É fato notório que o Projeto de Lei 2630, conhecido pelo epíteto de PL das “Fake News” tem ensejado, como não poderia deixar de ser em um ambiente democrático e de liberdade, acesas polêmicas e debates a favor e contra.
Participam desses debates as mais variadas pessoas físicas e jurídicas (estas, obviamente, por meio de seus representantes) interessadas no tema, dentre elas o Google. Até aí nada demais, apenas a normalidade.
Acontece que surge notícia de que o Ministério Público Federal requisita informações do Google, com prazo de dez dias, para justificar sua atuação e detalhar todas as suas condutas. Sabidamente o Google é um dos atores mais importantes para a crítica e discussão qualificada do tema e vem apontando os perigos desse “projeto”.
Não há fundamento plausível para tal requisição e sua natureza é totalmente arbitrária, já demonstrando que mesmo sem a aprovação de uma legislação limitadora da liberdade de expressão e informação, vivemos um clima de verdadeiro terror de Estado nesse campo.
Qualquer empresa ou pessoa física indubitavelmente pode e até deve se manifestar livremente sobre qualquer “projeto” de lei. Frise-se que se trata de um “mero projeto de lei”, nem sequer de uma lei realmente vigente. Mas, mesmo as leis vigentes podem e devem ser submetidas à crítica social aberta por pessoas físicas e jurídicas. Nada deve obstar esse debate franco numa democracia que pretenda honrar esse nome, que não queira apenas ser uma banalização da palavra ou signo, um seu emprego impróprio, que não reflete o seu referente e nem mesmo o seu significado, mas algo que se aproxima do seu exato oposto (autoritarismo, abuso, violência em sentido amplo, opressão, ditadura, totalitarismo). Não fosse assim, como se poderia sustentar, em face da Lei de Drogas (artigos 33 e 28 da Lei 11.343/06), atos como a “Marcha da Maconha”? Seria o caso de impedir a discussão sobre legalização da “maconha” ou de outras drogas hoje indiscutivelmente ilícitas? Seria o caso de pressionar e coibir pessoas físicas e jurídicas que trouxessem esse tema e outros similares à discussão pública, determinando oferta de “informações” com prazo fatal? E reitere-se que aqui falamos de “lei posta” e não de um simples “projeto”. Se a “lei” pode ser discutida jurídica, social e academicamente, o que dizer de um mero “projeto” de lei? A lei não é intocável à crítica ou discussão sobre sua oportunidade, conveniência, validade, constitucionalidade etc. Um “projeto” como tal é naturalmente, até mesmo por definição, afeto ao debate e à crítica. Quanto mais debate, elucidação pública, crítica, discussão, manifestações houver, seja no Legislativo, seja na sociedade em geral, melhor. Ou estamos em um país que não promulga leis, mas as outorga de cima para baixo, sem chance de discussão?
Além da nítida abusividade dessa malfadada requisição ministerial, há um outro gravíssimo problema, qual seja, sua unilateralidade, sua visão monocular que norteia a atuação do Ministério Público de forma evidentemente enviesada, violando a imparcialidade. A grande pergunta, que não quer e não pode calar é a seguinte:
Por que, já que o Ministério Público Federal considera legítima a requisição feita ao Google, não a fez em igual medida aos diversos veículos midiáticos e empresas de informação que têm conferido grande apoio ao “projeto”? A diversos “influencers” que se manifestam favoravelmente ao “projeto” e atingem milhares e até milhões de seguidores ou usuários aleatórios da rede? Por que não foram requisitadas as exatas mesmas informações, “mutatis mutandis”, de grupos fortíssimos como UOL, Globo, Record entre muitos e muitos outros que defendem ferrenhamente o “projeto”? Qual o motivo da seletividade?
O embate de ideias não pode sofrer limitações, em especial limitações seletivas. Não se trata de gostar ou concordar com certas ideias, ter ou não as mesmas convicções dos outros, mas tão somente de garantir o ambiente de liberdade de sua expressão. Como nos lembra Azambuja:
“A luta de ideias é essencial ao regime [democrático], mas pressupõe honestidade intelectual e tolerância” (interpolação nossa).
Permitir que qualquer espécie de crença ou convicção pessoal ou até mesmo institucional tenha o condão de calar as opiniões contrárias ou de manejar instrumentos de pressão ou constrangimento é o passo exato para a tirania. Não nos parece que o Ministério Público tenha sido desenhado em nossa Constituição Cidadã para cumprir essa espécie de papel. Certamente não se trata de uma instituição projetada para pautar as discussões de forma discricionária e arbitrária, impondo barreiras e constrangimentos ao livre debate. É preciso ter em mente que não existem “instituições democráticas”. Existe a democracia e o ambiente democrático que só é possível se as instituições se prestam a salvaguardar essa conquista humana. Quando as instituições ferem de morte a democracia, seguem sendo instituições, mas perdem o qualificativo de “democráticas” O que dizer de um Ministério Público, Polícia, Judiciário de Cuba, da Coreia do Norte, da Venezuela etc.? Chamá-los de “instituições democráticas” é, no mínimo, impróprio).
Como encerramento, vem a calhar o aforismo nietzschiano:
“As convicções são inimigas da verdade mais perigosas que as mentiras”.
A reação virulenta à crítica ou discordância quanto à oportunidade, conveniência e legitimidade desse chamado PL das “Fake News” nos faz pensar até que ponto a preocupação é mesmo a de impedir a disseminação de mentiras ou a de ocultar e até ceifar verdades e opiniões dissonantes do “establishment”?
REFERÊNCIAS
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