RESUMO: O presente artigo objetiva analisar o Neoconstitucionalismo e a aplicação de seus critérios na justificação da decisão da ADI 3.510, que ratifica a constitucionalidade das pesquisas terapêuticas com células-tronco embrionárias. Este estudo pretende relacionar as teorias que sustentam o Neoconstitucionalismo, bem como discutir e analisar questões pertinentes e, ao mesmo tempo polêmicas, como a construção de decisões judiciais de casos que apresentam conflito de normas constitucionais, como a constitucionalidade das pesquisas terapêuticas com células-tronco embrionárias. Para o desenvolvimento deste artigo foi utilizado o método de abordagem dedutivo. O presente estudo, em suas linhas iniciais designou-se a apresentar a evolução da hermenêutica jurídica, passando pela hermenêutica clássica, o Positivismo, até chegar à nova hermenêutica jurídica, o Neoconstitucionalismo. O presente artigo abordou também, a principialização do Direito e a colisão de princípios, os denominados hard cases (casos difíceis). Além disso, receberam destaque também os aspectos relevantes do processo de criação de decisões, quais sejam: o ativismo judicial e o novo papel do judiciário. Impende ressaltar ainda que, os princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade e proporcionalidade e da ponderação de valores e/ou interesses no processo de construção de decisões judiciais também foram abordados. A análise da participação plural da sociedade, através dos amicus curiae (amigos da corte), nas audiências públicas realizadas pelo Supremo Tribunal Federal para auxiliar o processo de construção de decisões e a decisão propriamente dita da ADI 3.510 finalizaram o referido estudo.
Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Hermenêutica. Biossegurança.
Para atender a diversidade social e o acelerado desenvolvimento científico uma mudança no processo de interpretação do Direito se fez necessária. Nos casos em que somente a aplicação literal do texto normativo não consegue, de forma integral, apresentar a solução mais adequada à questão em discussão, novos parâmetros de interpretação precisam ser utilizados. Mais especificamente, quando o caso em questão apresenta-se como um hard case.
Os hard cases são, por excelência, casos difíceis de serem apreciados, uma vez que possuem como característica intrínseca, um conflito de normas e/ou uma colisão de princípios.
O presente artigo tem como tema: “ADI 3.510: a constitucionalidade das pesquisas terapêuticas com células-tronco embrionárias à luz do Neoconstitucionalismo.”.
A nova hermenêutica jurídica constitucional possibilita a construção das decisões judiciais a partir de um novo enfoque. Esse modelo de interpretação sugere que a solução adequada para o caso concreto não se dê apenas pelo critério formal de aplicação das normas. Exige que as decisões sejam justificadas racionalmente.
Nesse sentido, este artigo pretende responder se a partir de uma leitura neoconstitucionalista do artigo 5º da Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), é possível a utilização das células-tronco embrionárias em pesquisas terapêuticas?
Com o avanço da sociedade, os operadores jurídicos se depararam com um acontecimento, de certa forma, até previsível no constitucionalismo contemporâneo: as colisões de normas constitucionais. Nestas situações, nem sempre a solução para os casos jurídicos pode ser extraída a partir do simples relato da norma. A partir de então, surge a necessidade de uma mudança no processo de interpretação do Direito. Acontecimento este que, por si só, já justifica a relevância do tema a ser estudado.
Atualmente, a matéria merece destaque por conta das novas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com base nessa nova hermenêutica constitucional. Justifica-se também pela discussão que iniciou ao ampliar o papel do juiz no processo de interpretação, onde o mesmo sai da condição apenas de intérprete e aplicador de conhecimento técnico acerca da Constituição, para a posição de participante do processo de criação do Direito. E, no mesmo sentido, pela profunda contribuição que traz à sociedade, que passa a ter cada vez mais garantida a participação plural nas decisões jurídicas.
A ADI 3.510 que ratifica a pesquisa terapêutica com células-tronco embrionárias é um exemplo de decisão construída a partir de novas técnicas de interpretação e com participação plural da sociedade representada pelos amicus curiae. A questão suscitada pela ADI 3.510 apresenta em seu contexto um conflito de normas e uma colisão de princípios. A decisão que justifica sua procedência precisou ser construída, tendo em vista a impossibilidade jurídica de solução a partir da simples aplicação de regras, por meio de subsunção e/ou da aplicação dos critérios tradicionais de solução de conflito de normas, quais sejam: hierárquico, temporal e especial.
A discussão sobre a evolução da hermenêutica jurídica suscita o questionamento acerca de sua origem e do contexto histórico em que está inserida. Dessa forma, a análise inicia-se com a abordagem da hermenêutica clássica (o Positivismo jurídico), em seus aspectos históricos e metodológicos. Na sequência, abordar-se-á também, face às relevantes transformações sociais, o surgimento da moderna hermenêutica jurídica constitucional (o Neoconstitucionalismo), ressaltando suas características e critérios para a aplicação do Direito e para a solução de conflitos.
2.1 HERMENÊUTICA CLÁSSICA: O POSITIVISMO JURÍDICO
Com a decadência do Feudalismo, no final da Idade Média, século XVI e, fundado ainda sob o Direito divino, surge o Estado Moderno. A partir do século XVII, a ênfase na natureza e na razão humana traz o conceito de universalidade do Direito.
O Absolutismo e o caráter teológico da lei são superados pelos ideais iluministas[1] proclamados pela burguesia da época. O Jusnaturalismo passa a ser a filosofia natural do Direito (BARROSO, 2011a).
Nesse período, o Direito não se apresenta de forma muito estruturada. O Estado não detém, de maneira eficaz, o poder de interferir na sociedade da época e intermediar as relações. E, em busca da clareza, unidade e simplificação, os iluministas defendem o ‘movimento de codificação do Direito, no século XVIII, cuja maior realização foi o Código Civil francês – o Código de Napoleão –, que entrou em vigor em 1804. ’ (BARROSO, 2004, p.321).
A hermenêutica clássica, o Positivismo, funda-se na ideia de que a ciência é o único conhecimento científico e, portanto objetivo. E que o Direito é ciência exata, pura. No Positivismo o Direito é tratado como um conjunto fechado de normas. E a lei é a fonte exclusiva do Direito. Importante destacar que normas são compostas por regras e princípios, mas, nesse período, os princípios eram desprovidos de força normativa.
Aqui também se insere o dogma da subsunção: a ideia de que o direito posto deve ser obedecido simplesmente porque é válido. A aplicação do Direito nesse período reduz-se ao silogismo, ou seja, não são admitidas quaisquer discussões filosóficas e valorativas. E, nesse sentido, a ética, a moral, a política e a sociologia se afastam do Direito.
O Positivismo tinha a pretensão de completude do ordenamento jurídico, o que significa dizer que os positivistas acreditavam que o ordenamento jurídico continha todas as soluções possíveis, e, portanto, não haveria espaço para lacunas.
Os positivistas objetivavam ainda a universalização do Direito, uma vez que, fundado sob a razão acreditavam servir para todos os povos.
Sua Constituição era uma carta política, formalista e fechada e, alheia à evolução da sociedade e aos interesses sociais. E os juízes, para o Positivismo, são apenas responsáveis por reproduzir integralmente as palavras codificadas, sem influência valorativa ou especulação filosófica. Não lhes cabia nesse período, qualquer papel criativo.
No Positivismo, o processo de interpretação jurídica e, consequentemente de construção de decisões baseia-se na reprodução do conteúdo que está codificado.
No entanto, nesse ínterim, mister se faz ressaltar alguns pontos do Positivismo Jurídico que precisam ser superados como: a ideia de que o direito posto deve ser obedecido simplesmente porque é válido e a noção de que a lei ordinária tem primazia como fonte de direito, além das teses da rígida separação entre direito e moral e da neutralidade do intérprete.
2.2 A NOVA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: O NEOCONSTITUCIONALISMO
Com a superação do Jusnaturalismo[2] e, logo após o apogeu do Positivismo[3], com as constituições escritas e com as codificações, um volume muito expressivo de questionamentos e reflexões acerca dos processos de interpretação do Direito, bem como de sua legitimidade, emergiram na sociedade.
Após a segunda guerra, a sociedade mais esclarecida já não admitia um ordenamento jurídico formalista e indiferente a valores como a ética e a moral.
Diante da necessidade de superação da objetividade do Direito e da neutralidade do intérprete e também do surgimento de fenômenos como a globalização e o progresso científico e tecnológico, a partir do século XXI, com uma proposta de transformação do ordenamento jurídico contemporâneo surge o Neoconstitucionalismo.
O Neoconstitucionalismo tem como base ideológica, o reconhecimento da força normativa da Constituição e de seus princípios, a ascensão dos valores e a importância dos direitos fundamentais na busca da construção de um ideal democrático.[4] Com ele, a discussão Ética volta ao Direito, assim como as ideias de justiça e legitimidade.
A centralidade da Constituição é uma das características mais expressivas do Neoconstitucionalismo, assim como, sua rigidez, seu caráter democrático e seu rol de direitos fundamentais, considerados imanentes ao indivíduo.
A Constituição neoconstitucionalista é uma carta com força normativa alicerçada em princípios, na qual as ideias de justiça e de realização de direitos fundamentais desempenham um papel central.
A velocidade das transformações pelas quais a sociedade passa e o acelerado progresso da ciência e da tecnologia fizeram com que operadores jurídicos e estudiosos do Direito identificassem que os métodos tradicionais de interpretação jurídica não são integralmente capazes de solucionar um conflito de normas constitucionais.
Os métodos clássicos de interpretação (gramatical, sistemático, teleológico) não se prestavam para concretização dos princípios.
A nova interpretação constitucional não se limita ao texto da norma, ao contrário, baseia-se na análise das cláusulas gerais.
O juiz neoconstitucionalista necessita de certa forma, participar do processo de criação do Direito, uma vez que na construção das decisões acaba por valorar os fatores explicitados pela realidade da situação, bem como os que estão subentendidos, para, deste modo, poder definir o sentido e o alcance da norma.
Nesse sentido, o intérprete não mais realiza simples operação de subsunção. Torna-se coparticipante do processo de criação do Direito. E, com base no caso concreto dá sentido às cláusulas abertas e realiza escolhas entre as possibilidades existentes.
Nesta acepção, a norma deve ser interpretada na direção da proteção e da valorização da dignidade da pessoa humana. E, quanto mais próxima da ética e da justiça, maior será o grau de legitimidade da decisão judicial.
Em síntese, o Neoconstitucionalismo surge com a necessidade de efetivar os direitos fundamentais, em especial, os sociais, os quais o constitucionalismo clássico não foi capaz de fazer.
No tocante à principialização do direito, os princípios, nas Constituições contemporâneas conquistaram o centro do ordenamento jurídico, superando as críticas de que não possuíam aplicabilidade imediata, tendo em vista sua abstração e caráter altamente axiológico.
A pretensão de correção, no Neoconstitucionalismo, é a fundamentação para a aplicabilidade dos princípios, que é aberto à interpretação devido ao seu alto grau de abstração.
Barcellos (apud BARROSO, 2004) defende que a aplicação equilibrada de regras e princípios configura o sistema jurídico ideal. Isso porque, as regras, devido à previsibilidade de sua conduta tem a função de alcance da segurança jurídica, enquanto os princípios, com sua alta flexibilidade buscam a realização da justiça do caso concreto.
Enquanto as regras são absolutas e operam no sistema pela validade, ou seja, são aplicadas ou não, mediante subsunção, sem gradações, os princípios são preenchíveis de argumentos, lógicas e valores, com gradação.
Os princípios buscam a realização da justiça do caso concreto. Ocorre que, como os princípios representam valores plurais da sociedade, na aplicação em um caso concreto pode-se evidenciar colisões, ou seja, princípios que se contrapõem.
Os casos que comportam mais de uma solução possível e razoável são denominados hard cases. Os hard cases são, por excelência, casos difíceis de serem apreciados, uma vez que apresentam em seu contexto uma colisão de normas ou princípios.
De acordo com o entendimento de Barroso (2006, p. 55), “O que ocorre comumente nos casos difíceis, porém, é que convivem, postulando aplicação, diversas premissas maiores igualmente válidas e de mesma hierarquia que, todavia, indicam soluções normativas diversas e muitas vezes contraditórias.”
Como uma situação não pode ser regida simultaneamente por duas disposições legais que se contrapõem, e, nesse contexto, os critérios tradicionais de solução de conflitos não são suficientes para resolver a colisão, há que se construir a solução com atuação subjetiva do intérprete.
Na ADI 3.510, os princípios constitucionais em colisão são, de um lado, os direitos à vida e à dignidade da pessoa humana e, do outro, os direitos à saúde e à livre expressão da atividade científica.
Ante a complexidade das questões sociais advindas da sociedade contemporânea identifica-se a impossibilidade da utilização do silogismo, no que concerne à aplicação da Constituição.
A moderna hermenêutica constitucional defende que, para a resolução das tensões entre princípios constitucionais, quando estão em jogo valores e interesses constitucionais conflitantes, torna-se necessária uma construção argumentativa do Direito.
Um dos fenômenos surgidos com o Neoconstitucionalismo é o ativismo judicial que está relacionado à participação cada vez maior do poder judiciário na realização da vontade constitucional, no que concerne à concretização de seus valores junto à sociedade.
Nesse sentido, busca o ativismo “extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem contudo invadir o campo da criação livre do Direito.” (BARROSO, 2012, p. 7).
O poder judiciário é o principal ator na nova hermenêutica. O juiz moderno compreende que a lei estabelece limites para sua atuação, o que não significa dizer que o juiz não pode utilizar de subjetividade para escolher, dentre as soluções possíveis para o caso, aquela que se afigure a mais justa.
Sobre esse ponto de vista, é de fato oportuno destacar que, a construção argumentativa das decisões judiciais perpassa também pela compreensão e aplicação dos princípios da interpretação jurídica.
A dignidade da pessoa humana, a razoabilidade e a ponderação de interesses são importantes princípios da interpretação jurídica.
A dignidade da pessoa humana está expressamente enunciada no artigo 1º, inciso III da Constituição, como fundamento da República.
Para Sarlet (2001, p.111), “o art. 1º, inc. III da Lei Fundamental brasileira não contém apenas uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva com status constitucional e, como tal, dotada de eficácia.”
Nesse sentido, O princípio da dignidade da pessoa humana apresenta-se como valor central de toda a ordem constitucional. É um princípio supremo que traz embutido em seu conteúdo o conceito de justiça social.
O referido princípio carrega grande carga valorativa e apresenta-se como cláusula aberta, no sentido de respaldar o surgimento de direitos novos. E é atingido quando da descaracterização da pessoa humana como sujeito de direitos.
3.2.2 RAZOABILIDADE OU PROPORCIONALIDADE
No que concerne ao princípio da Razoabilidade, a doutrina alemã o dividiu em 3 subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
O subprincípio da adequação preconiza que a medida deve ser apta para o atingimento dos fins que o inspiraram.
No tocante ao subprincípio da necessidade, este impõe que se adote sempre a medida menos gravosa possível.
E, no que se refere ao subprincípio da proporcionalidade, também denominado como mandado de ponderação extrai-se que o ônus imposto pela norma deve ser inferior ao benefício por ela engendrado.
Em resumo, Sarmento (2000, p. 90) indica que “para conformar-se ao princípio da proporcionalidade, uma norma jurídica deverá, a um só tempo, ser apta para os fins a que se destina, ser a menos gravosa possível para que se logrem tais fins e causar benefícios superiores às desvantagens que proporciona.”
3.2.3 PONDERAÇÃO DE VALORES E/OU INTERESSES
Dada a grande diversidade cultural e por consequência o pluralismo de ideias existentes na sociedade, a CRFB por muitas vezes abriga, através de seus princípios e valores, interesses diversos dos cidadãos. Por esse motivo, não são raros os casos em que princípios constitucionais acabam por entrar em conflito.
Para Rüfner (1976, p. 453 apud FARIAS, 2000, p.13), “Têm-se autêntica colisão apenas quando um direito individual afeta diretamente o âmbito de proteção de outro direito individual.”
A técnica de ponderação se ocupa dos conflitos de valores em um caso concreto. Ante a constatação de colisão entre princípios, torna-se necessária a ponderação de valores por parte do intérprete para que a norma mais adequada seja aplicada ao caso.
A ponderação também se presta a organizar o raciocínio e a argumentação quando, inevitavelmente, normas válidas terão sua aplicabilidade negada. No juízo de ponderação são atribuídos pesos específicos a cada princípio em conflito. E os valores são avaliados mediante análise do caso concreto.
Barcellos (2006, p.55, grifo do autor), define que “A ponderação pode ser descrita como uma técnica de decisão própria para casos difíceis (do inglês “hard cases”), em relação aos quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado.” Barroso (2004) suscita que, na técnica de ponderação de valores se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos.
Importante destacar que a ponderação deve sempre se orientar no sentido da promoção do princípio da dignidade da pessoa humana.
A propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade só se justifica diante da dúvida sobre a constitucionalidade do ato normativo. Nos casos difíceis, e, mais especificamente na ADI 3.510, ante a relevância social da matéria objeto desta ação direta e dos impactos que a mesma teria sobre toda a humanidade, tornou-se necessária a realização de audiência pública com o fito de ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade no assunto.
A autorização para realização de audiência pública para oitiva de depoimentos de pessoas com experiência e autoridade nas matérias consta da Emenda Regimental nº 29 (ER nº 29/2009) no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF).
A designação de audiência pública é competência exclusiva do relator e, desde que, diante de matérias que exijam esclarecimentos ou de insuficiência de informações nos autos.
A agregação de novos atores ao processo de construção de decisões objetiva a superação dos elementos de incerteza.
Devido à relevância social da matéria torna-se imprescindível a realização de audiência para extração de informações que contribuam para a construção da decisão.
Ariede (2011, p.14) define audiência pública como:
um instrumento processual adotado nos três poderes que compõem o sistema brasileiro – Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Trata-se de um evento no qual a sociedade pode se manifestar sobre determinado assunto antes do processo de tomada de decisão. De modo geral, é uma oportunidade para aqueles que tenham interesse em expressar suas opiniões com o intuito de contribuir para a reflexão sobre o tema.
No caso da ADI 3.510, o Supremo Tribunal Federal entendeu como necessário o diálogo com especialistas da medicina, biologia, religião, filosofia e ética, os quais foram divididos em blocos contrários e favoráveis, cada qual representado por 11 especialistas.
Desde a edição da Emenda Regimental nº 2 de 1985 pelo Supremo Tribunal Federal não se admitia a intervenção de terceiros na ação direta de inconstitucionalidade. Em outras palavras, a interpretação constitucional até pouco tempo era fechada, ou seja, restrita aos intérpretes jurídicos e às partes formais do processo.
No entanto, a Lei 9.868, de 10 novembro de 1999, em seu artigo 7º, parágrafo 2º autorizou a participação de autoridades, órgãos ou entidades no processo de controle de constitucionalidade, mais especificamente nas ações diretas de inconstitucionalidade, desde que fosse demonstrada a relevância da matéria sob análise.
Importa ressaltar que, apesar de o artigo 7º da Lei 9.868/99 no caput não permitir a intervenção de terceiros, o parágrafo 2º relaciona uma exceção à regra, ou seja, autoriza a presença de terceiros interessados para que se manifestem sobre o tema em análise desde que adequadamente representados.
4.2 OS AMICUS CURIAE
“Amicus curiae, amici curiae, amicus partis ou amicus causae, significam amigo da corte”, define Bulos (2008, p. 205, grifo do autor).
No Brasil a finalidade da presença do amicus curiae é a pluralização do debate constitucional, o que possibilita ao Tribunal ter ciência das peculiaridades ou repercussões do assunto em questão.
Justamente com fulcro no parágrafo 2º do art.7º da Lei 9.868/99 é que se identificou a presença dos amigos da corte no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº3.510, que ratifica a constitucionalidade do artigo 5º da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biossegurança) no tocante à constitucionalização das pesquisas científicas terapêuticas com células-tronco embrionárias para fins terapêuticos.
Dessa forma, delineia-se, portanto, que a participação do amicus curiae no processo de controle de constitucionalidade nas ações diretas de inconstitucionalidade contribui valorosamente para o debate constitucional.
É o relator do processo quem tem discricionariedade para admitir ou não a presença do amicus curiae, desde que, adequadamente representados.
Mesmo sendo considerada uma forma de assistência, a participação do amicus curiae pode acontecer em qualquer estágio do processo, desde que antes do julgamento da ação. Sua manifestação poderá ser apresentada de forma escrita ou através de sustentação oral.
Na audiência pública realizada pelo Supremo Tribunal Federal falaram pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, o Professor Ives Gandra da Silva Martins, pela Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos Humanos – CDH, o Dr. Oscar Vilhena e, pelo amicus curiae Movimento em prol da vida – MOVITAE e Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – ANIS, o Professor Luís Roberto Barroso. (BRASIL, 2008, p. 145).
4.3 A ANÁLISE DA DECISÃO
Após quase 3 (três) anos da propositura da ADI 3.510 no STF, que ocorreu Maio de 2005, foram proferidos os primeiros votos acerca da constitucionalidade das pesquisas terapêuticas com células-tronco embrionárias.
A referida ADI impugnava o art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005) sob a alegação de violação ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana.
O processo de votação iniciou com o voto do Ministro Carlos Ayres Britto (relator) que julgou a ação totalmente improcedente. Seu voto sugeriu que, não havia, na hipótese, violação ao direito à vida, nem tampouco ao princípio da dignidade da pessoa humana.
O relator utilizou como fundamentos de sua decisão o direito à saúde e à livre expressão da atividade científica. Para tanto, utilizou-se de um olhar neoconstitucionalista sobre o Direito, conciliando-o aos imperativos da ética humanista e da justiça material, a partir da perspectiva emancipatória dos direitos humanos.
A decisão colegiada foi precedida de explanações de renomados especialistas no tema e culminou com a improcedência da ação por 6 (seis) votos a 5 (cinco).
Os ministros Carlos Ayres Britto, Ellen Gracie, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Marco Aurélio e Celso de Mello votaram pela total improcedência da ADI sob a alegação de ausência de violação ao direito à vida, e ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Os ministros Eros Grau e Cezar Peluso votaram pela improcedência com ressalvas, estabelecendo termos aditivos ao artigo impugnado e sugerindo interpretação conforme à ADI.
Já os ministros Menezes Direito, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes julgaram parcialmente procedente a ADI sugerindo interpretação diversa da atual e também alterações no texto constitucional.
Os Ministros do STF, no processo de construção de suas decisões, utilizaram a técnica de ponderação de interesses balizada pelo princípio da razoabilidade. Ademais, valeram-se também dos argumentos técnicos trazidos pelos especialistas, o que contribuiu em muito para a legitimação da decisão.
A realização do presente artigo visou demonstrar a mudança no processo de interpretação jurídica, no que tange à construção das decisões judiciais. Isso porque, ante à diversidade social e o acelerado desenvolvimento científico, o surgimento de conflitos, cuja solução não está prevista no ordenamento jurídico pátrio, tendem a ser cada vez mais abundantes. Os conflitos principiológicos são um exemplo dessa nova realidade social.
A discussão sobre a evolução da hermenêutica jurídica suscita uma breve revisão histórica pontuando as principais características da hermenêutica clássica, o Positivismo jurídico e da hermenêutica moderna, o Neoconstitucionalismo.
O modelo hermenêutico positivista tem como característica a reprodução literal e estrita da lei, ou seja, do que está positivado. No Positivismo, o processo de interpretação jurídica e, consequentemente de construção de decisões baseia-se na reprodução do conteúdo que está codificado.
Os juízes, para o Positivismo, são apenas responsáveis por reproduzir integralmente as palavras codificadas, sem influência valorativa ou especulação filosófica. E a Constituição positivista não passava de uma carta política, fechada e alheia à evolução da sociedade e aos interesses sociais.
A velocidade das transformações pelas quais a sociedade passa e o acelerado progresso da ciência e da tecnologia fizeram com que operadores jurídicos e estudiosos do Direito identificassem que os métodos tradicionais de interpretação jurídica não são integralmente capazes de solucionar um conflito de normas constitucionais.
O modelo hermenêutico neoconstitucionalista surge para atender as novas demandas da sociedade contemporânea e objetiva reintroduzir no ordenamento as ideias de justiça e legitimidade.
O Neoconstitucionalismo tem como base ideológica, o reconhecimento da força normativa da Constituição e de seus princípios, a ascensão dos valores e a importância dos direitos fundamentais na busca da construção de um ideal democrático. A centralidade da Constituição é uma das características mais expressivas do Neoconstitucionalismo, assim como, sua rigidez, seu caráter democrático e seu rol de direitos fundamentais, considerados imanentes ao indivíduo.
O juiz neoconstitucionalista necessita, de certa forma, participar do processo de criação do Direito, uma vez que na construção das decisões acaba por valorar os fatores explicitados pela realidade da situação, bem como os que estão subentendidos, para, deste modo, poder definir o sentido e o alcance da norma.
Nas constituições contemporâneas os princípios conquistaram o centro do ordenamento. No entanto, por representarem valores plurais da sociedade, na aplicação em um caso concreto específico pode-se identificar princípios que se contrapõem.
A autorização para pesquisas terapêuticas com células tronco-embrionárias apresenta em seu contexto um conflito de normas e uma colisão de princípios. A complexidade deste hard case demonstra que a solução jurídica para o problema nem sempre se encontra no texto normativo. E, que o intérprete necessita, nestes casos, realizar escolhas entre as possíveis soluções, dando sentido e alcance às normas.
Nesse sentido, o intérprete, balizado pelos princípios da interpretação jurídica, quais sejam: a dignidade da pessoa humana, a razoabilidade ou proporcionalidade e a ponderação de valores e/ou interesses acaba por participar do processo de criação do Direito.
A dignidade da pessoa humana é o princípio supremo que traz embutido em seu conteúdo o conceito de justiça social. Mas, é por meio do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade e da técnica de ponderação de valores e/ou interesses que a norma mais adequada é aplicada ao caso concreto.
Impende ressaltar que, o Supremo Tribunal Federal, sobretudo a partir da promulgação da CRFB de 88, vem utilizando cada vez mais o princípio da proporcionalidade e a ponderação de interesses em seus julgados.
Em que pese a utilização da nova hermenêutica constitucional na construção das decisões prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal, nos casos difíceis, e, mais especificamente na ADI 3.510, ante a relevância social da matéria objeto desta ação direta e dos impactos que a mesma teria sobre toda a humanidade, tornou-se necessária também, a realização de audiência pública com o fito de ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade no assunto.
A presença dos amicus curiae na primeira audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal, possibilitou que a Corte tivesse acesso a elementos, informações e experiências específicas relacionadas ao tema em análise. Participação esta, considerada de extrema importância para a legitimidade da construção da decisão que foi proferida.
Por fim, a ação direta de inconstitucionalidade 3.510, ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra o art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005), objeto de estudo desse artigo foi julgada improcedente por maioria.
O referido artigo que autoriza e regula as pesquisas científicas com células-tronco embrionárias, obtidas de embriões humanos resultantes dos procedimentos de fertilização in vitro, desde que, inviáveis ou congelados há mais de três anos teve sua constitucionalidade ratificada.
Nesse liame, diante de uma colisão de princípios, no processo de construção da decisão da ADI 3.510 se estabeleceu uma leitura neoconstitucionalista do caso concreto.
Isso porque, a nova hermenêutica jurídica (o Neoconstitucionalismo), sugere que a solução ideal para o caso em análise não se dê apenas pelo critério formal de aplicação das normas. À luz do modelo de interpretação neoconstitucionalista, as decisões necessitam ser justificadas racionalmente.
O Neoconstitucionalismo trabalha com a técnica de ponderação de valores e/ou interesses e, utiliza-se de visão principiológica em seus julgados. O juiz neoconstitucionalista participa do processo de criação do direito, não ficando apenas preso à letra da lei.
O processo de votação iniciou com o voto do Ministro Carlos Ayres Britto (relator) que julgou a ação totalmente improcedente. Seu voto sugeriu que, não havia, na hipótese, violação ao direito à vida, nem tampouco ao princípio da dignidade da pessoa humana. O relator utilizou como fundamentos de sua decisão o direito à saúde e à livre expressão da atividade científica. Na sequência os demais Ministros proferiram seus votos, bem como a justificação de seus motivos.
Os Ministros do Supremo Tribunal Federal, no processo de construção da decisão judicial da ADI 3.510, que ratifica a constitucionalidade das pesquisas terapêuticas com células-tronco embrionárias, utilizaram a técnica de ponderação de interesses, onde todas as argumentações válidas foram consideradas, balizada pelo princípio da razoabilidade e com a participação plural da sociedade, representada pelos amicus curiae.
Sendo assim, é injustificável, portanto, a impugnação do bloco 5º da Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança) sob o argumento de violação ao direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa humana. Descabida, dessa forma, a procedência da referida ADI.
Portanto, diante da ADI 3.510, este hard case por excelência, e da respeitável decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu sua improcedência, conclui-se que, à luz do Neoconstitucionalismo, a utilização das células-tronco embrionárias em pesquisa terapêutica é possível.
E, uma vez declarada a constitucionalidade de uma norma pelo Supremo Tribunal, ficam os órgãos do Poder Judiciário obrigados a seguir essa orientação. E, embora a decisão prolatada não tenha sido unânime, é válida e deve ter sua aplicabilidade respeitada.
REFERÊNCIAS
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[1] “Iluminismo designa a Revolução intelectual que se operou na Europa, especialmente na França, no século XVIII. Para os iluministas, somente através da razão o homem poderia alcançar o conhecimento, a convivência harmoniosa em sociedade, a liberdade individual e a felicidade.” (BARROSO, 2004, p. 321).
[2] O Jusnaturalismo, desenvolvido a partir do século XVI aproximou a lei da razão e defendeu a filosofia natural do Direito com a crença em princípios universalmente válidos. (BARROSO, 2011b).
[3] O Positivismo jurídico alcançou seu apogeu com as constituições escritas e com as codificações, mas foi considerado metafísico e anticientífico. (BARROSO, 2011b).
[4] O modelo de Neoconstitucionalismo mais radical é o adotado por autores espanhóis como Alfonso Figueroa e Sastre Ariza. Os constitucionalistas italianos, embora não neguem a teoria do Neoconstitucionalismo, procuram limitar seu campo de incidência. Os doutrinadores alemães receberam com grande entusiasmo o Neoconstitucionalismo, já os franceses estão empenhados em rebatê-lo. No Brasil, Luís Roberto Barroso é um dos pioneiros na defesa da teoria que se opõe ao constitucionalismo positivista. Vale ressaltar que o título de neoconstitucionalista pode ser enquadrado também à proposta defendida por Ronald Dworkin e por Robert Alexy. (MOREIRA, 2008).
Jornalista, advogada graduada pelo Centro Universitário Estácio de Sá SC e pós graduada em Direito Tributário pela Faculdade Anhanguera - Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LINHARES, Andresa Mariana da Silva. ADI 3.510: a constitucionalidade das pesquisas terapêuticas com células-tronco embrionárias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 maio 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35063/adi-3-510-a-constitucionalidade-das-pesquisas-terapeuticas-com-celulas-tronco-embrionarias. Acesso em: 23 dez 2024.
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