Proclama nossa Constituição Federal de 1988 que o dever de Estados e Municípios com a educação será efetivado, dentre outras obrigações, mediante a garantia de fornecimento de alimentação ao educando (Art. 208, VII). Trata-se, evidentemente, de disposição afinada com o princípio universal da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (Art. 1º, III).
A Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, ratificada por 196 países, inclusive o Brasil em 1990 (Decreto 99.710/1990), determina que os seus Estados-signatários devem combater a desnutrição infantil, inclusive no contexto dos cuidados primários de saúde, mediante o fornecimento de alimentos nutritivos e de água limpa de boa qualidade (Art. 24).
Como não poderia deixar de ser, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional preconiza que o direito à alimentação escolar e à educação alimentar e nutricional é direito sagrado de nossas crianças (Art. 4º, VIII).
Posto isto, não há dúvidas de que todo o ordenamento jurídico brasileiro determina, assim, que Estados e Municípios são obrigados ao fornecimento contínuo e ininterrupto da alimentação escolar à criança carente mesmo durante a Pandemia do Covid-19. Não se trata de ato discricionário, favor ou marketing político do Agente Público, é obrigação legal deste promover a alimentação escolar infantil, sob pena de incorrer em ato de improbidade administrativa (deixar de praticar ato de ofício, Art. 11, II).
A eventual suspensão ou interrupção das aulas presenciais pelo Poder Público de nenhum modo afasta ou diminui sua responsabilidade pelo fornecimento da alimentação escolar, diária e nutritiva. Todos os Diplomas legislativos citados aqui deixam claro que a alimentação escolar é obrigação relacionada fundamentalmente à assistência à saúde e ao combate às doenças e à desnutrição. A suspensão ou interrupção das aulas presenciais, a par de acertada medida de enfrentamento à Pandemia do Covid-19, não elide a fome. E, para muitas crianças brasileiras, a dor da fome diária é implacável, cruel, não descansa. A escola é a única e última esperança desses pequenos famintos. A “tia” da cantina, o caldeirão industrial pronto para ser servido, é símbolo de vida e esperança dessas crianças pobres.
Desnecessário dizer da crise de desemprego e precarização do trabalho que castiga impiedosamente o país. Seja por conta da Pandemia do Covid-19, seja por conta de equivocadas políticas públicas de distribuição de renda e de enfrentamento da pobreza, o número de famílias brasileiras sem condições de obter recursos necessários para viver aumenta a cada dia. Nossa população de rua é a prova dos noves dessa realidade.
A fome leva crianças e adolescentes a um caminho maldito e desgraçado não só da desnutrição e dos riscos de doenças. A fome talvez seja a maior porta de entrada, o diabólico chamariz, da exploração sexual infantil e do tráfico de drogas e armas de fogo. O cafetão e o traficante sabem bem disso, o desespero facilita o aliciamento à prostituição e à venda de drogas até o prematuro cadafalso.
Certamente a morte de nossas crianças por fome não pode ser tornar política pública de enfrentamento da pobreza e da marginalização. Deixar alunos carentes sem ter o que comer, privados da alimentação escolar diária, desconstrói o ideal de uma sociedade livre, justa e solidária. Em última análise, revoga o princípio da prioridade absoluta, ainda insculpido na Lei Maior (Art. 227): “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
A fome não pode esperar.
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