O primeiro artigo da Constituição Federal deixa clara a opção pelo Estado Democrático de Direito. No dizer de Silva (2001) a reunião dos princípios de Estado Democrático com os do Estado de Direito não se trata de simples reunião formal de seus requisitos, mas traduz-se em conceito novo, na medida em que incorpora componente revolucionário de transformação do status quo.
O Estado de Direito tem por características básicas a submissão do Estado ao Direito, a divisão dos poderes e a enunciação dos direitos e garantias fundamentais.
A Democracia se funda na ideia central da soberania popular, ou seja, a efetiva participação do povo na vontade política do Estado, diretamente ou indiretamente.
A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo, pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade (...)(SILVA, 2001, p. 12).
Para Mendes (2008) o Estado de Direito para ser democrático deve se empenhar em assegurar o exercício não somente dos direitos civis e políticos, mas também dos direitos econômicos, sociais e culturais, ou seja, é aquele modelo de Estado que incorpora e supera os modelos social e liberal que o antecederam e que propiciaram o seu surgimento na história.
Nesse contexto, fácil vislumbrar a estreita relação entre o princípio da igualdade e a democracia, pois a igualdade, sobretudo a material, é veiculada por meio da democracia, através da participação dos diferentes componentes da população na vontade política do Estado, componentes esses que são rivais – cada qual procura defender os próprios interesses – e cúmplices, já que eventualmente devem convergir seus interesses a fim de viabilizar os fins colimados pelo Estado.
Subsiste o velho brocardo jurídico de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de duas desigualdades, o que além de traduzir o princípio fundante da igualdade ou isonomia, traz à luz a ideia de fraternidade ou solidariedade, intimamente ligada à democracia plural, realidade brasileira.
Nos ensinamentos de Bobbio temos a ideia de que a igualdade como a equalização dos diferentes, com a superação das desigualdades e discriminações, deva ser interpretada como uma etapa do processo da civilização rumo ao progresso (BARBIERI, 2008, p. 40).
À despeito da Constituição Federal utilizar-se da expressão pluralismo político, em seu artigo primeiro, não se deve reduzir o alcance da expressão à preferências políticas e ideológicas, mas deve-se vislumbrar o direito fundamental à diferença a ser protagonizado em todas as esferas da convivência humana, ou seja, nas esferas política, ideológica, social, cultural, econômica, religiosa, entre outras.
No dizer de Mendes (2008, p. 156), falar em pluralismo político significa dizer que, respeitados os limites impostos pela Carta Magna, “o indivíduo é livre para se autodeterminar e levar a sua vida como bem lhe aprouver, imune a intromissões de terceiros”, sejam elas do Estado ou de particulares.
É possível afirmar que em uma sociedade plural o progresso social só será alcançado mediante a associação de culturas, respeitadas as diversidades. Estamos a falar de direito à diferença (alteridade), o qual se enquadra perfeitamente à situação indígena no Brasil.
A Constituição Federal de 1988, ao dedicar capítulo inteiro à temática indígena – e em outros artigos espalhados pelo texto constitucional – deixa clara a opção pelo respeito à alteridade ao apontar textualmente, em seu artigo 231 que aos índios se reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
Aponta Barbieri (2008), que a Constituição Federal rompe com tradição secular e reconhece aos índios direitos permanentes, não mais se falando em política integracionista, vez que os índios já não mais teriam de ser incorporados à comunhão nacional e forçosamente obrigados a assimilar nossa cultura, em detrimento da que lhes é própria.
A tônica de toda a legislação indigenista, desde o descobrimento, é a integração, dita de modo diverso em cada época e diploma legal. “Se tente a sua civilização para que gozem dos bens permanentes de uma sociedade pacífica e doce” (1808); “despertar-lhes o desejo do trato social” (1845); “até a sua incorporação à sociedade civilizada” (1928); integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (1973) (SOUZA FILHO, 2009, p. 106).
Imperioso reconhecer a mudança de paradigma no modelo estatal para com os índios. O conteúdo da relação Estado-índio fora revisto. O modelo outrora integracionista cedeu lugar ao preservacionista, o qual se assenta em parâmetros sobretudo identificados na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – incorporada ao ordenamento jurídico pátrio através do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004 – e plenamente compatíveis com o espírito fraternal estampado na Constituição Federal.
O novo texto constitucional, ao contrário, fiel ao espírito pluralista, libertário e democrático que o inspirou, não só assegurou aos índios os mesmos direitos conferidos aos demais brasileiros como também reconheceu a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições indígenas. Rejeitou, assim, a antiga posição etnocêntrica e adotou uma postura mais voltada à aceitação do relativismo cultural. O constituinte, talvez influenciado ainda pela ideia de estado-nação que durante muito tempo vigorou no direito internacional, evitou utilizar expressões como povos ou nações indígenas, preferindo mencionar grupos, comunidades ou organizações indígenas, ou ainda simplesmente índios. Ao nosso ver, esse receio é injustificável, diante da realidade de Estados multinacionais ou multiétnicos. Aliás, mais importante do que qualquer questão semântica é a natureza das determinações constitucionais. Sob esse ponto de vista, é inegável que a leitura correta da Constituição de 1988, especialmente à luz do direito indigenista ali incrustado, aponta claramente para a adoção de um Estado pluriétnico.
O impacto dessa guinada constitucional nas relações jurídicas envolvendo os índios no Brasil é enorme. A Constituição, adotando uma postura de respeito à diversidade cultural brasileira, assegura o direito de os índios serem e permanecerem diferentes, afastando a possibilidade de qualquer forma de discriminação, como decorrência direta da liberdade e da igualdade. É o princípio da proteção da identidade, já mencionado retro. Está constitucionalmente vedado qualquer entendimento jurídico que implique afirmar direita ou indiretamente a superioridade cultural da sociedade envolvente em relação aos grupos indígenas. Isso significa que o modo de ser e de viver dos índios deve ser respeitado e protegido, e não destruído, sendo-lhes garantido o pleno exercício dos seus direitos culturais. (ANJOS FILHO, 2009, p. 2.403-2.404).
Assim, estabelece-se que a consciência da identidade indígena ou tribal deve ser considerada como critério fundamental para o reconhecimento estatal da alteridade, competindo aos interessados o direito de escolher o seu próprio processo de desenvolvimento. Cabe ao Estado, com a participação das comunidades interessadas, a proteção dessa escolha e da integridade de seus membros, assim como assegurar o acesso dessas pessoas aos direitos e oportunidades que a legislação confere aos demais membros da população.
Dessa forma deve ser encarado o direito indígena pelo Estado Brasileiro: não como um privilégio escancarado em normas protecionistas, mas como proteção a sua capacidade de autodeterminação (social, econômica e cultural), conferindo-lhes grau de autonomia e capacidade semelhante aos demais membros da sociedade nacional, ficando-lhes a faculdade de exercer o direito comum a todos os cidadãos.
Diz-se que, após 5 de outubro de 1988, o índio passou a ter o direito de ser índio e assim permanecer.
REFERÊNCIAS
ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Arts. 231 e 232, in BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura. Comentários à Constituição Federal de 1988. São Paulo: Forense, 2009.
BARBIERI, SamiaRogesJordy. Os direitos constitucionais dos índios e o direito à diferença, face ao princípio da dignidade da pessoa humana. 1 ed. Coimbra: Almedina, 2008.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. Ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. O Renascer dos povos indígenas para o direito. 1. ed. (ano 1998). 6reimpr. Curitiba: Juruá, 2009.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Estado democrático de direito e a temática indígena: direito à diferença. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2012, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/33257/estado-democratico-de-direito-e-a-tematica-indigena-direito-a-diferenca. Acesso em: 23 dez 2024.
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