RESUMO: O presente trabalho pretende mostrar que os Estados, Distrito Federal e Municípios, a pretexto de legislar sobre outras matérias, vêm invadindo a competência privativa da União em legislar sobre trânsito, estabelecida pelo artigo 22, inciso XI, da Constituição Federal.
PALAVRAS-CHAVE: competência privativa, trânsito, União, invasão.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que é da competência privativa da União legislar sobre as regras de trânsito e transporte, conforme se observa pelo disposto no seu artigo 22, inciso XI, abaixo transcrito:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
XI - trânsito e transporte;
(...)
Em síntese, isto significa que, a princípio, os Estados e os Municípios não podem editar normas sobre trânsito e transporte. Sobre o assunto, é interessante transcrever um trecho da obra de Alexandre de Moraes[1]:
A Constituição Federal de 1988, alterando a disciplina anterior (CF/69, art. 8º, XVII, n, c/c o seu parágrafo único – competência concorrente União/Estados), previu a competência privativa da União para legislar sobre as regras de trânsito e transporte (CF, art. 22, XI). Essa alteração constitucional fez com que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pronunciando-se sobre o preceito inscrito no art. 22, XI, da Constituição Federal, declarasse competir privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte, proibindo-se, via de consequência, aos Estados-membros, a possibilidade de editar normas peculiares a essa mesma matéria, por não se encontrar tal hipótese contemplada no rol exaustivo das competências comuns (CF, art. 23) e concorrentes (CF, art. 24) atribuídas.
Assim, por exemplo, será inconstitucional a lei estadual, por invasão da competência legislativa da União (CF, art. 22, XI), que habilita menores de dezoito anos à condução de veículos automotores.
Atualmente, portanto, a única possibilidade de o Estado-membro legislar sobre questões relativas a trânsito e transporte, será mediante delegação da própria União, por meio de lei complementar, de um ponto específico da citada matéria.
Observa-se, portanto, que a Carta Magna determinou que a normatização sobre as regras de trânsito e transporte deve ser de âmbito nacional. Com efeito, o caráter nacional das leis de trânsito não merece ser desprezado, sobretudo porque não seria benéfico ao trânsito nacional que os condutores dos veículos automotores se submetessem às mais diversas normas de circulação, a depender do Estado ou do Município que transitassem. Ou seja, é salutar que sua regulamentação seja única em todo o território nacional, pois claramente se trata de uma matéria na qual prepondera o interesse geral, tanto é que diversas normas de circulação são uniformes em todo o planeta.
Por outro lado, a partir de uma interpretação sistemática da Constituição Federal, infere-se que é dos Estados e do Distrito Federal a competência residual ou remanescente para legislar sobre segurança pública (arts. 144 c/c art. 25 da CF/88). O Supremo Tribunal Federal assim entendeu, ao julgar a ADI nº 3.112, em 02 de maio de 2001, de relatoria do Excelentíssimo Ministro Ricardo Lewandowski. Vejamos:
II – invasão de competência residual dos Estados para legislar sobre segurança pública inocorrente, pois cabe à União legislar sobre matérias de predominante interesse geral.
(...)
De fato, a competência atribuída aos Estados em matéria de segurança pública não pode sobrepor-se ao interesse mais amplo da União (...)
Na realidade, como ficou decidido no mencionado acórdão, não havendo um interesse mais amplo da União em normatizar determinada conduta, cabe ao Estado, com fulcro no artigo 144 c/c artigo 25 da Constituição Federal, legislar sobre segurança pública.
Nesse contexto, os Estados e o Distrito Federal, invocando essa competência remanescente, vêm publicando diversas leis veiculando matéria de trânsito e transporte, em total invasão à competência privativa da União prevista no artigo 22, inciso XI, da Constituição Federal. Vê-se, por exemplo, a Lei n° 1.925/98, do Distrito Federal, que estabeleceu a obrigatoriedade de acionamento da iluminação interna dos veículos fechados, quando estes se aproximassem de blitz ou barreira policial, declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em 4 de março de 2009, por meio da ADI nº 3.625.
Com efeito, a exigência de os condutores dos veículos fechados ativarem a iluminação interna do veículo quando se aproximem de blitz ou barreira policial é notadamente uma regra de conduta no trânsito. Muito embora indiretamente possa dispor sobre segurança pública, parece não haver dúvidas de que diretamente dispõe sobre trânsito.
Impende observar como a Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro) define trânsito, em seu artigo 1º, § 1º:
§ 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.
Portanto, disciplinar determinado comportamento do condutor, como acender a luz interna do seu veículo, ao se aproximar de uma barreira policial, nada mais é do que instituir uma norma de conduta no trânsito, o que viola a competência privativa da União de que trata o artigo 22, XI da Constituição Federal. Foi assim que entendeu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do mérito da ADI nº 3.625.
Cumpre relatar, a propósito, uma situação que vem ocorrendo nos Municípios: a publicação de leis que facultam o uso do capacete de segurança aos motociclistas. O Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, por exemplo, já declarou inconstitucional, em 10 de novembro de 2008, a Lei Municipal do Município de Redenção nº 404/2001 (processo n° 200630010227), que previa a não obrigatoriedade do uso de capacete para os motociclistas, em razão da grande quantidade de crimes praticados por motociclistas utilizando o capacete, o que dificultava a identificação do criminoso.
Nesse caso, a lei municipal foi declarada inconstitucional em face da Constituição Estadual do Pará, que contém dispositivos normativos reproduzidos da Constituição Federal.
Em outro caso de invasão da competência privativa da União para legislar sobre trânsito, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar em 1º de agosto de 2002, a ADI nº 1.704, declarou inconstitucional a Lei nº 6.908, de 1997, do Estado do Mato Grosso, que autorizava o uso de película de filme solar nos vidros dos veículos. Conforme o STF, a questão diz respeito a trânsito, razão pela qual o Estado do Mato Grosso não poderia editar a aludida lei.
Também foi declarada inconstitucional em função da invasão da competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte, a Lei nº 3.918, de 2006, do Distrito Federal, que dispunha sobre a instalação de aparelho, equipamento ou qualquer outro meio tecnológico de controle de velocidade de veículos automotores nas vias do Distrito Federal.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI nº 3.897, entendeu que a lei local estaria eivada de inconstitucionalidade formal, uma vez que o Distrito Federal não poderia legislar sobre matéria relativa a trânsito e transporte, visto que tal assunto estaria sujeito à competência legislativa privativa da União.
Nesse mesmo sentido, convém transcrever trecho da ementa de dois acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, pelos quais a Corte Constitucional julgou inconstitucionais leis emitidas pelos Estados com o argumento de regulamentar o exercício ou a criação de profissão, por invadir a competência privativa da União em legislar sobre trânsito. Vejamos:
Competência legislativa. Direito do Trabalho. Profissão de motoboy. Regulamentação. Inadmissibilidade. (...) Competências exclusivas da União. (...) É inconstitucional a lei distrital ou estadual que disponha sobre condições do exercício ou criação de profissão, sobretudo quando esta diga à segurança de trânsito.” (ADI 3.610, Rel. Min.Cezar Peluso, julgamento em 1º-8-2011, Plenário, DJE de 22-9-2011.) Vide: ADI 3.679, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 18-6-2007, Plenário, DJ de 3-8-2007.
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei distrital 3.787, de 2-2-2006, que cria, no âmbito do Distrito Federal, o sistema de moto-service – transporte remunerado de passageiros com uso de motocicletas: inconstitucionalidade declarada por usurpação da competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte (CF, art. 22, XI). Precedentes: ADI 2.606, Plenário, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 7-2-2003; ADI 3.136, 1º-8-2006, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; ADI 3.135, 1º-8-2006, Rel. Min. Gilmar Mendes." (ADI 3.679, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 18-6-2007, Plenário, DJ de 3-8-2007. Vide: ADI 3.610, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 1º-8-2011, Plenário, DJE de 22-9-2011.
Depreende-se, assim, que qualquer norma que estabeleça regras de conduta no trânsito não se encontra no âmbito de disposição dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, uma vez que é reservada à competência legislativa da União, a fim de que haja disciplina uniforme em todo o território nacional. De fato, o Constituinte de 1988 já estabeleceu expressamente no texto da Carta Magna que, em matéria de trânsito e transporte, prevalece o interesse nacional em detrimento de interesses locais.
Nesse contexto, convém observar o entendimento da professora Fernanda Dias Menezes de Almeida sobre o assunto[2]:
Pois bem, em hipóteses do gênero parece-nos que devam prevalecer as determinações emanadas do titular da competência legislativa privativa.
Como já frisamos em outro tópico, quando o constituinte, não obstante conscientizado da importância de uma maior descentralização e colaboração entre os entes federativos, defere privativamente a um deles competência para normatizar determinada matéria, é porque haverá razões suficientes para a concentração da competência.
Saliente-se, de toda sorte, que, de acordo com o que estabelece o parágrafo único do art. 22 da Constituição Federal, pode a União, através de lei complementar, autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas de trânsito e transporte. Portanto, se expressamente autorizados, poderão os Estados legislar sobre questões específicas dessas matérias.
Contudo, até o momento, a União não editou lei complementar alguma autorizando os Estados a legislar sobre questões específicas de trânsito e transporte, o que afasta de plano toda e qualquer alegação no sentido de que, nos casos apresentados, os entes federados estariam legislando com fulcro no aludido dispositivo constitucional.
Utilizando como exemplo a regulamentação disposta na Lei n° 1.925/98, do Distrito Federal, caso a União já tivesse editado a lei complementar prevista no parágrafo único do artigo 22 da Constituição Federal e tendo essa lei, por exemplo, fixado regras de preponderância de interesses, seria de se examinar se a normatização ali veiculada, qual seja, a obrigatoriedade de acionamento da iluminação interna dos veículos fechados quando estes se aproximassem de blitz ou barreira policial, seria uma regulamentação de questão específica de trânsito em função do predominante interesse local, ou, de outra banda, se seria uma questão de interesse preponderantemente nacional.
A partir da avaliação da preponderância de interesses, bem como da análise dos comandos da lei complementar, seria possível verificar se a lei distrital estaria apenas tratando de questões específicas com base na delegação concedida pela lei complementar ou, caso contrário, se estaria invadindo a competência legislativa privativa da União.
Desta forma, resta claro que os Estados, o Distrito Federal e, até mesmo, os Municípios, a pretexto de legislar sobre segurança pública ou sob o argumento de criarem normas para cuidar de interesses locais, vêm instituindo normas de conduta no trânsito, o que configura flagrante usurpação da competência privativa da União prevista no artigo 22, inciso XI, da Constituição Federal, como reiteradamente vem decidindo o Supremo Tribunal Federal, conforme pode se observar pelas Ações Diretas de Inconstitucionalidade apresentadas.
Penso, de toda sorte, que a União deveria abandonar a inércia e editar uma lei complementar autorizando os Estados a legislar sobre as questões específicas de trânsito e transporte de interesse regional, a fim de atender às demandas e peculiaridades locais.
Em que pese a benéfica e necessária fixação de normas uniformes de conduta no trânsito em todo o território nacional, é certo que cada localidade tem sua particularidade e necessidade, o que demanda por uma legislação específica sobre determinadas questões de trânsito. Não que sejam fixadas novas regras de conduta ou normas de circulação, mas somente solucionadas pequenas questões locais.
Cite-se o exemplo de pequenos Municípios, com alto índice de criminalidade, onde os motoqueiros são obrigados a conduzir as motocicletas com o capacete de segurança. Será que não seria justo que os Estados pudessem editar uma norma com o objetivo de melhorar a segurança pública, determinando que os condutores de motocicletas não usassem o capacete nesses Municípios? O que deveria ser priorizado, a segurança de toda a população de um Município, seriamente ameaçada por crimes praticados por motociclistas usando o capacete, ou a aparente segurança de alguns motoqueiros que circulam em ruelas, em baixa velocidade, onde dificilmente ocorre algum acidente grave? Essa é uma questão que, a meu ver, merece ser refletida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2005.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 27 de maio de 2014.
BRASIL. Distrito Federal. Lei n° 1.925, de 13 de abril de 1998. Dispõe sobre a obrigatoriedade da iluminação interna dos veículos automotores fechados, no período das dezoito horas às seis horas, quando se aproximarem de blitz ou barreira policial.
BRASIL. Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503.htm. Acesso em 27 de maio de 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 1.704. Rel. Min. Carlos Velloso. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=1689082. Acesso em 27 de maio de 2014.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 3.610. Rel. Min. Cezar Peluso. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2333343. Acesso em 27 de maio de 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 3.625. Rel. Min. Cezar Peluso. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2341683. Acesso em 27 de maio de 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 3.679. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2363192. Acesso em 27 de maio de 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 3.897. Rel. Min. Gilmar Mendes. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2518654. Acesso em 27 de maio de 2014.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Pará. Processo no 20063001022-7. Disponível em http://tj-pa.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/5117892/acao-dir-inconstitucionalidade-200630010227-pa-2006300-10227/inteiro-teor-14945265. Acesso em 27 de maio de 2014.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 16. Ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14. Ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional/Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco – 7. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2012.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. Ed. São Paulo: Atlas, 2004.
[1] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. Ed. São Paulo: Atlas, 2004. Pág. 297.
[2] ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2005. Pág.160.
Procurador Federal, Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TORRES, Michell Laureano. A reiterada violação da competência privativa da União para legislar sobre trânsito pelos Estados, Distrito Federal e Municípios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 maio 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39489/a-reiterada-violacao-da-competencia-privativa-da-uniao-para-legislar-sobre-transito-pelos-estados-distrito-federal-e-municipios. Acesso em: 22 nov 2024.
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