Resumo: Questões de políticas públicas podem ser levadas a análise do Poder Judiciário, e este tomando uma atitude ativista decide pela efetividade do direito fundamental, constitucionalmente garantido, afastando o argumento da Teoria da Reserva do Possível, quando não devidamente comprovada à insuficiência de recursos financeiros.
Palavras-chave: 1. Políticas Públicas. 2. Reserva do Possível.
Abstrat: Public policy issues can be taken to analyze the Judiciary, and this taking an activist attitude decides the effectiveness of the fundamental right constitutionally guaranteed, the argument away from the Theory of Possible Reserve, when not properly proven to insufficient financial resources.
Keywords: 1. Public Policy. 2. Possible Reserve.
Sumário: Introdução. 1. A moderna Teoria da Reserva do Possível; 2. Reserva do Possível e a Judicialização das políticas públicas. Posição jurisprudencial; Conclusão. Referências.
Introdução: A partir do paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito o sistema jurídico ganhou novos contornos, com o reforço da ideia de segurança jurídica aliada a de justiça. Ampliou-se a visão capitaneada pelo positivismo jurídico, formando um ordenamento complexo, concretizado a partir de um direito constitucionalizado e integrado. A Constituição deixou de ser um mero instrumento garantidor do status quo e passou a englobar um plano de determinações voltado ao Estado e a comunidade. O Judiciário transformou-se de um poder distante da realidade social para um efetivo co-autor na construção do futuro da sociedade.
Neste contexto, surgiu o fenômeno da judicialização, traduzindo profundas e significativas mudanças na atuação e na responsabilidade do Poder Judiciário, obrigando-o a assumir uma postura mais politizada e ativa, de verdadeiro garantidor de direitos fundamentais, já constitucionalmente assegurados.
É certo ainda que, a aplicabilidade dos direitos fundamentais possui inúmeros custos de ordem econômica e, nesse contexto, é imperioso reconhecer a teoria da “reserva do financeiramente possível”, já que inúmeros são os direitos que exigem a ação financeira do Estado para serem implementados, mas os recursos são limitados. Confrontaremos esta teoria com o instituto da judicialização das políticas públicas, a partir da análise do atual posicionamento jurisprudencial em nosso sistema jurídico.
1. A moderna Teoria da Reserva do Possível
A aplicabilidade dos direitos possui inúmeros custos de ordem econômica e, nesse contexto, é imperioso reconhecer a Teoria da Reserva do Financeiramente Possível.
Quando o assunto é a concretização judicial dos direitos fundamentais a esta teoria ganha importância, isto porque há forte entendimento, arraigado em nossa sociedade, de que os direitos de segunda geração (econômicos, sociais e culturais) são custosos e os direitos de primeira geração (individuais) são gratuitos.
Trata-se, contudo, de argumento falacioso e ideológico, pois a implementação de quaisquer direitos demanda a disposição de valores dos cofres públicos, independentemente de sua categoria. Como exemplo, temos o dispêndio do dinheiro estatal para a garantia do direito à segurança pública ou no aporte de verba pública para a prevenção e combate ao crime, em respeito ao direito individual à vida.
Segundo a teoria da Reserva do Possível, a efetividade dos direitos fundamentais, em especial os sociais estaria condicionada às possibilidades financeiras dos cofres públicos. Como não há recursos disponíveis para suprir todas as demandas sociais existentes, é necessário eleger as políticas públicas a serem perseguidas, tarefa a ser realizada pelos órgãos de representação dos cidadãos e não pelo Judiciário, via de regra. Ou seja, cabe aos governantes e aos parlamentares – numa expressão do poder discricionário – a decisão acerca da disponibilidade dos recursos financeiros do Estado, por meio da escolha das políticas públicas a serem implementadas na sociedade.
Nesse diapasão, a Reserva do Possível passou a ser utilizada como justificativa para ausência Estatal, um forte argumento do Estado para não cumprir com o papel que a própria Constituição lhe conferiu, qual seja, de provedor das necessidades da sociedade, representadas pelos direitos fundamentais ali descritos.
Contudo, a conotação essencial da Teoria da Reserva do Possível deve ser compreendida sob a visão dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade entre a pretensão deduzida, qual seja a efetividade dos direitos constitucionais, e as possibilidades financeiras do Estado.
Por outro lado, para sua utilização como limitadora de um direito constitucional, se faz imprescindível uma motivação pormenorizada que justifique o não atendimento das necessidades essenciais do ser humano, bem como a definição do que seria o mínimo existencial.
O mínimo existencial seria o conjunto de prestações materiais indispensáveis ao exercício das liberdades básicas, correspondendo aos direitos fundamentais de concretização obrigatória a ser efetivada pelo legislador e administrador público. No que se refere ao mínimo existencial a teoria da reserva do possível não pode ser aplicada.
2. Reserva do Possível e a Judicialização das políticas públicas. Posição jurisprudencial
A escolha das políticas públicas a serem implementadas pelo Estado, via de regra, compete aos Poderes Executivo e Legislativo, seja por meio do planejamento público, com a decisão dos planos e programas governamentais a serem perseguidas, seja por intermédio das leis orçamentárias.
No Brasil tanto a iniciativa quanto a execução das leis orçamentárias são competências privativas do Poder Executivo. Disso decorre que a definição das políticas públicas e a escolha das prioridades orçamentárias cabem exclusivamente àquele Poder, não podendo o Judiciário, via de regra, interferir nessa atividade discricionária do administrador. Aqui reside à questão da alocação de recursos escassos frente à enormidade de necessidades da sociedade, decisão de competência dos Poderes Legislativo e Executivo.
Verifica-se inclusive, em diversos casos quando a escolha sobre a definição das políticas públicas passa do Executivo para o Judiciário, a violação do principio da igualdade, já que o grupo social que buscou o auxílio do Poder Judiciário se sobreporá aqueles que não o fizeram. Segundo Marcos Maselli Gouvêa (2000, p. 19) “em situações extremas, as despesas realizadas em função de direitos prestacionais judicialmente impostos inviabilizariam outros projetos estatais, eventualmente até projetos relacionados a outros direitos fundamentais”.
Felipe de Melo (2013, p. 14) nos esclarece inclusive que há “relatos de que em alguns hospitais e escolas da rede pública só se consegue admissão mediante ordem judicial, fato que representa grave distorção no acesso aos bens e serviços públicos, que se espera seja feito sem discriminação entre os cidadãos e de acordo com critério bem definido (...)”.
As mais recentes decisões dos Tribunais de Superposição têm exigido além da alegação de inexistência de recursos, a comprovação dessa inexistência, ao que o Ministro Eros Grau chamou de exaustão orçamentária (1993, p. 59), para aplicação da teoria da reserva do Possível.
Na ação de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45/DF, o Ministro Celso de Mello tratou acerca da reserva do possível, entendendo ser possível a intervenção judicial sobre as políticas públicas, mas destacou a existência da cláusula da reserva do possível, em especial na implementação dos direitos sociais, econômicos e culturais, posto que estes exigiriam prestações estatais positivas do Estado. Vejamos trecho da principal decisão acerca do tema:
“Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo.
É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado”.
Recentemente, conforme noticiado no Informativo do STJ n. 543 de agosto de 2014, por intermédio do julgamento do REsp 1.389.952-MT o Superior Tribunal de Justiça enfrentou o tema referente a possibilidade de implementação de política pública pelo Poder Judiciário em um caso referente a reforma de uma cadeia pública, em destaque trecho do voto de relatoria do Ministro Herman Benjamin:
“Constatando-se inúmeras irregularidades em cadeia pública – superlotação, celas sem condições mínimas de salubridade para a permanência de presos, notadamente em razão de defeitos estruturais, de ausência de ventilação, de iluminação e de instalações sanitárias adequadas, desrespeito à integridade física e moral dos detentos, havendo, inclusive, relato de que as visitas íntimas seriam realizadas dentro das próprias celas e em grupos, e que existiriam detentas acomodadas improvisadamente –, a alegação de ausência de previsão orçamentária não impede que seja julgada procedente ação civil publica que, entre outras medidas, objetive obrigar o Estado a adotar providências administrativas e respectiva previsão orçamentária para reformar a referida cadeia pública ou construir nova unidade, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal”.
Conclusões
Assim, a Teoria da Reserva do Possível só pode ser usada como mecanismo limite para a efetivação dos direitos fundamentais, a partir da comprovação de insuficiência de recursos financeiros para tanto.
Conforme elucida Felipe de Melo (2013, pg. 92) “Reserva do possível não é presunção absoluta (ou mesmo relativa) de inexistência de dinheiro, nem fundamento autônomo de discricionariedade administrativa e/ou legislativa capaz de justificar a omissão ou adimplemento defeituoso de direitos fundamentais.”
A conotação essencial da Teoria da Reserva do Possível deve ser compreendida sob a visão dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade entre a pretensão deduzida, qual seja a efetividade dos direitos constitucionais, e as possibilidades financeiras do Estado, se fazendo imprescindível uma motivação pormenorizada que justifique o não atendimento das necessidades essenciais do ser humano, com sua respectiva comprovação objetiva a ser realizada pelo Estado, mas sempre com garantia de respeito ao mínimo existencial.
Assim, questões de políticas públicas podem ser levadas a análise do Poder Judiciário, e este tomando uma atitude ativista decide pela efetividade do direito fundamental, constitucionalmente garantido, afastando o argumento da Teoria da Reserva do Possível, quando não devidamente comprovada à insuficiência de recursos financeiros.
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Procuradora Federal desde 03/03/2008, atualmente lotada na Procuradoria Federal Especializada do INCRA; Ex. Procuradora do Estado do Pará; Ex. Defensora Pública do Estado do Pará e Ex. Advogada do Banco do Estado do Pará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AVILA, Kellen Cristina de Andrade. Teoria da reserva do possível versus a judicialização das políticas públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 out 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41090/teoria-da-reserva-do-possivel-versus-a-judicializacao-das-politicas-publicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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