A Lei nº 7.913 de 7 de dezembro de 1989 dispõe sobre a ação civil pública a ser proposta pelo Ministério Público para a apuração de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários.
Resultou de iniciativa do então Presidente da República José Sarney, sendo aprovada sem qualquer emenda tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal.
A Lei inovou na matéria. O seu advento se deu em momento em que o tema da proteção de interesses coletivos em sentido amplo estava infimamente desenvolvido, sendo promulgada apenas um ano após a Constituição Federal de 1988 e antes do advento do Código de Defesa do Consumidor, que desenvolveu de forma significativa a questão.
A Lei nº 7.913/89 é composta de cinco artigos, que não esgotam a matéria.
Em seu art. 1º, caput dispõe sobre a legitimidade (do Ministério Público) para a propositura da ação civil pública e em seus incisos tipifica algumas das condutas a serem consideradas pelo parquet.
O art. 2º traz o procedimento para o ressarcimento dos danos individualmente sofridos pelos investidores, estipulando prazo decadencial de dois anos para o exercício do direito.
Os artigos 3º, 4º e 5º trazem, respectivamente: a aplicação subsidiária da Lei nº 7.347/85, a vigência da lei a partir de sua publicação e a revogação das disposições em contrário.
A Lei nº 7.913/89 expressamente legitimou o Ministério Público a propor a ação civil pública para a apuração de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários. A Instituição Ministerial poderá agir de ofício ou por solicitação da Comissão de Valores Mobiliários – CVM.
Essa a legitimidade conferida ao Ministério Público é, de certa forma, controvertida na doutrina, onde, contudo, verifica-se a tendência em se considerar plenamente possível essa atuação.
O questionamento da legitimidade ministerial gira em torno da constitucionalidade do dispositivo.
De fato, em seu art. 129 a Constituição Federal dispõe:
“Art. 129 – São funções institucionais do Ministério Público:
(...)
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”;
Em vista do disposto, a controvérsia do tema passou a se justificar pelo fato da Constituição somente prever a proteção dos direitos ali elencados, ou outros interesses difusos e coletivos. Dessa forma, tratando-se o direito constante da Lei nº 7.913/89 de interesse eminentemente individual (ainda que homogêneo), não teria sido alcançado pela proteção do MP, de acordo com texto constitucional.
O mesmo dispositivo legal afirma ainda, em seu inciso IX, que cabe ao Ministério Público “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”, devendo ser lido juntamente com o art. 127 da Magna Carta que traz as finalidades daquele órgão, dispondo:
“Art. 127 – O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais homogêneos”.
Os dispositivos supra mencionados são utilizados por diversos autores, ora para negar a legitimidade do MP para a propositura da ação civil pública da Lei nº 7.913/89, ora para defender a atuação naquele caso.
Aqueles que negam a legitimidade do Ministério Público buscam o embasamento de sua afirmação em uma interpretação restritiva da Constituição Federal, de modo que os dispositivos somente atingiriam os interesses difusos e coletivos. Os adeptos dessa posição afirmam que o texto constitucional teria alcançado o sentido estrito de interesses difusos e coletivos, tal qual lhe definiu o Código de Defesa do Consumidor, excluindo o conceito de interesses individuais homogêneos. Além disso, restringem as conseqüências dos danos aos investidores no mercado de valores mobiliários ao âmbito privado e individual, negando a existência de qualquer outro interesse, de âmbito geral.
Para aqueles que defendem a legitimidade, os argumentos utilizados resumem-se aos seguintes termos:
1- a Constituição Federal foi promulgada antes do Código de Defesa do Consumidor, sendo que a terminologia “interesses individuais homogêneos” somente veio a surgir nesta ocasião, como desmembramentos do termo “interesse difuso e coletivo”. Assim, a expressão “interesse individual homogêneo” não poderia constar do texto constitucional, o que, contudo, não o exclui do conceito amplo de interesses coletivos ali presente. Dessa forma, os interesses individuais homogêneos também estariam contemplados no art. 129, III da CF, ainda que não expressamente.
2- Em que pese não constar expressamente do art. 129, III da Constituição Federal, é possível a atuação do MP em vista do que dispõem os art. 129, IX e art. 127 da Magna Carta. Ou seja, ao órgão ministerial é atribuído o exercício de qualquer função desde que compatível com suas finalidades. Deste modo, quando as disposições particulares e individuais passam a ter relevância social, passa a existir o chamado interesse social, que justifica a atuação do MP.
3 – A relevância social do tema leva à existência de interesse difuso, justificando a atuação ministerial com base no art. 129, III da CF.
Curioso é que, em que pese as teorias utilizarem-se dos mesmos dispositivos constitucionais, chegam a opiniões completamente opostas ou às mesmas conclusões, mas com premissas diversas.
Vejamos as teses aventadas e seus defensores:
Para o ilustre advogado Sérgio Bermudes[1], a Constituição Federal, em seu art. 129, III, restringiu a legitimidade do Ministério Público (dentre outras funções estranhas ao presente trabalho) à defesa de direitos difusos e coletivos. Assim, não poderia a lei infraconstitucional (dentre as quais, além da Lei 7.913/89, cita a Lei Complementar nº 75/93 – Lei orgânica do Ministério Público Federal) atribuir ao MP competência adicional que a Constituição não lhe deu.
Ou seja, de acordo com o referido autor, tratando-se o direito à reparação dos danos sofridos de interesses eminentemente individuais (ainda que homogêneos), teria sido subtraído da proteção do MP, por falta de previsão expressa na Constituição Federal. Ademais, a legitimidade também não teria respaldo nos artigos 127 e 129, IX posto que os referidos dispositivos afirmam ser da finalidade do MP apenas os interesses sociais e os individuais indisponíveis. Contudo, afirma não ser possível considerar os direitos tutelados pela Lei 7.913/89 como interesses sociais, já que constituem parte de uma relação jurídica individual e privada, além de serem tais direitos claramente disponíveis (patrimoniais).
Outros autores, contudo, defendem a constitucionalidade do dispositivo buscando subsídios na Teoria Geral do Processo, na legislação infraconstitucional e seu desenvolvimento histórico e, em uma interpretação sistemática, buscam respaldo na própria Constituição Federal
Nestes termos, em substanciosa tese de doutorado, o jurista Lionel Zaclis defende que a questão deve, primeiramente, ser examinada sob enfoque processual, afirmando que:
“O correto equacionamento do problema, no nosso modo de entender, não passa pela discussão da constitucionalidade ou da legalidade da legitimação do MP para a defesa de interesses individuais homogêneos propriamente ditos. O que sucede é que, verificando a ocorrência de uma conduta antijurídica que atinge uma expressiva quantidade de pessoas, se consubstancia um interesse difuso na obtenção da necessária tutela jurisdicional. A legitimação do MP existe em função desse interesse difuso e só por isso. Nesse momento, os titulares dos direitos lesados são indeterminados, sendo certo que a coletivização da tutela gera uma indivisibilidade quanto ao interesse na sua obtenção, características essas típicas dos interesses difusos”[2].
Para o referido jurista, o interesse precípuo é o de obter uma tutela de natureza indivisível, ou seja, é o interesse de que a tutela dos direitos se opere de forma coletiva, visando a maior racionalização e eficiência da máquina judiciária. Reconhece ao final, contudo, que o interesse de ordem processual não é suficiente para respaldar a legitimação do MP.
Dessa forma, conclui que a pertinência temática é de suma relevância para o estudo da matéria, de modo que o objeto da proteção deve ser tema relacionado à atuação ministerial. Essa relevância da pertinência temática, por sua vez, estaria consubstanciada em uma justaposição entre interesses individuais homogêneos (decorrente do ressarcimento pelos danos causados aos investidores) e interesses difusos (que dizem respeito à dignidade, saúde e segurança, proteção dos interesses econômicos, melhoria da qualidade de vida), sendo que estes últimos são aqueles que legitimam a atuação do Ministério Público para a Lei 7.913/89.
Hugo Nigro Mazzilli, por sua vez, entende ser cabível a atuação ministerial para a defesa de interesses individuais homogêneos sempre que a lesão verificada tiver uma expressão social. Caberá, portanto, a defesa dos interesses dos interesses individuais homogêneos “quando o interesse seja indisponível ou quando seja tal a abrangência ou dispersão de lesados que sua atuação de torne proveitosa para a sociedade, ou seja, quando a defesa do interesse tenha caráter social”[3].
Por fim, com linha de pensamento similar, o ministro Teori Albino Zavascki sustenta que a legitimação do Ministério Público, nesse caso, decorre da atribuição que lhe foi conferida pela Carta Magna para defender interesses sociais. Defende o autor:
“Nas três citadas hipóteses de legitimação, o legislador ordinário estabeleceu uma linha comum e característica: a atuação do MP objetiva sentença condenatória genérica, mas a liquidação e a execução específica serão promovidas pelo próprio titular do direito individual. Ou seja: os direitos dos substituídos são defendidos sempre globalmente, impessoal-mente, coletivamente. Obtido o provimento jurisdicional genérico, encerra-se a legitimação extraordinária. Por outro lado, nos três casos, a lesão é especialmente significativa, dado que, pela natureza dos bens atingidos e pela dimensão coletiva alcançada, houve também lesão a valores de especial relevância social, assim reconhecidos pelo próprio constituinte. Com efeito, é a Constituição que estabelece que a defesa dos consumidores é princípio fundamental da atividade econômica (art. 170, V), razão pela qual deve ser promovida, inclusive pelo Estado, em forma obrigatória (art. 5º, XXXII). Não se trata, obviamente, da proteção individual, pessoal, particular, deste ou daquele consumidor lesado, mas da proteção coletiva dos consumidores, considerados em sua dimensão comunitária e impessoal. O mesmo se diga em relação aos poupadores que investem seus recursos no mercado de valores mobiliários ou junto a instituições financeiras. Conquanto suas posições individuais e particulares possam não ter relevância social, o certo é que, quando considerados em sua projeção coletiva, passam a ter relevância ampliada, de resultado maior que a simples soma de posições individuais. É de interesse social a defesa desses direitos individuais, não pelo significado particular de cada um, mas pelo que a lesão deles, globalmente considerada, representa em relação ao adequado funcionamento do sistema financeiro, que é, segundo a própria Constituição, instrumento fundamental para promover o desenvolvimento equilibrado do País e servir aos interesses da coletividade (art. 192). Com isso se conclui que a legitimação do MP, para a defesa de direitos individuais dos consumidores e dos investidores no mercado financeiro, estabelecida nas Leis n. 6.024/74, 7.913/89 e n. 8.078/90, é perfeitamente compatível com a sua incumbência constitucional de defender os interesses sociais, imposta pelo art. 127 da Constituição. Em todos os casos, ressalte-se, a legitimação tem em mira apenas a obtenção de sentença condenatória genérica. A atuação do MP se dá em forma de substituição processual e é pautada pelo trato coletivo e impessoal dos direitos subjetivos lesados. E é nesta dimensão, e somente nela, que a defesa de tais direitos – divisíveis e disponíveis – pode ser promovida pelo MP sem ofensa à Constituição”[4].
Diante da redação proposta pelo art. 1º da Lei nº 7.913/89, cabe indagar se a legitimidade para a ação coletiva ali disposta é exclusiva do Ministério Público ou se aplicam aos demais co-legitimados para a propositura de ação pública em geral.
Paulo Fernando Campos Salles de Toledo[5] sustentou que embora fosse intuito da Lei atribuir exclusividade ao Ministério Público (já que, podendo, deixou de citar eventuais co-legitimados), haveria aplicação subsidiária do art. 5º da Lei 7.347/85, podendo, portanto, a ação ser proposta por outras pessoas ali legitimadas. Esse também foi o posicionamento adotado por Ricardo de Barros Leonel[6].
De fato, a prevalência deste posicionamento corresponderia melhor às situações vivenciadas na prática, já que não subtrairia a legitimação da Comissão de Valores Mobiliários – CVM (aliás, levando-se em consideração as origens das ações coletivas, que reportam à class action estadunidense, não poderia o legislador ter subtraído esta competência da Comissão de Valores Mobiliários[7], devendo, à luz do que ocorre com a Securities and Exchange Comission (SEC)[8], ter incluído a autarquia federal no rol de legitimados para esta ação).
Contudo, de modo diverso, a Lei nº 7.913/89 determinou a exclusividade do Ministério Público para tais ações. Isso porque, a Lei, ao determinar em seu art. 3º a aplicação subsidiária da Lei nº 7.347/85, institui que a Lei de Ação Civil Pública (e portando, a legitimação concorrente e disjuntiva ali prevista) somente incidirá nos casos em que a Lei nº 7.913/89 for omissa. Assim, tratando expressamente da matéria de legitimação, não parece ter a Lei nº 7.913/89 deixado espaço para aplicação subsidiária da Lei nº 7.347/85 neste aspecto.
No artigo 1º, a Lei nº 7.913/89 tipifica em seus incisos algumas condutas antijurídicas que ensejam a propositura da ação coletiva. De plano, verifica-se o caráter meramente exemplificativo do rol, utilizando-se o legislador da expressão “especialmente quando decorrerem de”, que antecede a enumeração legal.
Verifiquemos cada uma das condutas legalmente previstas:
No inciso I o legislador traz a figura da “operação fraudulenta, prática não eqüitativa, manipulação de preços ou criação de condições artificiais de procura, oferta ou preço de valores mobiliários”.
As condutas presentes neste inciso estão tipificadas pela Instrução nº 8 da CVM, de outubro de 79, que conceitua:
“a) condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários aquelas criadas em decorrência de negociações pelas quais seus participantes ou intermediários, por ação ou omissão dolosa provocarem, direta ou indiretamente, alterações no fluxo de ordens de compra ou venda de valores mobiliários;
b) manipulação de preços no mercado de valores mobiliários, a utilização de qualquer processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário, induzindo, terceiros à sua compra e venda;
c) operação fraudulenta no mercado de valores mobiliários, aquela em que se utilize ardil ou artifício destinado a induzir ou manter terceiros em erro, com a finalidade de se obter vantagem ilícita de natureza patrimonial para as partes na operação, para o intermediário ou para terceiros;
d) prática não eqüitativa no mercado de valores mobiliários, aquela de que resulte, direta ou indiretamente, efetiva ou potencialidade, um tratamento para qualquer das partes, em negociações com valores mobiliários, que a coloque em uma indevida posição de desequilíbrio ou desigualdade em face dos demais participantes da operação”.
No inciso II, é prevista a “compra ou venda de valores mobiliários, por parte dos administradores e acionistas controladores de companhia aberta, utilizando-se de informação relevante, ainda não divulgada para conhecimento do mercado, ou a mesma operação realizada por quem a detenha em razão de sua profissão ou função, ou por quem quer que a tenha obtido por intermédio dessas pessoas”. Refere-se ao denominado insider trading, que rompe com o equilíbrio do mercado, privilegiando pessoas que, por se encontrarem em situações especiais (dentro do âmbito dos controladores e dos envolvidos profissionalmente com a companhia), possuindo informações que deveriam ser públicas ou possuindo essas informações anteriormente, beneficiam-se em detrimento dos demais participantes do mercado.
O inciso III trata da “omissão de informação relevante por parte de quem estava obrigado a divulgá-la, bem como sua prestação de forma incompleta, falsa ou tendenciosa”. O dever de prestação de informações (disclosure) corretas, claras e ostensivas é de preocupação não só do legislador (que impõe o dever de informação e de lealdade aos administradores da companhia) como também da CVM que em inúmeras instruções[9] prevê o dever de informar por parte dos controladores e administradores da Companhia
Tais hipóteses constituem, exemplificadamente, a origem comum que poderá dar ensejo à reparação dos danos.
Contudo, a Lei nº 7.913/89 deve ser analisada em consonância com as demais normas do ordenamento, para a extração da mens legis e indicação da relevância jurídica da matéria, que justifique a atuação ministerial.
Para Ada Pellegrini Grinover[10], a relevância social que justifica a tutela coletiva do tema consubstancia-se na dispersão muito grande dos lesados e na insignificância da lesão se vislumbrada na perspectiva individual.
Antônio Cláudio da Costa Machado, no que é acompanhado por Rodolfo Camargo Mancuso[11], sustenta que a relevância social do tema foi dada pela própria lei, ao reconhecer o tema como passível de proteção pelo Ministério Público. Aduz o autor, ao comentar as Leis 7853/89 e 7913/89:
“Definindo, assim, o contexto jurídico da tutela (deficientes e participantes do mercado de capitais), passam tais interesses a receber da ordem jurídica a concreticidade necessária à sua defesa judicial. Antes da entrada em vigor dessas leis, portanto, não poderia o MP, sob qualquer pretexto, arvorar-se tutor de tais interesses, pelo simples fato de que antes de sua vigência eles não eram reconhecidos como interesses jurídica e jurisdicionalmente defensável.”
Paulo Fernando Campos Salles Toledo[12], em ensaio publicado logo em maio de 1991 já afirmava que
“o legislador admitiu que as relações estabelecidas no mercado de valores mobiliários transcendem os interesses imediatos e diretos dos investidores, das empresas e dos agentes de mercado. (...) Atingem, sempre com óbvias variações de grau, os demais investidores e agentes do mercado de capitais, a Bolsa de Valores ou mercado de balcão onde foram realizados, e, por conseqüência, até certo ponto, o mercado de capitais como um todo, repercutindo, finalmente, na própria Economia”.
Mas qual a espécie de interesses e direitos estaria a Lei nº 7.913/89 visando proteger?
Não se pode negar que o direito a reparação aos investidores de mercado de valores mobiliários é eminentemente individual, particular. Além disso, em que pese poderem advir do mesmo fato (condutas como as elencadas pelo art. 1º da Lei), são danos de ordem patrimonial e, assim, caracterizam-se por sua disponibilidade.
Contudo, em uma análise mais aprofundada do ordenamento jurídico, verificamos que o objeto da referida lei não se restringe a esta reparação. Na verdade, podemos afirmar que a ação de reparação de danos dos investidores constitui tão somente um meio para alcançar um bem maior, qual seja, a lisura no funcionamento do mercado de valores mobiliários, gerando maiores investimentos nas empresas privadas e, assim, maior geração de emprego e melhor desenvolvimento da economia nacional.
A crescente pulverização das ações representativas do capital social, não pode acarretar a impunidade de seus administradores quando, em razão de uma conduta ilícita, milhares de investidores sejam lesados, ainda que, se considerados individualmente, os danos sejam de pequena monta. É que, neste caso, é muito provável que não haja busca individual pela reparação dos danos, pois esta não se afiguraria compensatória, resultando, assim, na impunidade do indivíduo infrator.
A conduta dos infratores ofende diversos dispositivos referentes à proteção do mercado de capitais e atingem não só aqueles diretamente lesados por sua conduta, mas toda a confiabilidade do mercado de valores mobiliários.
Por conseguinte, não obstante sejam os interesses individuais homogêneos dos investidores dotados de disponibilidade, passam a ser dotados de interesse público e social quando o seu reconhecimento viabilize o desenvolvimento econômico e social do País.
Sobre esse aspecto, Marcelo Fortes Barbosa Filho, em comentários à Lei nº 10.303/01, afirma que:
“A utilização intensiva de capitais, num ambiente econômico que não apenas ressalta suas vantagens competitivas, mas também a propõe como exigência para o exercício de variadas atividades empresarias, que não podem mais ser, direta ou indiretamente, mantidas pelo Estado, ressalta a importância das sociedades por ações, eleitas como principais atores da atividade produtiva”. ( grifo nosso)
É no mercado de capitais[13] que operações de compra e venda de valores mobiliários emitidos por essas companhias abertas se desenvolvem, o que justifica a proteção da Lei nº 7.913/89.
Por isso, reveste-se de suma importância a proteção do acionista minoritário e o dever de informação por parte dos controladores e administradores da Companhia. O tema, aliás, é considerado de extrema relevância na seara do Direito Empresarial que busca, por meio de diversos institutos, o maior investimento no setor, impulsionado pela maior proteção e segurança daqueles que se propõe a participar do mercado de capitais.
Na verdade, não se verifica no Brasil um costume de capitalização da moeda com o seu investimento nas grandes companhias. A grande maioria do público brasileiro repulsa a ausência de garantias oferecidas para os investimentos junto ao mercado de capitais, considerando-o demasiadamente arriscado e, por isso, propício a perdas.
Em vista desta conduta, o legislador editou a Lei nº 10.303/2001 que eminentemente tem como escopo a maior proteção dos acionistas minoritários, por meio de inúmeros institutos criados e restabelecidos na Lei das Sociedades Anônimas.
O dever de lealdade e de informação, bem como a responsabilidade civil daqueles que administram as grandes companhias foram enfatizados na referida Lei, tudo objetivando a maior segurança do mercado de capitais e uma alteração na conduta dos brasileiros, com vistas a permitir que o capital, normalmente destinado a investimentos bancários que oferecem maiores estabilidades, seja aplicado na produção nacional, levando a uma melhora na qualidade de vida de todos.
A Constituição Federal de 1988 traz em seu art. 192 o comando de maior relevância no trato da matéria. É neste dispositivo que estão referidos alguns vetores fundamentais que deverão nortear o legislador infraconstitucional na elaboração das regras jurídicas que disciplinam o denominado Sistema Financeiro Nacional.
Segundo o Professor Roberto Quiroga Mosquera[14], são princípios informadores do Direito do Mercado Financeiro e de Mercado de Capitais:
1- Princípio da proteção da mobilização da poupança nacional. A função do mercado de capitais é a mobilização da poupança nacional, incentivando e intensificando o fluxo de capitais na sociedade. O capital não deve ficar parado na sociedade, ou seja, fica assegurado constitucionalmente o fluxo de capitais entre os detentores e tomadores de capital, com o intuito de promover o desenvolvimento equilibrado do país e atender às necessidades da coletividade.
2- Princípio da proteção da economia popular. “É o princípio por intermédio do qual fica assegurada a proteção da poupança, isto é, há proteção jurídica dos capitais que se dirigem ao mercado financeiro e de capitais para a realização das aplicações financeiras”[15]. Verifica-se quando a mobilização de capitais sofre interrupções, ou seja, o detentor e o tomador de recursos, após realizar o investimento respectivo, não consegue ver o retorno de seu capital e quando esse fato se prolifera, o mercado entra em colapso, em crise. Para que não venha a ruir por completo, necessária se faz a proteção da economia popular.
3- Princípio da proteção da estabilidade da entidade financeira. Visando a segurança da economia popular e atendendo as regras do mercado financeiro e de capitais, foram estipulados diversos requisitos e características para o exercício da atividade pelas entidades financeiras que, não se pode olvidar, funcionam como intermediárias de crédito ou como prestadoras de serviço que viabilizam a prestação do crédito.
4 - Princípio da proteção do sigilo bancário. Princípio constitucionalmente previsto (art. 5º, X e XIV) que pode significar além da proteção da privacidade, o requisito primordial para o sucesso do negócio.
5 - Proteção da transparência de informações. Princípio que se refere à prestação das informações públicas que são essenciais nas relações desenvolvidas no mercado financeiro e de capitais, assegurando a igualdade de informações públicas para os participantes envolvidos. Isso porque é imperioso que haja neutralidade de oportunidades nos negócios.
Esses princípios visam assegurar o funcionamento de um mercado de valores sólido e seguro, o que é de interesse público, já que a credibilidade gera maior fluxo de capital que, por sua vez, acarreta o maior desenvolvimento econômico e social do país. Deste modo, deve o bom funcionamento do mercado ser garantido não só pela Comissão de Valores Mobiliários, como pela Lei e, ainda, pela adoção de medidas judiciais necessárias[16].
A garantia desse funcionamento é, também, o escopo da Lei nº 7.913/89, que trouxe na exposição de motivos (nº 351, de 31 de outubro de 1988, do então Ministro de Estado da Fazenda, Maylson da Nóbrega) o seguinte teor:
“[...] 1. A crescente pulverização das participações acionárias no mercado de valores mobiliários possibilitou a criação de um tipo especial de consumidor – que é titular desses valores – minoritário na estrutura de poder da sociedade, inteiramente despreparado para enfrentar os sofisticados mecanismos de negociação em bolsa ou balcão. 2. Outrossim, os prejuízos causados a esses investidores por infrações cometidas nesse mercado, embora atinjam imediatamente uns poucos identificados, mediatamente dizem respeito a toda uma massa de indivíduos que, embora igualmente lesada, desconhece o direito que possuem de exigir o ressarcimento de seus prejuízos. 3. Basta atentar, exempli gratia, para o caso de utilização privilegiada, quando o comprador ou o vendedor de ações ignora a atuação de administradores ou de pessoas que constituem os insiders. 4. Em tais circunstâncias, apesar de os prejuízos do investidor isoladamente considerados serem de pequeno vulto, não justificando os custos de uma demanda judicial, quando somados atingem quantias expressivas, superiores mesmo ao proveito auferido pelos infratores, desde que considerada como nexo causal a própria ação ou omissão e não a relação jurídica resultante do pacto firmado entre compradores e vendedores. 5. Assim sendo, a defesa dos interesses pertinentes a toda uma classe de investidores constitui, por sua especial relevância, no que tange à normalização do mercado de valores mobiliários, dever do Estado proteger os interesses difusos do Elevado número de pequenos investidores que nele aplicam suas poupanças (sic) 6. Nessas condições, visando ao atingimento desse desiderato, tendo a honra de submeter à elevada consideração de Vossa Excelência o incluso anteprojeto de lei que “dispõe sobre a legitimação do Ministério Público para a propositura de ação de responsabilidade por danos causados ao investidor no mercado de valores mobiliários”. 7. A medida em foco, cumpre seja ressaltado, preenche lacuna da legislação existente, buscando atender aos reclamos que a chamada “sociedade de massas” vem constantemente exigindo do jurista e da doutrina, para criarem novos instrumentos de proteção aos interesses dos cidadãos, não adstritos às ações do modelo conservador que a legitimação para agir pressupõe um direito subjetivo do titular. 8. Finalmente, considerando-se a presença de interesses de toda uma comunidade, comete-se ao Ministério Público a capacidade de agir na defesa dos seu interesse, o que se coaduna com o mister que lhe é tradicionalmente imputado, na condição de “fiscal da lei”, qual seja em prol da sociedade como um todo pela preservação dos direitos metaindividuais [...](sic)[17].
Diante deste cenário, a proteção de interesses individuais homogêneos dos investidores poderá se revestir de relevância social quando a grande dispersão dos lesados puder levar a uma situação de impunidade dos agentes infratores. Assim, verifica-se que a Lei nº 7.913/89, antes de proteger o interesse individual de cada investidor prejudicado, busca defender um interesse de âmbito social que, por vezes, podem chegar e se confundir com interesses difusos. Bem por isso, legitimou expressamente o Ministério Público para esta defesa, já que é esta a instituição constitucionalmente voltada para a aplicação da lei e para a defesa dos interesses sociais.
Portanto, não há razão para se negar a utilização dos termos “interesses difusos e coletivos” em caráter amplo pela Constituição, já que a possibilidade de atuação do parquet estará diretamente ligada às suas atribuições institucionais, que contemplam expressamente a defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis.
Não se pode, assim, deixar que diferenças de aspecto terminológico deixem à míngua os anseios de uma sociedade. Até porque os conceitos de interesse social, interesse geral e interesse público se confundem na prática e, por vezes, em razão de sua abrangência, poderão também coincidir com os interesses difusos.
Deste modo, sendo a defesa dos interesses sociais de incumbência do Ministério Público e restando clara a existência de tais interesses quando houver grande dispersão dos investidores lesados, mais do que demonstrada está a validade da atuação ministerial nos termos da Lei nº 7.913/89.
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ZACLIS, Lionel. Proteção Judicial dos Investidores no Mercado de Valores Mobiliários (análise crítica da Lei 7913/89 e subsídios para uma visão unitária da ação coletiva). Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo .São Paulo: 2003.
ZAVASKI, Teori Albino. Defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos. in Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, vol. 329, pp. 147-160, jan/mar 1995
[1] BERMUDES, Sergio. A Legitimidade do Ministério Público e das Associações na Tutela do investidor de Fundos. In www.bovespa.com.br .18 jul 2006.
[2] op. cit. p. 80
[3] op. cit. p. 582
[4] Teori Albino Zavascki. Defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos, in Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, vol. 329, pp. 158, jan/mar 1995
[5] Cf. A Lei 7913, de 7 de dezembro de 1989. A tutela judicial do mercado de valores mobiliários. In Revista dos Tribunais, vol. 667, maio/91, p. 70/78.
[6] Apud Zaclis, op.cit., p. 143
[7] A Comissão de Valores Mobiliários é uma autarquia federal, criada pela Lei 6385/76 encarregada de normatizar as operações com valores mobiliários, autorizar sua emissão e negociação, bem como fiscalizar as sociedades anônimas abertas e os agentes que operam no mercado de capitais. Têm por finalidade: estimular a formação da poupança popular e a sua aplicação em valores mobiliários; promover a expansão e o funcionamento eficiente e regular dos mercados; proteger os titulares de valores mobiliários e os investidores; evitar ou coibir modalidades de fraude ou manipulação; assegurar o acesso do público a informações sobre os valores mobiliários negociados e as companhias que os tenham emitido;e assegurar a observância de práticas comerciais eqüitativas
[8] Nos Estados Unidos, a proteção judicial dos investidores no mercado de valores mobiliários (securities) tanto pode se revestir de caráter público (public law litigation), por iniciativa da Securities and Exchange Comission – SEC (que equivale à Comissão de Valores Mobiliários brasileira), como pode apresentar caráter eminentemente privado (private law litigation), mediante a utilização das class action. A SEC está autorizada a promover investigações e apurar as infrações cometidas no mercado de valores mobiliários, além de promover ações judiciais objetivando a aplicação das penalidades civis cabíveis, sendo tais ações concebidas principalmente para a obtenção de restituição dos frutos advindos da conduta ilegal e o ressarcimento das vítimas. Cf. Zaclis, op.cit. p. 43
[9] A instrução 358/2002 trata especificamente do tema. O assunto, porém, é tema presente em Instruções que tratam de assuntos diversos (como, por exemplo, as Instruções 319/99 e 361/2002), o que demonstra a preocupação da CVM com o tema.
[10] apud Mancuso. Ação Civil publica: em defesa do meio ambiente do patrimônio cultural e dos consumidores (Lei 7.347/85 e legislação complementar) , 8ª ed.,São Paulo:Revista dos Tribunais, 2002. p. 58
[11] op. cit. pp. 115-116
[12] Toledo, op. cit. p.71
[13] inexiste consenso doutrinário a respeito da diferenciação do conceito de mercado financeiro e mercado de capitais, sendo usados comumente apresentadas como integrantes de uma relação de gênero (mercado financeiro) e espécie (mercado de capitais). O conceito de mercado de capitais, por seu turno, costuma a ser equiparado a mercado de valores mobiliários, posicionamento este que é utilizado no presente trabalho
[14] Aspectos Atuais do Direito do Mercado Financeiro e de Capitais, Dialética, São Paulo. 1999.
[15] Quiroga, op. cit., p. 271.
[16] Cabe, no entanto, uma ressalva. O caso em análise não trata da proteção de hipossuficientes. O mercado de capitais continua sendo um ambiente de risco que deve sim ser assumido por aqueles que se propõe a participar dele. O que se visa com a Lei 7913/89 é que aqueles que comandam o destino da companhia e de seu capital, ou mesmo aqueles que simplesmente têm acesso a informações de ordem restrita, possam, em detrimento dos demais, tirar proveito de situações apontadas pelo ordenamento como irregulares. Ou seja, a proteção dos investidores advém da prática de condutas ilícitas, contrárias ao ordenamento jurídico, de modo que a perda inerente ao negócio e a diluição de capital que decorram de condutas escorreitas por parte dos administradores e controladores não poderão ser objeto de proteção judicial, seja pelo Ministério Público, seja diretamente por aquele que sofreu a perda.
[17] Cf. Zaclis, op. cit., nota, pp. 125-126
Procuradora Federal, professora universitária, especialista em direito público e interesses difusos e coletivos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MECELIS, Adriana. A legitimação para tutela jurisdicional coletiva dos investidores no mercado de valores mobiliários (Lei nº 7.913/89) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jun 2011, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24715/a-legitimacao-para-tutela-jurisdicional-coletiva-dos-investidores-no-mercado-de-valores-mobiliarios-lei-no-7-913-89. Acesso em: 23 dez 2024.
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