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. Nesta Situação, o Tribunal anulou as provas obtidas em busca e apreensão realizada pela polícia, pois a sogra chancelou a entrada dos policiais sem o conhecimento do titular da residência (Sepulveda, 2022). Na residência foi encontrado um laboratório voltado ao preparo de drogas. O sujeito foi denunciado pelo Ministério Público e condenado. No entanto, os próprios agentes policiais relataram a inexistência de mandado de busca na casa. O relator, desembargador Vico Manãs declarou a nulidade de todas as provas. Segundo o magistrado:
Lá entraram sem autorização de quem legalmente poderia concedê-la, já que ninguém estava no domicílio na oportunidade. O acusado só foi pego posteriormente. À evidência, a mãe da companheira do apelante não poderia permitir o ingresso dos policiais, pois a residência não era dela” (Apelação Criminal 1501837-08.2019.8.26.0533/ SP, Relator Desem. Vico Mañas, 12° Camara, Julgado Em 08/03/2022, DJE 13/03/2022).
Por fim, cumpre observar a cristalina decisão do STJ relativo ao HC 668.957, do ministro Rogerio Schietti Cruz, que trancou a ação penal devido à invasão ilegal de domicílio. A decisão ressalta a invalidade de qualquer tipo de prova decorrente de ação policial sem mandado de busca e apreensão. No caso, o ministro relator lembrou-se da tese de repercussão geral n° 603.616, do Supremo Tribunal Federal (STF), que dispõe acerca da impossibilidade de invadir residência sem mandado judicial, salvo quando amparado em fundadas razoes, justificadas pela circunstância (Sepulveda,2022). Para o ministro, as investigações e punições de crimes mais graves devem ser vinculadas aos limites das Leis e da Constituição:
A coletividade, sobretudo a integrada por segmentos das camadas sociais mais precárias economicamente, também precisa, a seu turno, sentir-se segura e ver preservados seus mínimos direitos, em especial o de não ter a residência invadida, a qualquer hora do dia ou da noite, por agentes estatais, sob a única justificativa, extraída de apreciações pessoais destes últimos, de que o local supostamente é ponto de tráfico de drogas ou de que o suspeito do tráfico ali possui droga armazenada (HC 668.957/ SP. MIN. Rogério Schietti Cruz, Julgado em 14/08/2019, DJE 20/09/2019).
Pelo vasto número de jurisprudências citadas – todas atuais – fica evidente que as ações intentadas pelos polícias são inválidas. Qualquer prova produzida na situação de invasão ao domicílio sem justa causa é nula. Inclusive, alguns ministros citaram a necessidade de elementos que comprovem a entrada legal, como, testemunhas, registros audiovisuais ou confissão.
Com isso, a diversidade de interpretações entre instâncias e a variação nas decisões indicam a necessidade de um aprimoramento contínuo na aplicação da lei, visando uma jurisprudência mais uniforme e que efetivamente coíba os abusos, promovendo assim um Estado de Direito mais justo.
5 CONCLUSÃO
Concluindo a análise, se o domicílio do suspeito é protegido pela Constituição, agentes de segurança pública não podem violá-lo com base apenas em suspeitas ou denúncias anônimas. As decisões dos Tribunais Superiores estão em conformidade com a Constituição, reforçando esse princípio. No entanto, ao examinar a jurisprudência, percebe-se que nenhum julgamento menciona que os policiais responsáveis por essas violações foram acusados de crimes previstos na Lei nº 13.869/19 (Lei de Abuso de Autoridade), tampouco cita que os réus têm o direito de processar tais agentes, tanto na esfera civil quanto na penal.
Em uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o magistrado, ao fundamentar seu posicionamento, citou precedentes do STF (RE 603.616) e do STJ (RHC 154.093). Ele ressaltou que os policiais entraram no domicílio sem autorização de quem legalmente poderia concedê-la, já que não havia ninguém no local. O relator destacou ainda que não existia justificativa prévia para a ação, e que o caso não se enquadrava em nenhuma das exceções que permitiriam a entrada sem mandado judicial.
Essas questões vão além da letra da Constituição, envolvendo diferentes interpretações dos magistrados, gerando divergências. No entanto, quando se trata de direitos fundamentais, como a liberdade, o direito de ir e vir, e a proteção contra o abuso de autoridade, os entendimentos deveriam ser uniformes. Afinal, a lei deve ser aplicada igualmente a todos. Infelizmente, réus sem recursos para contratar uma boa defesa muitas vezes acabam presos ilegalmente por anos. Alguns cumprem a pena sem jamais terem tido a chance de lutar por seus direitos, o que reflete uma falha que precisa ser corrigida. Os agentes de segurança devem atuar conforme a Constituição e as leis brasileiras, evitando cometer abusos de autoridade e realizar prisões ilegais.
Apesar do claro reconhecimento da violação dos direitos dos réus, nenhuma decisão fixou responsabilidade penal, civil ou administrativa para os agentes envolvidos. É inegável que eles não responderam por qualquer crime previsto na Lei de Abuso de Autoridade. Diante disso, os Tribunais de Justiça e os fóruns criminais deveriam seguir os precedentes dos Tribunais Superiores, absolvendo os réus presos com base em provas obtidas ilegalmente e responsabilizando os agentes pelos crimes cometidos conforme a nova Lei.
Por fim, é de suma importância ressaltar que a Lei nº 13.869/2019 é de certa forma, um marco na modernização do combate ao abuso de autoridade no Brasil. A nova legislação detalha as condutas abusivas e reforça a responsabilização dos agentes públicos, garantindo maior proteção aos direitos dos cidadãos. Ao mesmo tempo, busca-se destacar que a lei deve ser aplicada de forma justa, sem inibir a atuação legítima das autoridades, e sim assegurar que os excessos sejam contidos, promovendo o equilíbrio entre o poder do Estado e as liberdades individuais. Além disso, a aplicação consistente da lei por todos os tribunais é essencial para evitar prisões ilegais e assegurar que qualquer violação dos direitos constitucionais seja devidamente responsabilizada.
REFERÊNCIAS
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[1] Professora Orientadora. Doutora em Direito. Professora universitária. E-mail: [email protected].
Graduando em Direito pelo Centro Universitário de Jales – UNIJALES
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIOS, Leonardo da Silva. Alguns aspectos sobre abuso de autoridade cometido pelos agentes de segurança pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 out 2024, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66766/alguns-aspectos-sobre-abuso-de-autoridade-cometido-pelos-agentes-de-segurana-pblica. Acesso em: 26 dez 2024.
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