RESUMO: A desconsideração da personalidade jurídica é teoria de extrema relevância para a proteção não apenas dos credores de pessoas jurídicas indevidamente utilizadas, mas também para a própria proteção do conceito de personalidade jurídica. Isso ocorre porque abusos são recorrentes em todas as áreas do cotidiano e, por óbvio, do direito, exigindo atuação positiva dos juristas para coibir essas práticas maléficas, já que institutos que têm seu uso deturpado podem acabar por trazer enorme insegurança jurídica para toda a comunidade que faz uso dele. Assim, o estudo de seus principais aspectos legais, doutrinários e processuais é de extrema importância.
Palavras-chave: responsabilidade civil; desconsideração da personalidade jurídica.
I – INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é apresentar um apanhado da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica. A primeira parte trará a origem e a história do conceito, seguido da sua conceituação, sua natureza jurídica, as teorias que o definem e, por fim, os aspectos processuais que o envolvem. Ao final, a conclusão trará a importância e motivação para a existência dessa figura híbrida, que envolve aspectos do direito material e do processual.
II -HISTÓRICO
A primeira teoria sobre o que viria a ser a desconsideração da personalidade jurídica é a teoria da soberania, criada, no século XIX, por Fritz Haussmann e logo desenvolvida na Itália por Lorenzo Mossa, que imputava a responsabilidade ao controlador a responsabilidade pelas obrigações inadimplidas de uma sociedade de capitais. Não se pode afirmar que se tratada de uma verdadeira desconsideração da personalidade jurídica, pois seu objetivo era meramente o de coibir o uso inapropriado da sociedade.
Na mesma época, um famoso julgamento ocorreu na Inglaterra, no que ficou conhecido como Caso Salomon X Salomon Co.. O senhor. Aron Salomon constituiu uma empresa semelhante a uma sociedade de ações fechada, integralizando o capital com o fundo de comércio de uma loja de calçados que ele já possuía, sendo ele o sócio majoritário com praticamente a totalidade das ações, mas estabeleceu como preço de transferência um montante superior ao valor real das ações, o que lhe conferiu um crédito preferencial perante a sociedade. A High Court e Court of Appeal condenaram Aaron a indenizar a sociedade e, consequentemente, seus demais credores, numa decisão inédita até então. |Entretanto, imporrtante observar que a. House of Lords privilegiou a separação patrimonial.
Nas décadas seguintes, já no século XX, alguns doutrinadores europeus passaram a desenvolver teorias sobre o assunto. Assim, em 1912, o jurista norte-americano I. Maurice Wormser escreveu um livro intitulado Disregard of corporate fiction and allied corporation problems e, em 1953, o professor alemão Rolf Serick escreveu o livro que, em espanhol é denominado Apariencia y realidad en las sociedades mercantiles. Na sequência, Piero Verrucoli, na Itália, publicou, Il superamento della personalità giuridica delle società di capitalli nella “common law” e nella civil law, em 1964 e, finalmente, em 1969, Rubens Requião nos brindou com seu Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica, tendo sido o responsável por trazer para cá a teoria da desconsideração da personaldiade jurídica.
III – CONCEITO
Emprestando o conceito tal como pensado originalmente por Rubens Requião, a ideida da desconsideração da personaldiade jurídica se fundamenta em três bases: a relativização da personalidade da pessoa jurídica, inexistência de invalidação da personalidade da pessoa jurídica e manutenção do princípio da separação das personalidades jurídicas dos sócios e da pessoa jurídica (já que o que a teoria propõe é apenas coibir o desvituramento do uso dessa personalidade.
É importante ressaltar que a autonomia patrimonial é dogma caro ao ordenamento jurídico brasileiro (societas distat singulis) e, portanto, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é sempre uma exceção, que poderá incidir apenas quando a personificação apresentar um desvirtuamento da finalidade social da pessoa jurídica.Como bem dispôs Rubens Requião, não se trata de "considerar ou declarar nula a personalidade, mas de torná-la ineficaz para determinados atos", tendo o renommado coemrcialista afirmado que essa teoria “poderia ser perfeitamente adotada, para impedir a consumação de fraude contra credores e mesmo contra o fisco, tendo como escudo a personalidade jurídica da sociedade comercial
Outro renomado jurista que tratou do tema foi Fábio Ulhoa Coelho, para quem a teoria da desconsideração da personaldiade jurídica“é a ignorância, para casos concretos e sem retirar a validade do ato jurídico específico, dos efeitos da personificação jurídica validamente reconhecida a uma ou mais sociedades, a fim de evitar um resultado incompatível com a função da pessoa
IV - NATUREZA JURÍDICA
Indagando-se a questão sobre a natureza jurídica da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, deparamo-nos com a explicação dada por Marlon Tomazette, que defende não se tratar da aplicação de um dispositivo que autoriza a desconsideração, mas meramente da não aplicação no caso concreto da autonomia patrimonial da pessoa jurídica que está sendo usada indevidamente.
Importante, nesse ponto, tratar das hipóteses em que não se aplica a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, quais sejam, quando a lei cuidar de responsabilidade solidária, ou subsidiária, ou pessoal dos sócios, por obrigação da pessoa jurídica, ou quando ela proíbe que certas operações, vedadas aos sócios, sejam praticadas pela pessoa jurídica. Isso porque nessas situações não é preciso desconsiderar a empresa, a fim de imputar as obrigações aos sócios, pois, mesmo considerada a pessoa jurídica, a implicação ou responsabilidade do sócio já decorre do preceito legal.
O mesmo raciocínio se aplica às hipóteses de responsabilidade dos sócios estabelecida contratualmente. As previsões legais de imputação da reponsabilidade direta aos sócios são variadas, sendo as principais aquelas estabelecidas nos artigos 117 (abuso de poder do acionista controlador) e 158 (responsabilidade pessoal do administrador), da Lei n. 6.404/76, que trata das sociedades anônimas; o artigo135 (excesso de poder) da Lei n. 5.175/66, que é o Código Tributário Nacional; e os artigos. 1.009 (distribuição de lucros fictícios), 1.016 (responsabilidade por culpa dos administradores) e 1.080 (deliberações contrárias ao contrato social), do Código Civil.
Importante ressaltar que as hipóteses de solidariedade entre a pessoa jurídica e seus sócios estão no Código Tributário Nacional. Assim, o artigo 135, do Código Tributário Nacional nos traz uma situação de solidariedade entre as responsabilidades da pessoa jurídica e de seus sócios, ao estabelecer que “são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I - as pessoas referidas no artigo anterior; (...) III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. E ess entendimento é corroborado por dois enunciados editados sobre o assunto: o Enunciado 53 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (“O redirecionamento da execução fiscal para o sócio- gerenteprescinde do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no art. 133 do CPC/2015 (LGL\2015\1656).”) e o Enunciado 6 do Fórum das Execuções Fiscais (“A responsabilida detributária regulada no art. 135 do CTN (LGL\1966\26) não constitui hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, não se submetendo ao incidente previsto no art. 133 do CPC/2015 (LGL\2015\1656).”).
No mesmo sentido é o artigo 2º, §2º, da Consolidação das Leis Trabalhistas, que preconiza que “Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego.
V – TEORIAS DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
São duas as teorias adotadas pelo ordenamento jurídico brasileiro: a teoria maior e a teoria menor. A primeira exige, para sua aplicação, a ocorrência de dois requisitos: o desvirtuamento do uso da pessoa jurídica - isto é, abuso de direito -, e o descumprimento de uma obrigação pela pessoa jurídica – ou seja, a fraude. Já para a segunda, basta a insolvência jurídica. A teoria maior, por sua vez, ainda é subdividida em subjetiva (caso em que o desvio de finalidade se caracteriza pela fraude) e objetiva (quando o desvio de finalidade é caracterizado pela confusão patrimonial.
A teoria maior se encontra, principalmente, em quatro diplomas legais, sendo o primeiro delas, o artigo 34, da lei12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Esse dispositivo estabelece que “A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, mencionando, ainda, seu parágrafo único, que “A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”
Os demais dispositivos são o artigo 50, do Código Civil, o artigo 14, da Lei n. 12846/2013 (Lei Anticorrupção) e o artigo 160, da Lei n. 14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
A teoria menor, por sua vez, foi encampada pelor Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 28, caput, e também no parágrafo quinto, no parágrafo terceiro do artigo 18, da lei 9.847/99, que trata das atividades de abastecimento de combustível, e, por fim, o artigo 4º, da lei 9.605,98, que trata das infrações ambientais.
VI - ASPECTOS PROCESSUAIS
No Código de Processo Civil de 1973 não havia previsão de um incidente específico, voltado para a desconsideração da personalidade jurídica, então coube à jurisprudência definir o tema, estabelecendo que seria possível a atuação de ofício do magistrado (RECURSO ESPECIAL Nº 1.954.015 – PE), e sem necessidade de citação prévia dos sócios atingidos, já que haveria um contraditório diferido (AgRg no REsp 1.523.930/RS, Terceira Turma, DJe 25/6/2015). Já o Código de Processo Civil vigente veio regular o assunto, estabelecendo, no parágrafo segundo, do artigo 134, a modalidade autônoma, feita como pedido originário, e, no caput do próprio 134, o incidente em si.
A modalidade autônoma do procedimento de desconsideração da personalidade jurídica refere-se às hipóteses em que a questão da extensão da responsabilidade patrimonial integra a própria pretensão processual. Assim, por exemplo, pode-se pensar em um caso em que o credor A move ação de cobrança contra a empresa B, alegando que é credor de C, sócio de B, mas o obrigado utiliza a empresa B para blindar seu patrimônio.
Ainda nessa modalidade autônoma, importante destacar que q responsabilidade patrimonial é questão de mérito, daí porque o artigo 134, § 2.º, prevê a citação do sócio ou da pessoa jurídica para responder à demanda, no processo de conhecimento, ou reagir contra a execução. Além disso, o pedido originário de desconsideração não suspende o processo e segue o rito comum, havendo decisão apenas ao final, sendo hipótese de litisconsórcio facultativo e não obrigatório.
Já a forma incidental transforma a desconsideração em uma questão prejudicial e não parte do mérito. Como exemplo, pode-se pensar na situação em que A moveu ação de cobrança contra C, mas identificou, no curso do processo, a inexistência de patrimônio do obrigado, integrado ao ativo da empresa B. Além disso, diferentemente da modalidade autônoma, ao incidente se aplica o beneficium excussionis personalis (art. 795, § 1.º), ou seja, o direito de que, sob certas condições, primeiro sejam excutidos os bens da sociedade, e somente depois os do sócio.
Por fim, importante mencionar que o incidente suspende o processo, resolvendo a questão prejudicial antes do mérito, sendo caso de litisconsórcio facultativo ulterior. Outro aspecto importante de ser mencionado é que a desconsideração da personalidade jurídica pode ocorrer em qualquer fase do processo, além de ser possível em sede de Juizados Especiais e de ação originária.
Quanto à possibilidade de ser decretada de ofício, a legislação processual foi silente, tendo cabido ao Poder Judiciário se pronunciar sobre o tema, o que fez a Ministra Nancy Andrighi, em seu voto acostado no Resp Nº 1.954.015: “Caso estejam presentes esses requisitos, instaurar-se-á o incidente e o processo será suspenso (art. 134, § 3º, do CPC/15). Em seguida, o sócio ou a pessoa jurídica será citado(a) para manifestar-se e requerer a produção das provas que entender pertinentes (art. 135 do CPC/15).” Assim, percebe-se que não é cabível sua declaração pelo juiz, sem a oitiva dos sócios afetados.
Diante de um pedido incidental de desconsideração da personalidade jurídica, indaga-se quais seriam as opções do juiz: poderia ele rejeitar o pedido de forma antecipada, se oitiva dos ineterssados? Se considerarmos o quanto disposto nos artigos 9º e 10, do Código de Processo Civil, isso não seria possível, já que tais dispositivos exigem que as partes que podem ser afetadas por esse indeferimento sejam previamente ouvidas. Dessa forma, caberá ao juiz receber o pedido, comunicar sua instauração ao distribuidor e ordenar a citação para especificação de provas e manifestações das partes (artigo 134, §§ 1º a 3º).
Com relação à decisão que resolve o pedido de desconsideração, suas naturezas variam conforme a modalidade. Assim, na forma autônoma, caso a questão seja resolvida em sede de sentença, desafiará, por óbvio, o recurso de apelação e, caso uma decisão interlocutória decide parcialmente o mérito ou julgue antecipadamente a matéria, caberá o agravo de instrumento, conforme artigo 356, § 5º. Na modalidade incidental, por seu turno, sempre se estará diante de uma decisão interlocutória, já que o artigo 1.015 assim o exige. EM sede de ação originária, por sua vez, estar-se-á diante de uma decisão monocrática do relator (artigo 932, VI), que comporta interposição de agravo interno (artigo 136, parágrafo único).
De extrema importância mencionar que, decretada a desconsideração, é vedada a alienação ou a oneração de bens, após a citação da pessoa jurídica cuja personalidade se pretende desconsiderar (art. 792, § 3º), sob pena de materializaçã da fraude à execução, e, uma vez acolhido o pedido, todos os atos havidos em desrespeito a essa decisão serão considerados ineficazes, conforme determinação do artigo 137.
Por fim, relevante apontar a novidade trazida pelo Código de Processo Civil, que previu a possibilidade de decretação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, em seu artigo 133, § 2º, em clara consonância com a doutrina e a jurisprudência.
VI – CONCLUSÃO
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica é relativamente recente, na história do direito ocidental (se considerarmos que o direito civil remonta ao direito romano da Antiguidade clássica, por exemplo) e, portanto, não possui a mesma história que levou à grande consolidação que temos com outros instrumentos. Mas já é utilizado há algumas décadas, tendo sido objeto de amplos debates doutrinários e jurisprudenciais no Brasil e no exterior, tendo inclusive sido acolhido pelo último Código de Processo Civil.
Seu objetivo é claramente nobre, abrindo a possibilidade de se levantar o véu da pessoa jurídica, algo muito caro ao sistema capitalista vigente e, portanto, deve ser utilizado com parcimônia e sempre observados os requisitos legais, para que não ocorra um desvirtuamento de seu uso, o que poderia acabar por colocar em risco sua sobrevivência.
Seu uso em diversos ramos do direito mostra seu sucesso e sua genialidade, sendo cada vez mais ampliado para a proteção dos credores fraudulentamente enganados, consolidando-se como um mecanismo altamente eficiente para a salvaguarda da personalidade jurídica, tão caro ao nosso sistema jurídico.
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Mestranda em Direito Ambiental pela PUC/SP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CYLLENE ZÖLLNER BATISTELLA GONÇALVES, . Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos materiais e processuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jan 2025, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67651/desconsiderao-da-personalidade-jurdica-aspectos-materiais-e-processuais. Acesso em: 30 jan 2025.
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