O presente ensaio busca examinar o efeito do observador tanto no indivíduo quanto na sociedade em que está inserido, incluindo as normas que a regem. O termo “corpus” remete à suma da lei e da jurisprudência. São exemplos o Corpus Juris Civilis e o Corpus Juris Canonici, este último aplicável aos tribunais de apelação da Cúria, e substituído modernamente pelo Código de Direito Canônico de 1983.
Para investigarmos se a observação do corpo humano e das leis que regem as relações corpóreas exercem influência na observação, algumas indagações são pertinentes.
O estudo do corpo humano e de seus processos conscientes pode ser apartado dos demais fenômenos naturais? Somos observadores conscientes ou não temos consciência de sermos observados? O observador pode observar a si mesmo sem influenciar-se mutuamente? A observação das leis que regem as relações sociais sofre influência do efeito do observador? Até que ponto esse efeito pode gerar incoerências no sistema legal?
Essas questões permeiam a moderna epistemologia das ciências sociais, incluindo o Direito. Há alguns séculos, a epistemologia viveu um embate entre racionalistas e empiristas. Os primeiros entendiam que o conhecimento só poderia ser alcançado por meio da dedução, como Descartes. Os segundos sustentavam que a única forma de adquirir conhecimento era pela indução, por meio da experiência, como Locke.
Esse embate perdeu fôlego com a teoria kantiana, que conciliou as duas vertentes, aplicando os dois métodos, a depender da situação concreta. Para Kant, os juízos a priori são aplicados à aquisição de conhecimentos baseados na razão, sem supedâneo na experiência. Já os juízos a posteriori são aplicados aos conhecimentos empíricos, com base na experiência. Logo, os dois juízos não são excludentes, mas complementares
Podemos exemplificar com o conhecimento sobre o infinito, que tem por base a razão, já que é inalcançável pela experiência, uma vez que a própria noção de infinito nos é indiferente. Por outro lado, no paradoxo de Zenão, a razão infere a impossibilidade do movimento por conta dos infinitos no caminho, mas a experiência nos mostra o contrário.
No âmbito jurídico, essa distinção kantiana é aplicada aos juízos de valor, com as leis e institutos jurídicos sendo analisados tanto com base na razão quanto na experiência.
Podemos exemplificar com a audiência de custódia, cuja experiência prática mostrou falhas de concepção e resultado. O parlamento atualmente discute aperfeiçoamentos no instituto por meio do PL 714/2023, que altera o art. 310 do CPP.
Cabe então analisar se o exame racional e empírico da aplicação das leis, dos institutos e teorias jurídicas é influenciada pelo efeito do observador.
Tradicionalmente, esse efeito é objeto de estudo das ciências naturais, como a física, sendo estendido modernamente para a psicologia social e sociologia, aplicando-se também à epistemologia jurídica.
De início, entende-se por efeito Hawthorne quando indivíduos ou grupo de pessoas modificam seu comportamento ao saberem que estão sendo observados. A psicologia social também analisa o efeito do ator-observador.
Diversos estudos têm examinado esse efeito nas ciências sociais, como o artigo de Ashley S. Deeks, publicado em 2013: “O efeito do observador: litígios de segurança nacional, mudanças na política executiva e deferência judicial” (traduzido do inglês).
O efeito do observador possui um efeito duplo. Ou seja, observar muda o que ocorre, ao passo que também muda as percepções do próprio observador sobre o que ocorre.
Nas ciências naturais, esse efeito pode ser percebido em exemplos simples. De fato, verificar a pressão de um pneu faz com que uma parte do ar escape, modificando a pressão observada. Da mesma forma, observar objetos não luminosos requer que a luz o atinja, refletindo-a, o que altera a observação.
Elspeth Huxley sintetizou essa ideia na célebre frase: “Quanto se imagina, quanto se observa? Não se pode separar essas funções mais do que se pode dividir a luz do ar, ou a umidade da água.”
De uma maneira geral, as interações na natureza são fundamentalmente recíprocas. Newton expressou essa ideia na terceira lei do movimento: para cada ação há uma reação igual e oposta. Mesmo na mecânica quântica, que abandona a noção de força, a conservação de energia e momento continua. Como regra, quando se observa um sistema, o sistema atua sobre o aparelho de medição e o aparelho de medição altera o sistema.
Esse efeito se tornou famoso com o advento dos estudos da mecânica quântica, que trouxe muito progresso para a ciência. A pesquisa quântica cobre 60 ordens de grandeza, indo desde as supercordas, da ordem de 10 elevado a -35, até as flutuações quânticas em aglomerados de galáxias, da ordem de 10 elevado a 26
Na mesoescala humana, a teoria quântica é perceptível na computação quântica, em especial com os ganhos de eficiência em buscas feitas em grandes banco de dados. Exemplificando, em um banco com N dados, a computação clássica leva N/2 tentativas para proceder a uma busca. Já na computação quântica, a média é a raiz quadrada de N. Assim, num banco com um milhão de dados, a busca aleatória feita pelo método clássico resulta numa média de 500 mil tentativas, ao passo que pelo método computacional quântico se resumiria a apenas mil buscas, com uma velocidade bem maior de processamento, economizando tempo e energia. Numa época de dependência do Big Data, esse novo padrão de eficiência tem o potencial de revolucionar a pesquisa científica.
No início da teoria quântica, o efeito do observador foi formulado no âmbito da interpretação de Copenhague. Dentre seus partidários, Niels Bohr deixou-se influenciar por filosofias místicas em que estava engajado na época. Paralelamente, Heisenberg formulou o problema da medição, afirmando que nada era real a menos que fosse observado. De fato, a teoria estipula como resposta uma distribuição de probabilidades, e após a medição por um detector, as demais probabilidades se desvanecem.
Antes disso, Bishop Berkeley conjecturou que as coisas só existiriam quando alguma mente as observasse. Caso ninguém as observasse, Deus faria o papel de observador reserva, evitando que o mundo se dissipasse. Mas os cientistas não têm a mesma sorte.
Enquanto caminhava com seu biógrafo, Einstein indagou se a Lua ainda existiria caso ninguém a observasse. A pergunta sarcástica visava colocar em dúvida a afirmação da nova física de que a realidade é determinada pela interação entre o observador e o observado. Modernamente, o físico Carlo Rovelli chegou a afirmar que toda a realidade é interação, e que nada existiria de forma independente.
Nas pesquisas atuais, o efeito do observador é investigado no apagador quântico de escolha atrasada. Por meio dele, medições feitas no presente podem alterar escolhas feitas no passado. Assim, uma decisão de última hora tomada na Terra sobre como observar um fóton pode alterar uma situação estabelecida milhões de anos antes, criando um paradoxo de causalidade, que envolve superposição e emaranhamento.
O apagador quântico foi examinado no experimento de Kim realizado em 1999, utilizando um laser de argônio, um cristal óptico e alguns prismas. Nele, os fótons emaranhados são desviados por caminhos divergentes, a depender se vieram da fenda A ou fenda B. Esse efeito foi complementado por experimentos recentes, como o de Rezai e Gerhardt, realizado em 2018 (“Propriedades de Coerência de Fótons Moleculares Únicos para Redes Quânticas”, na tradução do inglês).
Afora o efeito do apagador quântico de escolha atrasada, a constatação de que observadores podem ser observados levou a outros paradoxos, como o do “amigo de Wigner”. Wigner o introduziu em 1961 por meio de um experimento mental. Mas esse paradoxo não diz quanta consciência seria necessária, nem confirma uma posição privilegiada como observador final, e tampouco informa o momento em que o resultado ingressa na consciência de Wigner.
O assunto foi retomado em 1996 por Carlo Rovelli, ao desenvolver a mecânica quântica relacional, que busca contornar esse paradoxo por meio de uma solução direta.
Mas os paradoxos não param por aí, incluindo ainda o “observador último” ou a “observação final”, envoltos no debate mais amplo sobre o “princípio antrópico final” e o “ponto ômega”. Este último foi elaborado por Teilhard de Chardin, filósofo, paleontólogo e geólogo, durante a primeira metade do século XX, inserindo-se na temática do transumanismo e da biônica.
Resumindo o estranhamento causado pelos paradoxos sobre o efeito do observador, John Bell ponderou: "A função de onda estava esperando para saltar por milhares de milhões de anos até que uma criatura viva unicelular aparecesse? Ou ela teve que esperar um pouco mais por algum medidor altamente qualificado — com um PhD?”.
O mantra quântico de que as observações perturbam o sistema também se aplica aos próprios observadores, numa via de mão dupla, estendendo-se igualmente às teorias das ciências sociais, o que inclui inevitavelmente o Direito e suas teorias de justificação.
Retomando a evolução epistemológica, em oposição ao fundacionismo, o coerentismo pragmático-sociológico de Otto Neurath sustenta um holismo fisicalista na teoria da justificação. Na alegoria do Barco de Neurath, ele afirma: “Somos como marinheiros obrigados a reparar o seu barco em alto mar, sem qualquer possibilidade de desmontar todas as peças e de o reconstruir em doca seca”. A comparação contrasta com o pensamento de Descartes, para quem era necessário destruir um edifício e reconstruí-lo do zero. Para Neurath, a reconstrução do navio em alto mar deve ser feita aos poucos, tornando-se a base da filosofia da ciência atual.
Historicamente, desde o início do século XVIII, passou-se a designar por teoria o estudo das condições discursivas que organizam qualquer conhecimento cultural. Mais recentemente, em especial a partir de meados da década de 1960, o conceito de teoria como metadiscurso passou por seguidas recapitulações e viradas, transmudando-se em um modo de observação com suas próprias convenções e desenvolvimentos históricos.
De uma maneira geral, a maior parte das teorias decorrem de suspeitas que avultam de mentes aguçadas, iniciando-se em seguida uma busca por fundamentação empírica. Muitas teorias sólidas e atraentes possuem os atributos da estética, chegando alguns a verem nelas uma manifestação artística. Como regra, as teorias se manifestam em linguagem natural ou se expressam na linguagem formal da lógica matemática, formando um conjunto de sentenças.
David Deutsch lançou em 2011 a obra “O Início do Infinito: Explicações que Transformam o Mundo” (traduzido do inglês). Dentre outros temas, o livro aborda a memética, que aplica as teorias da evolução e da genética populacional às manifestações culturais e estéticas. Apesar de ser físico, o autor demonstra na obra como as formulações científicas são abandonadas, e novas teorias são formadas, nas mais diversas áreas do conhecimento, inclusive nas ciências sociais.
Por mais belas que sejam, muitas teorias ainda buscam um fundamento empírico que lhe forneça uma base sólida. As versões da gravidade de Newton e Einstein mostram que modelos profundamente diferentes podem produzir as mesmas observações, exceto em situações muito especiais.
A teoria da relatividade indica que nos deslocamos na dimensão temporal com velocidade de um segundo por segundo (1 s/s). Podemos não perceber esse deslocamento através dos sentidos, mas muitos experimentos foram feitos nos últimos cem anos confirmando sua veracidade. O efeito do observador, seja nas ciências naturais, seja nas ciências sociais, também tem se robustecido ao longo do tempo, apesar de não percebermos com os sentidos. O fato de ainda buscar um fundamento empírico sólido não desprova sua validade e influência.
Epistemologicamente, teorias atraentes são frequentemente abaladas por achados desconcertantes. De fato, nos últimos anos, muitas teorias sólidas tiveram seus alicerces estremecidos por descobertas inconvenientes, levando seus partidários a escolher três caminhos inescapáveis: superação, reformulação ou limbo.
O primeiro ocorre quando há um embate entre diferentes teorias para explicar um mesmo fenômeno. Após o surgimento de um fato desconcertante, uma delas prevalece.
O segundo caminho se dá quando os partidários ainda resistem em abandonar a teoria, fazendo remendos que buscam dar-lhe alguma sobrevida.
O terceiro é o mais comum, e ocorre quando nenhuma teoria passa a se encaixar no conjunto de descobertas, após a inclusão da última, levando a um vácuo na explicação do fenômeno.
Esse histórico recente de idas e vindas das teorias a partir da descoberta de fatos inconvenientes se aplica às mais diversas áreas do saber, a começar pelas teorias da própria consciência humana e suas formas de manifestação, como a fala e a escrita. Daí irradia-se para as várias relações humanas, como famílias, negócios, nações e relações entre os povos. Ou seja, se aplica do corpo ao corpus.
Do ponto de vista do corpo, o filósofo Drew Leder publicou a obra “O Corpo Ausente” em 1990. No início do livro ele pondera: “A experiência humana é encarnada. Recebo o mundo ao redor através dos meus olhos, meus ouvidos, minhas mãos. A estrutura dos meus órgãos perceptivos molda o que apreendo. E é por meios corporais que sou capaz de responder. Minhas pernas me carregam em direção a um objetivo desejado visto à distância. Minhas mãos se estendem para pegar ferramentas, reconstruindo o ambiente natural em uma morada exclusivamente adequada ao meu corpo. Minhas ações são motivadas por emoções, necessidades, desejos, que brotam de um eu corpóreo. As relações com os outros são baseadas em nossa mutualidade de olhar e toque, nossa fala, nossas ressonâncias de sentimentos e perspectivas. Dos desejos mais viscerais às mais elevadas realizações artísticas, o corpo desempenha seu papel formativo. No entanto, essa presença corporal é de natureza altamente paradoxal. Embora em um sentido o corpo seja a presença mais permanente e inescapável em nossas vidas, ele também é essencialmente caracterizado pela ausência. Ou seja, o próprio corpo raramente é objeto temático da experiência. (“The Absent Body”, editora University of Chicago Press, 1990).
No tratamento legal do corpo, o Direito prevê como início da personalidade humana o nascimento com vida, adotando a lei civil a teoria natalista. Essa teoria, no entanto, foi abalada por fatos inconvenientes da vida moderna, que puseram em xeque a teoria e exigiram a extensão de certos direitos da personalidade ao nascituro, dando ensejo à adoção excepcional da teoria concepcionista, prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos. Mas a adoção integral desta última não se revelou consentânea com os ditames legais.
A lei chegou a albergar também o concepturo, conferindo-lhe o direito de suceder, caso no momento da abertura da sucessão testamentária esteja vivo, e não apenas concebido (art. 1.799, I, do Código Civil), excepcionando a teoria concepcionista adotada pelo artigo 1.798 do mesmo códex.
Percebe-se que a lei civil estendeu certos direitos da personalidade para pessoas que ainda não foram concebidas (teoria concepturista?), para as já concebidas (teoria concepcionista) e para as nascidas vivas (teoria natalista). Importante registrar a diferença entre nascer com vida e estar viva no momento da abertura da sucessão.
Tentando contornar esse limbo jurídico, alguns doutrinadores propuseram a teoria da personalidade condicional, cujos direitos da personalidade se aplicariam desde a concepção, mas ficariam dependentes da condição suspensiva de nascer com vida.
Ainda na perspectiva do corpo, a oposição entre este e a consciência remonta ao dualismo cartesiano, que é enfrentado extensivamente por Drew Leder na obra acima. Descartes chegou a acreditar que a glândula pituitária fazia a união entre o corpo e alma. Na verdade, essa glândula libera melatonina para regulação do sono e do ritmo circadiano, que controla o ritmo vigília-sono. Essa regulação é percebida nas mudanças de fuso horário, principalmente em viagens transoceânicas no sentido oeste-leste, que costumam ocasionar a síndrome de jet lag.
O aprofundamento do debate sobre o dualismo possibilitou o avanço da epistemologia. Em 1674, Nicolas Malebranche publicou a obra “A Busca da Verdade: Onde se trata da natureza do espírito humano, e do uso que ele deve fazer deste para evitar o erro nas ciências”. O tópico central da obra é a “consciência da consciência” e a “consciência da extensão”. Para o autor: “Há que se notar, entretanto, que entre corpo e mente há certa correspondência, mas não interação, uma vez que qualquer interação imaginável já é corpo”.
Se opondo ao mecanicismo, Malebranche ainda afirma: “tal qual é demonstrado por Zenão, o espaço é infinito em ato, e contém, portanto, infinitas etapas entre o início de um movimento e o seu final, não sendo possível ao próprio corpo, pelo fato de serem infinitas, ultrapassá-las todas.”
O assunto foi retomado modernamente por Fábio Ulhoa Coelho, que assevera:
“Na Antiguidade, viveu um homem de nome Zenão, nascido em Eleia. Os registros disponíveis da narrativa de sua morte fazem crer que ele foi um homem dotado de grande força moral. Tendo participado da organização de uma conspiração contra um tirano, foi capturado e submetido a tortura em praça pública, para que delatasse os seus companheiros de insurreição. Como não o fez, acabou sendo morto. Mas o espetáculo de sua tortura, montado para atemorizar os inimigos do tirano, produziu o efeito inverso. Segundo as crônicas, a extraordinária lealdade e força demonstrada por Zenão, perante a violência brutal que sofria, teriam despertado na população a consciência da necessidade de se libertar do tirano, seguindo-se, então, sua deposição.
Zenão era filósofo, discípulo de Parmênides. Isso significa que ele acreditava na ideia de que a razão, e não os sentidos, tem acesso à verdade. Os homens podem se assegurar do que conhecem de certa realidade, não pelo que vêem, escutam ou cheiram nela, mas em função do que pensam dela.
Dentre os paradoxos de Zenão, o da flecha diz que ela nunca atingirá o alvo, por não ser vista se movendo em nenhum instante. O efeito Zenão quântico foi proposto em 1977, afirmando que um estado instável parece congelado, sem movimento, devido a uma série constante de observações.” (Introdução à Lógica Jurídica, editora Revista dos Tribunais, 9° edição, 2022).
Levando essa perspectiva para a lógica jurídico, Ulhoa explica:
“Quando o penalista ensina que cabe reclusão na hipótese de homicídio doloso, a estrutura da proposição por ele enunciada não torna a punição como causada pelo crime. Segundo o enfoque desses filósofos do direito, o estudioso das normas formula proposições em que o antecedente é ligado ao consequente por um conectivo diferente: o verbo composto dever ser. Entre os dados considerados (homicídio doloso e reclusão), a relação estabelecida não é de causalidade, mas de imputação. Ou seja, ocorrido o homicídio doloso, deve ser a reclusão. Em termos estruturais, dado o antecedente, deverá ser o consequente.
Para entender com exatidão o rico pensamento de Kelsen sobre a lógica do direito, deve-se partir da diferença estabelecida, na segunda versão de seu célebre Teoria Pura do Direito (1960:110/116), entre norma jurídica (Rechtsnorm) e proposição jurídica (Rechtssatz).
Tanto a norma como a proposição jurídica são enunciados deônticos. Estabelecem entre o antecedente e o consequente a conexão específica da relação deôntica, isto é, verifi- cado o antecedente, deve ser o con- sequente. Mas quem enuncia a norma jurídica é a autoridade competente, ao passo que a proposição é produto da ciência do direito.
O sentido da norma jurídica é prescritivo. A autoridade competente para a editar formula juízo segundo o qual é imputado ao antecedente o consequente por ela definido. O legislador, ao aprovar o art. 121 do Código Penal, expressou a vontade de que o homicídio fosse punido com reclusão de seis a vinte anos. A conexão entre a ação de matar alguém e essa pena surge no espírito do legislador em decorrência exclusivamente de sua própria vontade. Já o sentido da proposição jurídica é descritivo, quer dizer, a conexão deôntica estabelecida pelo cientista do direito se destina a descrever o contido na norma jurídica.” (Introdução à Lógica Jurídica, editora Revista dos Tribunais, 9° edição, 2022).
A epistemologia jurídica através da lógica foi aprofundada por Chaim Perelman. De fato, a lógica aristotélica, baseada em constantes lógicas, não era capaz de expressar o teorema de Euclides, que diz haver um número infinito de números primos. Na obra “Begriffsschrift”, publicada em 1879, Frege substituiu essas constantes por um lógica axiomática de predicados, baseada em variáveis quantificadas, o que possibilitou estender a representação lógica a uma gama maior de casos. Em companhia de Olbrechts-Tyteca, Perelman utilizou os estudos de Frege para desenvolver sua teoria da argumentação, que até hoje fundamenta as decisões e pareceres judiciais.
Para Perelman, caso uma solução se apresente como a única admissível, seja por razões de bom senso, de equidade ou de interesse geral, ela deverá prevalecer também no âmbito jurídico, ainda que o juiz seja obrigado a recorrer a argumentos especiosos (ilusórios) para mostrar sua conformidade com as normas legais. Assim, a lógica do argumento desenvolve-se em relação direta com os fatos, com as provas, o contexto político, a situação social e cultural. Isso significa dizer que o pensamento de Perelman privilegia o concreto.
A tradição da lógica jurídica contou ainda com o supedâneo de Oliver Wendell Holmes Jr, que se baseou nos escritos de Francis Bacon e John Stuart Mill, conforme profundamente examinado na obra de Frederic R. Kellogg (“Oliver Wendell Holmes Jr. and Legal Logic”, University of Chicago Press, 2018).
Laércio Becker, Maria Francisca Carneiro e Eliseu Raphael Venturi publicaram o artigo “Qual é o Cheiro do Direito? Primeiras conjecturas para uma Semiótica da ‘Matéria Jurídica’” em 2013, pontuando:
“No amplo contexto do mundo olfativo, não se pode deixar de considerar que o Direito, por óbvio, não escapa do orbe dos sentidos, e nesse campo de exploração um pouco se tem falado também do Direito por meio da Música; e muito se tem falado, quase tudo, sobre Direito e Literatura. Porém, sentidos como o olfato e a audição, ao que soa e ressende, nada têm sido explorados, não obstante seu potencial para integrar entendimentos sobre a interação entre as pessoas no mundo jurídico e no social de interesse jurídico.”
Sobre a relação do Direito com a música e a literatura, a que aludem os autores do artigo, merecem destaque as obras de José Roberto de Castro Neves, publicadas pela editora Nova Fronteira entre os anos de 2019 e 2023: “Direito e Literatura”, “Música e Direito” e “Os Advogados Vão ao Cinema”.
Os autores do artigo afirmam em seguida:
“Marcílio Toscano Franca Filho constata, com muita propriedade, que o Direito sofre de imagofobia. Ele é logocêntrico, de fato. Só que a objetividade, a impessoalidade, tudo conduz a um direito não só sem imagem, mas também sem cheiro. Veja-se o “silêncio eloquente da lei”, de que fala Karl Larenz: o olfato não o alcança. Também o “Mute Law”, o Direito não escrito e não falado: o olfato segue intacto. Ou seja, o Direito não sofre só de imagofobia, mas também de olfatofobia. Eventualmente potencializada pelo processo civilizatório.
Ora, a disseminação de um cheiro indica que a matéria (gás ou colóide) se espalha pelo espaço, entropicamente. Se o Direito é olfatofóbico, também é agorafóbico, pois se prende a ambientes fechados. Se a música é invasiva (Pascal Quignard), assim também é o cheiro. Daí a clausura forense contra os cheiros de fora do Direito. Só que ambientes fechados preservam cheiros. Ao tentar se livrar dos cheiros, o fórum acaba paradoxalmente preservando e concentrando um cheiro, o seu próprio: o cheiro do Direito. Preserva do quê? Dos cheiros externos ao mundo jurídico, cheiros do mundo real.”
Gustavo González Solano publicou o artigo “La Heurística Jurídica” na Revista Telemática de Filosofía del Derecho (nº 10, 2006/2007), defendendo uma posição diferente:
“O trabalho a seguir explica a impossibilidade teórica e prática de descobrir a solução de um caso jurídico de forma lógica. Para tal, é feita uma abordagem às noções gerais de dedução, aos seus componentes básicos, ao silogismo e à sua aplicação prática na resolução de processos judiciais.
Percebe-se que o procedimento de resolução dos processos judiciais é heurístico, ou seja, um procedimento constituído por um conjunto de atos mentais claramente interpretativos, associativos e volitivos.
A dedução é de grande interesse para a posterior verificação da solução de um caso. Mas não pela sua descoberta ou criação. A dedução não gera soluções para um caso. Pelo exposto, é necessário concluir que a dedução é utilizada na resolução de um processo na área jurídica. Este processo ainda permanece no campo interpretativo, associativo e volitivo, e não no campo lógico. Por esta razão, a precisão, a eficácia, a eficiência, a relevância, a cientificidade e a racionalidade do procedimento utilizado pelos juízes para resolver os casos em suma, dependerão, como salienta Nozick, de: ‘...Quão rigorosos devem ser os procedimentos. Os critérios para estimar as razões dependerão do que está em jogo, da importância ou gravidade do erro, de quanta energia, quanto tempo e quantos recursos teriam de ser dedicados à utilização de procedimentos que satisfaçam estes critérios mais rigorosos na natureza geral da empresa, etc…’".
Apesar de o método heurístico ser largamente utilizado, não há como negar que o raciocínio lógico leva à evolução e aperfeiçoamento do Direito. São exemplos a obra “A Obrigação como Processo”, de Clóvis Veríssimo Couto e Silva, publicada em 1964, onde o autor usou a razão para sustentar posições pioneiras, e o artigo “Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência e para Identificar as Ações Imprescritíveis”, elaborado por Agnelo Amorim Filho em 1958.
Um exemplo de que a razão e a lógica podem ser fontes fecundas do aperfeiçoamento jurídico pode ser visto no julgamento da ADI 02 pelo Supremo Tribunal Federal, realizado entre os anos de 1989 e 1992, com publicação do acórdão em 1997. Neste julgamento, o Min. Relator Paulo Brossard, após proferir um extenso e proficiente voto, complementou sua posição por ocasião da renovação do julgamento, aduzindo: “Não diria um paradoxo se dissesse que a declaração da inconstitucionalidade das leis antecedeu à sua teoria. Antes que a doutrina a formulasse, MARSHALL desenvolveu-a em julgado imortal, MARBURY v. MADISON. Nele aparecem apenas os nomes de BLACKSTONE e de LORD MANSFIELD, a propósito do “mandamus”. Nada mais. Quanto à extraordinária construção, nenhum autor é citado, nenhum precedente invocado. Como água que brota da fonte, o raciocínio do juiz se desenvolve nítido e claro; como o traço do pintor em tela virgem, ele vai se desdobrando e impondo pela sua poderosa força lógica e pela singela transparência dos seus argumentos, cuja simplicidade é modelar” (ADI 02-1/DF, p. 73).
Mas não se nega que, em termos práticos, a dicotomia entre razão e empirismo (dedução e indução) pode resultar em um Direito bipolar, ocasionando incoerências no sistema legal.
Metaforicamente, desde o experimento de Young da dupla fenda, realizado em 1801, sabe-se que luz mais luz pode dar sombra, por meio do fenômeno da interferência. Da mesma forma, lei mais interpretação pode resultar em sombra, com interferências de outra ordem.
Logo, é preciso divisar até que ponto o Direito comporta níveis de incoerência em seu entorno, a fim de manter um núcleo estável. Alguns exemplos teóricos e práticos podem indicar um limite.
De início, cite-se a própria Teoria do Positivismo Jurídico, que chegou a ser hegemônica por muitas décadas, mas é tida atualmente como superada pela maioria da doutrina.
De forma mais específica, a Teoria da Responsabilidade Civil também tem sido alvo de muitas críticas que buscam sua reformulação ou superação. De fato, a vertente tradicional da teoria atendeu às exigências econômicas e sociais da época de sua formulação, buscando estabelecer um nível adequado de segurança jurídica para a industrialização e urbanização crescentes, definindo os requisitos de dano, nexo e culpa em uma estrutura teórica sólida e esteticamente atraente.
Mas nos últimos anos surgiram achados inconvenientes que abalaram suas estruturas nucleares, como acórdãos que a aplicaram e resultaram em conclusões injustas e incoerentes com o sistema legal. Disso decorreu duas posições antagônicas no campo decisional: os que defendem fazer justiça primeiro e fundamentar na lei depois, e os que se apegam à lei independentemente do resultado que virá.
Essas situações injustas fizeram com que os juristas criassem uma série de remendos na teoria da responsabilidade civil, como a culpa presumida, risco aceitável, nexo probabilístico e inversão do ônus probatório. Para reformulá-la, o parágrafo único do art. 927 do Código Civil contém uma cláusula de abertura que constitui um caminho promissor. Outras propostas teóricas buscam estabelecer requisitos diferentes, como antijuridicidade, dano injusto, nexo de imputação e causalidade, que seriam mais consentâneos às atuais relações sociais e evitariam decisões injustas.
Na prática, não há como fugir de uma escolha trágica, em que a teoria deve conciliar a segurança jurídica e algum nível de injustiça no caso concreto. Afinal, a justiça plena para um litigante pode resultar em insegurança jurídica para todo o restante, ao passo que a segurança máxima pode ocasionar uma extrema injustiça num caso individual. Daí a necessidade de regulação legislativa para evitar o decisionismo dos tribunais, estabelecendo-se critérios objetivos.
Também no campo penal e processual penal avultam decisões incoerentes. Como exemplo, decisões do STJ e do STF excluíram do âmbito do acordo de não persecução penal os crimes de injúria por discriminação racial ou orientação sexual.
Para tanto, os dois tribunais basearam-se em princípios constitucionais e em disposições de tratados internacionais, utilizando a abertura disposta no art. 28-A, §3°, do CPP, lançando mão de critérios subjetivos, já que a pena abstrata dos crimes comporta o instituto. Esse entendimento cria uma enorme contradição dentro do sistema legal, atrelado à proteção dos bens jurídicos de maior relevância, já que o acordo continua aplicável a condutas que atingem bens de maior valor, como o homicídio culposo. Essa contradição se soma a diversas outras, como o entendimento pelo crime único de latrocínio, a despeito de o agente ceifar a vida de diversas vítimas, e o uso do critério topográfico no furto noturno qualificado.
Nestes casos, o papel do legislador é promulgar regras claras inscritas em poucas palavras nas leis aprovadas no parlamento. Inevitavelmente, esse formalismo faz surgir contradições naturais dentro do sistema legal. Daí a necessidade de o intérprete conciliar as diferentes regras, visando restabelecer a coerência. Mas não é incomum que o próprio intérprete seja a fonte da incoerência, cabendo à sociedade socorrer-se novamente do legislador para contorná-la, por meio de uma lei que ponha termo à controvérsia, criando-se um círculo discursivo vicioso.
A partir desse círculo vicioso, condutas nitidamente mais graves são muitas vezes apenadas de forma mais branda que condutas de menor gravidade, que atingem bens jurídicos de menor valor, invertendo-se a lógica do sistema legal. Uma possível razão mais profunda para esse círculo vicioso pode ser o efeito do observador, que influencia tanto o legislador quanto o intérprete.
No âmbito doutrinário, defendendo a aplicação retroativa do ANPP, Leonardo Schmitt de Bem e Rodrigo José Fuziger citam a função “antiaporofóbica” do novo instituto. O termo “aporofóbico” é um neologismo recente com raízes gregas, que significa fobia a pobres, da qual estaria impregnado o sistema penitenciário brasileiro. Para os autores, o ANPP tem o potencial de reduzir os efeitos sociais nocivos da pena sobre essa camada da população. (ANPP, editora D’Plácido, 4º edição, 2023, p. 115).
Na práxis recente, o Supremo Tribunal Federal publicou em 19/11/2024 o acórdão do Habeas Corpus nº 185913, entendendo pela aplicação retroativa do ANPP, mesmo sem a confissão do réu, estabelecendo alguns limites, como o trânsito em julgado da condenação. Na extensa tese fixada no julgamento, o STF definiu que compete ao Ministério Público avaliar os requisitos para o acordo.
O ANPP excepciona o princípio da legalidade processual, de onde deriva a indisponibilidade da ação penal pública. De fato, no processo penal, até mesmo a verdade real tem dado espaço à verdade processual, e no âmbito dos juizados especiais, tem prevalecido uma verdade consensual. Daí a incoerência de se vedar a justiça negocial em todo e qualquer caso de injúria racial ou por orientação sexual.
Tradicionalmente, as normas penais devem ser veiculadas em Lex Praevia, Scripta, Stricta e Certa. De fato, a doutrina indica como requisitos para a lei penal a especificidade, certeza e anterioridade. Isso porque a lei penal vaga dá azo a interpretações subjetivas. Como exemplo, podemos citar a deformação semântica do tipo penal, em afronta ao princípio da taxatividade.
Nos últimos anos, as decisões constitucionais que geram incoerência no sistema legal relegam o pragmatismo de Richard Posner na moderna hermenêutica constitucional. Além disso, essa visão não leva em conta a discrepância doutrinária entre Dworkin e Alexy, que diferem substancialmente no tratamento da discricionariedade judicial. Enquanto o primeiro é abertamente avesso ao juízo discricionário, o segundo o admite apenas como pressuposto da ponderação, mas busca racionalizá-lo ao máximo.
A vulgarização da teoria da derrotabilidade das normas jurídicas também ajuda a inflar as incoerências no sistema legal. A derrotabilidade só ocorre quando uma regra existente, válida e eficaz é superada com o surgimento de uma exceção relevante. A extensão desta superação aos princípios é mais desafiadora, pois são caracterizados como mandamentos de otimização. Mas ainda atrai argumentos favoráveis, como os de Aulis Aarnio e Klaus Günther, prevalecendo os argumentos contrários sustentados por Carsten Bäcker e Thomas Bustamante.
A bipolaridade jurisprudencial também pode ser exemplificada no acesso à medicamentos. De uma maneira geral, o debate judicial sobre direitos fundamentais programáticos é afetado pela inflação e orçamento, em especial em nações em desenvolvimento.
De forma abrangente, o efeito inflacionário recente no Brasil respondeu à expansão da base monetária, M2, que alberga dinheiro e depósitos à vista. Nas duas últimas décadas, entre 1994 e 2024, desde a adoção do atual padrão monetário, essa base aumentou 56.000%, bem acima do crescimento do produto, atingindo o patamar atual de R$ 440 bilhões, gerando inflação nos preços gerais, incluindo os medicamentos.
Esse efeito inflacionário abrangente explica o aumento de preços dos medicamentos já em uso. Já quanto aos novos medicamentos, a explosão nos preços se deve a fatores bem mais sutis.
A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal encerrou o julgamento do RE 566471, com repercussão geral (Tema 6), que havia iniciado em 2020 e foi concluído em 20/09/2024. No precedente, a corte estabeleceu critérios para a concessão judicial de medicamentos registrados na ANVISA e não incorporados na lista do SUS, independentemente do custo.
A tese aprovada elenca uma série de requisitos administrativos e técnicos para o deferimento do pedido, como a existência de estudos randomizados e de meta análise que atestem a eficácia do medicamento, vedada sua concessão por liminar.
Essa discussão é largamente disseminada em países como Brasil e Índia, que enfrentam enormes desafios para o fornecimento de novos medicamentos às suas populações. Mas também encontra campo fértil em países desenvolvidos, inclusive de onde os medicamentos se originam. Nos Estados Unidos, eles podem custar até o dobro de outros países desenvolvidos, como França e Reino Unido. Não à toa o estado da Flórida foi autorizado pela FDA a importar medicamentos do Canadá, ao invés de adquiri-los nos EUA, onde são fabricados.
O preço de novos medicamentos explodiu nos últimos anos. Em geral, as indústrias farmacêuticas justificam essa elevação com o aumento dos custos e dos riscos associados ao processo de pesquisa e desenvolvimento. Os custos dos ingredientes brutos e da fabricação seriam mínimos quando comparados aos custos dos ensaios clínicos.
Do ponto de vista epistemológico, a aquisição de conhecimento para novos medicamentos é essencialmente empírica, baseada na experimentação científica. E quanto mais se aprofunda o conhecimento dos processos bioquímicos das patologias, mais difícil e custoso se torna expandir esse conhecimento, já que as possíveis opções terapêuticas se afunilam.
Na conta do desenvolvimento de novos medicamentos ainda se acrescentam os custos dos medicamentos que não chegaram ao mercado. De fato, muitos medicamentos possuem bons resultados em laboratório e em animais, mas não funcionam em humanos, ou causam graves efeitos colaterais. Assim, os custos de todas as falhas são incluídos no valor dos novos medicamentos, a fim de gerar lucro que estimule a pesquisa contínua.
Mas nem tudo são flores. Apesar desse argumento plausível, questões mercadológicas também afetam os preços, como os modelos de negócio focados em dividendos para os acionistas, com a financeirização do setor farmacêutico, além da manutenção de patentes por longo período, inibindo a concorrência. Aponta-se ainda a existência de incentivos financeiros a profissionais que prescrevem determinados medicamentos a seus pacientes, e até mesmo a preferência de investimentos em pesquisas que controlem os sintomas da patologia, em detrimento da cura, a fim de manter uma fonte constante de renda.
Sem as amarras das patentes, a aspirina, um dos medicamentos mais utilizados do mundo, feito a partir do ácido acetilsalicílico e usado para alívio de dores de cabeça e musculares, é fabricada por diversas indústrias farmacêuticas, que competem entre si para ofertá-la ao mercado pelo menor preço.
Por outro lado, os novos medicamentos para Hepatite C chegaram recentemente ao mercado nos EUA ao custo de 1.000 dólares o comprimido. No Reino Unido, o tratamento de 24 semanas com o mesmo medicamento pode chegar a 70 mil libras.
Se adentramos o tormentoso campo das doenças raras, a cada ano cresce a lista de medicamentos cuja dose única atinge a cifra de milhões de dólares. Aprovado em 2024, o Lenmeldy, usado no tratamento de MLD, chegou ao custo de 4,25 milhões de dólares. No Brasil, bastam 4 pacientes com a doença para se alcançar a monta de R$ 100 milhões.
Contudo, alguns levantamentos contestam essa associação direta entre investimentos em P&D e o enorme valor dos novos medicamentos. Oliver J. Wouters, Lucas A. Berenbrok e Meiqi He divulgaram um estudo em 2022 na rede JAMA, considerando 60 novos medicamentos aprovados entre 2009 e 2018. Os autores utilizaram modelos de regressão linear para inferir que os investimentos em P&D não explicaram a variação nos preços da tabela de medicamentos da amostra.
Certamente os custos de investimento explicam parte da explosão de preços, mas disfunções de mercado possuem forte impacto. De fato, médicos, hospitais e outros intermediários aumentam suas receitas quando os valor dos medicamentos disparam, não se limitando às indústrias, criando assim um sistema de incentivos prejudicial aos pacientes. Essa realidade faz com que, na prática, o preço dos novos medicamentos seja fixado tão alto quanto o mercado suportar.
Outro exemplo de Direito Bipolar pode ser visto nos julgamentos sobre liberdade de expressão nas redes sociais.
O STF julgou a ADI 2.404 em 2016, seguindo o voto do Min. Relator Dias Toffoli, declarando a inconstitucionalidade do art. 254 do ECA, com a fixação da tese de que a classificação etária dos programas de TV é apenas indicativa, e não autorizativa. Ainda assim, em novembro de 2024, o Ministério da Justiça alterou a classificação etária da novela Cabocla, de livre para 14 anos, determinando ainda sua exibição após às 21h00min.
Essa decisão do pretório excelso foi complementada por diversas outras que repeliram a censura prévia, como nos casos das bibliografias não autorizadas e do direito ao esquecimento.
Essas idas e vindas da jurisprudência sobre a liberdade de expressão atingem as redes sociais. No julgamento do RE 1037396, o mesmo Min. Relator Dias Toffoli votou em dezembro de 2024 pela responsabilização objetiva das plataformas por conteúdos de terceiros, sem a necessidade de notificação prévia para remoção em casos graves.
O debate gira em torno da validade do art. 19 do Marco Civil da Internet. O Projeto de Lei n° 2630/2020 tentou regular os conteúdos publicados nas redes sociais, mas sua redação prolixa travou seu trâmite congressual. Tal como na metáfora da dupla fenda, a luz da lei mais a luz da jurisprudência podem produzir um apagão nas mídias digitais, por meio da “interferência” direta das emissoras de TV.
De fato, ao contrário dos julgamentos citados acima, que eram do interesse das emissoras, neste há como pano de fundo uma acirrada disputa comercial entre as TVs e as redes sociais pelas preferências do público, aliada à comunicação direta com os usuários, sem a intermediação do setor jornalístico.
A doutrina especializada tem indicado que a desinformação nas redes deve ser combatida com mais informação, e não censura. A censura prévia privada a conteúdos meramente controversos ou divisivos, fonte de algum questionamento, pode inibir a liberdade de expressão garantida pela CF. A aplicação da notificação prévia, com supedâneo analógico no art. 21 do Marco Civil da Internet, deve vir acompanhada da indicação da base legal, a exemplo do que já é adotado no caso de nudez não consentida e de abuso infantil no ECA.
Quanto aos conteúdos meramente controversos, os próprios tribunais superiores, como TSE, STJ e STF, ordenaram recentemente a remoção de conteúdos em decisões com maioria apertada, havendo fortes dúvidas entre seus próprios integrantes sobre a nocividade do conteúdo. O que dizer então do escrutínio das próprias plataformas, ávidas por engajamento e publicidade.
A responsabilidade objetiva pode resultar num monitoramento geral e irrestrito das mídias digitais, esvaziando sua funcionalidade. Diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento adotaram outros modelos consentâneos com as democracias liberais, buscando sempre a preservação do dissenso.
No Direito, o aforisma interpretatio cessat in claris fornece a ideia de que a lei clara dispensa interpretação, mas a interferência do ativismo judicial tem prejudicado a deferência ao legislador. Os casos acima demonstram que o sistema legal pode conviver com certo nível de incoerência em seu entorno. Mas o grau de incoerência tem forçado o núcleo do sistema, gerando um círculo discursivo vicioso.
Não existe aproximação assintótica da verdade. Além das “interferências” tão comuns aos lobbies, algo mais profundo tem influenciado esse nível de incoerência, como o efeito do observador, que altera o fenômeno social observado e a própria perspectiva do observador, gerando fissuras na lógica jurídica que não foram adequadamente tratadas pelas atuais teorias da argumentação. Só com a análise dessa influência, desde o indivíduo até o corpo legal, será possível progredir na epistemologia jurídica.
Referências
Becker, Laércio A. Carneiro, Maria Francisca. Venturi, Eliseu Raphael. Qual é o Cheiro do Direito? Primeiras conjecturas para uma Semiótica da “Matéria Jurídica”, 2013.
Bem, Leonardo Schmitt de. Fuziger, Rodrigo José. ANPP, editora D’Plácido, 4º edição, 2023.
Coelho, Fábio Ulhoa. Introdução à Lógica Jurídica, editora Revista dos Tribunais, 9° edição, 2022.
Solano, Gustavo González. La Heurística Jurídica. Revista Telemática de Filosofía del Derecho, nº 10, 2006/2007.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. Do corpo ao corpus: O efeito do observador na moderna epistemologia jurídica e as incoerências no sistema legal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jan 2025, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67578/do-corpo-ao-corpus-o-efeito-do-observador-na-moderna-epistemologia-jurdica-e-as-incoerncias-no-sistema-legal. Acesso em: 17 jan 2025.
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