O dogma da nulidade da lei inconstitucional pertence à tradição do Direito brasileiro, tendo sido sustentada por praticamente todos os nossos importantes constitucionalistas[1].
Sem embargo, com notória influência do direito estrangeiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) – a quem foi confiado a guarda suprema da Constituição - tem-se munido de diferentes variantes de declaração de nulidade: declaração de nulidade total, parcial e parcial sem redução de texto. Soma-se ainda às citadas técnicas a interpretação conforme à Constituição, que atua, a um só tempo, como técnica de hermenêutica e instrumento de controle de constitucionalidade.
A interpretação conforme à Constituição é muito bem definida pelo constitucionalista Paulo Bonavides, nos seguintes termos:
“Uma norma pode admitir várias interpretações. Destas, algumas conduzem ao reconhecimento da inconstitucionalidade, outras, porém, consentem tomá-la por compatível com a Constituição. O intérprete, adotando o método ora proposto [a interpretação conforme a constituição], há de inclinar-se por esta última saída ou via de solução. A norma, interpretada “conforme a Constituição”, será portanto considerada constitucional”[2].
Como se denota, trata-se, sobretudo, de um método que visa à seleção da interpretação que torne uma norma compatível com a Constituição a qual deve reverência, preservando, assim, a unidade do ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade da lei[3].
Já a técnica da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto é proficientemente apresentada por Celso Ribeiro Bastos do seguinte modo:
“Trata-se de uma técnica de interpretação constitucional - que tem sua origem na prática da Corte Constitucional alemã - utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, na qual se declara a inconstitucionalidade parcial da norma sem reduzir o seu texto, ou seja, sem alterar a expressão literal da lei. Normalmente, ela é empregada quando a norma é redigida em linguagem ampla e que abrange várias hipóteses, sendo uma delas inconstitucional. Assim, a lei continua tendo vigência - não se altera a sua expressão literal –, mas o Supremo Tribunal Federal deixa consignado o trecho da norma que é inconstitucional. É dizer, uma das variantes da lei é inconstitucional. Portanto, faz-se possível afirmar que essa técnica de interpretação ocorre, quando – pela redação do texto na qual se inclui a parte da norma que é atacada como inconstitucional – não é possível suprimir dele qualquer expressão para alcançar a parte inconstitucional. Impõe-se, então, a suspensão da eficácia parcial do texto impugnado sem a redução de sua expressão literal”[4].
Aqui, inversamente ao que ocorre na interpretação conforme, o tribunal seleciona as variantes interpretativas da norma tidas por inconstitucionais, mantendo incólume o texto normativo.
Como se observa, as duas técnicas são bastante semelhantes. No âmbito da própria Suprema Corte, há julgados em que se equipara a interpretação conforme à declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto[5], chegando o tribunal por vezes a se referir a uma “interpretação conforme a Constituição sem redução de texto”[6]. Entretanto, em outros mais recentes se denota a tendência de bem delimitar as duas técnicas[7].
Com efeito, é necessário delimitar suas sutis diferenças. Uma primeira que chama atenção diz respeito ao próprio âmbito de atuação, assim definida por Virgílio Afonso da Silva:
A diferença primordial entre interpretação conforme a Constituição e declaração de inconstitucionalidade parcial sem modificação do texto consiste no fato de que, a primeira, ao pretender dar um significado ao texto legal que seja compatível com a constituição, localiza-se no âmbito da interpretação da lei, enquanto a nulidade parcial sem modificação de texto localiza-se no âmbito da aplicação, pois pretende excluir alguns casos específicos de aplicação da lei[8]
Por outro lado, pode-se observar que enquanto a técnica da interpretação conforme se aplica tanto ao controle de constitucionalidade abstrato quanto ao concreto, a de declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto é inerente ao controle abstrato e concentrado, cujos efeitos se estendem erga omnes. Isso porque no Brasil a competência para declaração de nulidade de uma lei, no todo ou em parte, é exclusiva do Supremo Tribunal Federal, podendo os demais juízes apenas deixar de aplicar a norma tida por inconstitucional.[9]
Outrossim, como adverte Gilmar Mendes, ao fixar como constitucional determinada interpretação e excluir as demais, “o tribunal não declara – até porque seria materialmente impossível fazê-lo – a inconstitucionalidade de todas as possíveis interpretações de certo texto normativo”. Ainda, sobre a diferença entre as duas técnicas, assim conclui o citado jurista:
Ainda que se não possa negar a semelhança dessas duas categorias e a proximidade do resultado prático de sua utilização, é certo que, enquanto na interpretação conforme à Constituição se tem, dogmaticamente, a declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial, constata-se, na declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinadas hipóteses de aplicação do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. Assim, se se pretende realçar que determinada aplicação do texto normativo é inconstitucional, dispõe o tribunal da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, que além de mostrar-se tecnicamente adequada para essas situações, tem a virtude de ser dotada de maior clareza e segurança jurídica, expressas na parte dispositiva da decisão (a lei X é inconstitucional se aplicável a tal hipótese; a lei Y é inconstitucional se autorizativa da cobrança de tributo em determinado exercício financeiro).
A questão, como bem definida pelo constitucionalista, depende do realce que se quer dar – se à inconstitucionalidade de uma interpretação correntemente adotada nos tribunais e juízos (declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto), ou à validade da norma, desde que concebida uma interpretação viável e condizente com o texto constitucional (interpretação conforme à Constituição).
No mesmo sentido, porém sob outra vertente, Lênio Streck chama atenção para que, ao preferir a interpretação conforme à declaração de inconstitucionalidade, estaria o tribunal produzindo uma sentença meramente interpretativa ao invés de declaratória, subtraindo, portanto, o efeito vinculante[10].
Dessarte, pode-se concluir que se as duas técnicas assemelham-se em muitos pontos, diferenciam-se tanto na competência como na metodologia e até mesmo nos efeitos alcançados.
BIBLIOGRAFIA
BASTOS, Celso Ribeiro Hermenêutica e Interpretação Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação conforme à constituição: entre a trivialidade e a centralização judicial. Revista Direito GV, v. 2, n. 01 – 2010, jan-jun. 2006.
[1] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1.255
[2] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 474
[3] Vale ressaltar aqui que a interpretação conforme deve encontrar abrigo na expressão literal e no significado do texto normativo.
[4] BASTOS, Celso Ribeiro Hermenêutica e Interpretação Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 175.
[5] Nesse sentido, cf. ADI-MC 491, Rel. Moreira Alves, RTJ 137 (1)/90 e ADI 319, Rel. Moreira Alves, Dj de 30.04.1993.
[6] Nesse sentido, cf. RTJ 181/54.
[7] Cf ADI-MC 491, Rel Moreira Alves, RTJ, 137 (1)/90; ADI 939, Rel Sydney Sanches, DJ de 18.03.1994, p. 5165-5166; ADI 1.045, Rel Marco Aurélio, Dj de 6.5.1994, p. 10485.
[8] SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação conforme à constituição: entre a trivialidade e a centralização judicial. Revista Direito GV, v. 2, n. 01 – 2010, jan-jun. 2006, p. 201.
[9] SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação conforme à constituição: entre a trivialidade e a centralização judicial. p. 201.
[10] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.627.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da Uniao. Pos-graduado em Direito Publico pela Anhanguera/UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAZ, Samuel Mota de Aquino. Inconstitucionalidade parcial sem redução de texto x interpretação conforme à Constituição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 fev 2014, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38487/inconstitucionalidade-parcial-sem-reducao-de-texto-x-interpretacao-conforme-a-constituicao. Acesso em: 24 nov 2024.
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