Resumo: Os direitos fundamentais, considerados assim tanto aqueles expressos na Constituição (conceito formal), quanto os decorrentes do sistema (conceito material), diversas vezes entram em conflito, que é o confronto entre o exercício de direitos por parte de dois sujeitos. A solução judicial se dá no caso concreto, com base no peso ou importância relativa de cada princípio, a fim de se escolher qual deles prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro (princípio da harmonização prática ou ponderação).
Palavras-chave: direitos fundamentais, colisão, harmonização prática, proporcionalidade.
Introdução
O que se almeja neste estudo é, sem pretensão de esgotar o tema, abordar a existência de conflito entre direitos fundamentais em uma ordem jurídica e apontar formas de solução prática sob o ponto de vista da harmonização ou ponderação.
Direitos fundamentais
De início, vale reproduzir a definição de direitos fundamentais do constitucionalista português Jorge MIRANDA (1993, p. 7): “Por direitos fundamentais entendemos os direitos ou as posições jurídicas subjectivas das pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição, seja na Constituição formal, seja na Constituição material”.
Pelo conceito formal, identifica-se o direito fundamental pela sua presença no texto da Constituição. O conceito material amplia o espectro dos direitos fundamentais para além do texto normativo, resultando da “concepção de Constituição dominante, da ideia de Direito, do sentimento jurídico colectivo” (MIRANDA, 1993, p. 8-10).
Colisão de direitos fundamentais
Há colisão de direitos fundamentais quando “o exercício de um direito fundamental por parte de seu titular colide com o exercício de um direito fundamental por parte de outro titular” (CANOTILHO, 1992, p. 657).
Wilson A. STEINMETZ (2001, p. 69) relembra a pertinência do conflito de direitos fundamentais aos hard cases de Dworkin:
As colisões de direitos fundamentais são exemplos típicos de casos difíceis ou duvidosos. Assim se caracterizam porque o que colidem são direitos fundamentais expressos por normas constitucionais, com idênticas hierarquia e força vinculativa, o que torna imperativa uma decisão, legislativa ou judicial, que satisfaça os postulados da unidade da Constituição, da máxima efetividade dos direitos fundamentais e da concordância prática.
A utilidade dos postulados da interpretação constitucional no conflito de direitos provém da inexistência de hierarquia entre os direitos fundamentais inscritos na Constituição. Da força de um direito em concreto e de sua frequente prevalência em face de outros não pode ser extraída sua superioridade em abstrato, ou posição privilegiada no sistema jurídico[1]:
A existência de princípios absolutos, capazes de preceder sobre os demais em quaisquer condições de colisão, não se mostra consoante com o próprio conceito de princípios jurídicos. Não se pode negar, por outro lado, a existência de mandamentos de otimização relativamente fortes, capazes de preceder aos outros em praticamente todas as situações de colisão. Pode-se citar, como exemplos, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da proteção da ordem democrática, o direito à higidez do meio-ambiente e etc. (CRISTÓVAM, 2003)
Em sentido estrito, considera-se exclusivamente a colisão de direitos fundamentais propriamente ditos – direito fundamental x direito fundamental. Podem ser idênticos (o mesmo direito em discussão) ou diferentes.
Em sentido amplo, “são também colisões de direitos fundamentais com quaisquer normas ou princípios, que têm como objeto bens coletivos” (ALEXY, 1999, p. 68) – direito fundamental x bem jurídico. Não se trata de qualquer bem, mas sim de bens de valor comunitário, recebidos pela Constituição (CANOTILHO, 1992, p. 658).
O choque de direitos protegidos constitucionalmente é comum. Assim, uma das formas de resolução do conflito de direitos fundamentais é a limitação normativa interna (pela própria Constituição) ou externa (por lei autorizada). Desde logo, a solução do confronto entre direitos é confiada ao legislador quando o próprio texto constitucional os restringe ou quando remete à lei ordinária a possibilidade de restringir direitos.
Assim, um direito fundamental pode encontrar restrição por ordens normativas adicionais contidas em seu próprio texto, ou por outras normas jurídicas. Estas podem estar traçadas na própria Constituição, ou por meio de reserva legal, desde que a Norma Fundamental autorize o legislador a determinar os limites (HESSE, 1998, p. 250-254), tendo em vista a impossibilidade de a Constituição mesma regular todas as limitações de direitos fundamentais. Assim se passa, por exemplo, com a publicidade de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias, que, consoante a CF, art. 220, § 4º, “estará sujeita a restrições legais”.
Ao lado, a solução judicial emerge imprescindivelmente quando em cotejo direitos não sujeitos à limitação (FARIAS, 1996, p. 95), ou quando se discute a própria validade da limitação frente ao núcleo essencial do direito. Às normas restritivas não basta obedecerem às determinações constitucionais de forma e conteúdo; precisam resistir ao teste da proporcionalidade.[2]
Deslinda-se a colisão de direitos fundamentais ao se aferir o peso ou importância relativa de cada princípio, a fim de se escolher qual deles prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro.
O desfecho do conflito pode ser a redução do âmbito de aplicação de todos os direitos envolvidos, a redução de um só deles, ou, ainda, a prevalência total de um direito, preferencialmente nessa ordem.
Em respeito ao princípio da máxima efetividade e da proporcionalidade, a constrição imposta a um direito deve ser a menor possível, pelo que a afetação de apenas um dos direitos em confronto, ou, ainda pior, a sua total eliminação, são as formas menos desejadas de solução. Entretanto, há casos em que não é possível escapar delas.
A possibilidade de colisão excludente é o que leva Inocêncio COELHO (2003, p. 132) a considerar meramente formal a orientação de manter o máximo possível a eficácia dos direitos em conflito, pois “nas demandas reais só um dos contendores tem acolhida, por inteiro ou em grande parte, a sua pretensão, restando ao outro conformar-se com a decisão que lhe foi adversa (...)”. Entretanto, como visto, a total aniquilação de um direito é exceção, sendo adequada, quando possível, a preservação parcial dos direitos colidentes.
Princípio da harmonização prática ou ponderação
O princípio da proporcionalidade em sentido estrito é a ponderação de bens ou concordância prática (STEINMETZ, 2001, p. 152-153). Destaca-se o papel da proporcionalidade em sentido estrito, ponderação, harmonização ou concordância prática como mecanismo conciliatório na colisão de princípios. Tem vital relevância para a solução de conflitos entre direitos fundamentais, o que decorre da ausência de hierarquia[3] entre os valores na ordem constitucional (BARROS, 2003, p. 170).
Como já adiantado neste texto, os direitos envolvidos devem ser preservados ao máximo, adotando-se uma solução que provoque a menor constrição possível do direito ou direitos superados (FARIAS, 1996, p. 98; ALEXY, 1999, p. 77; BONAVIDES, 2000, p. 587; COELHO, 2003, p. 131-133).
Nos precisos termos de CANOTILHO (1992, p. 234), “o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito ou em concorrência de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros”. Nas palavras de Lúcia B. F. de ALVARENGA (1998, p. 98-99), a concordância prática “exige um trabalho de ‘otimização’, vale dizer, quando houver colisão de bens, deve-se estabelecer os limites de ambos, a fim de que possam alcançar uma efetividade ótima, respondendo ao princípio da proporcionalidade (relação entre duas grandezas variáveis)”. Quanto maior o grau de afetação de um direito, maior tem que ser a satisfação do outro (STEINMETZ, 2001, p. 153).
Sem o temor de reproduzir definições em excesso, porque sempre esclarecedoras, segue a de Luís Roberto BARROSO (2002, p. 265):
A ponderação de valores é técnica pela qual o intérprete procura lidar com valores constitucionais que se encontrem em linha de colisão. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição. O legislador [na confecção de leis restritivas de direitos] não pode, arbitrariamente, escolher um dos interesses em jogo e anular o outro, sob pena de violar o texto constitucional.
O mérito da harmonização prática é proporcionar um caráter racional e controlável ao processo de balizamento dos direitos fundamentais em colisão, com o fim de eliminar o “irracionalismo subjetivo” e alcançar o “racionalismo objetivo” (BARROS, 2003, p. 174).
Por fim, vale mencionar que uma das primeiras decisões relevantes em que se fez presente a ponderação foi o “caso das farmácias”, no qual o Tribunal Constitucional Federal alemão decidiu o conflito entre o direito à livre escolha da profissão e o bem comunitário da saúde pública, dando prevalência a este (LARENZ, 1997, p. 576-578).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático. Revista de Direito Administrativo, n. 217, jul.-set. 1999.
ALVARENGA, Lucia Barros Freitas de. Direitos humanos, dignidade e erradicação da pobreza: Uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional. Brasília: Brasília Jurídica, 1998.
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003.
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1992.
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 2ª ed. Porto Alegre: Fabris, 2003.
CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. A resolução das colisões entre princípios constitucionais. Jus Navigandi, Teresina, n. 62, fev. 2003. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3682>. Acesso em: 29 ago. 2003.
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos. Porto Alegre: Fabris, 1996.
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Fabris, 1998.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993.
SILVA, Christine Oliveira Peter da. Hermenêutica de direitos fundamentais: uma proposta constitucionalmente adequada. Brasília, 2001. 267 f. Dissertação (Mestrado em Direito e Estado) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília.
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
NOTAS:
[1] A regra, por sua disposição, como mandamento definitivo, é que pode ser considerada absoluta: “(...) Alexy sustenta que a impressão de que um princípio apresenta caráter absoluto frente aos demais (como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana) decorre do fato de que, na verdade, há duas normas referentes ao direito protegido: uma regra e um princípio, ou seja, o caráter absoluto de um princípio sempre decorre do fato de que existe uma regra, esta sim absoluta, relacionada diretamente com o objeto protegido por aquele princípio” (SILVA, 2001, p. 27).
[2] “O professor Gilmar Mendes, com apoio na doutrina do professor Robert Alexy, adverte que a questão da reserva legal envolve aspectos formais, relacionados com a competência para o estabelecimento de restrição, processo e forma de realização, e aspectos materiais, referentes ao exercício dessa competência, principalmente no que concerne às condições das reservas qualificadas, aos limites estabelecidos pelo princípio da proteção do núcleo essencial, à aplicação do princípio da proporcionalidade e, com ele, do princípio de ponderação” (SILVA, 2001, p. 98). Continua, algumas páginas adiante: “O importante é que o legislador infraconstitucional, nesses casos, esteja submetido a rigoroso controle por parte da jurisdição constitucional (...)” (SILVA, 2001, p. 103).
[3] “Tratando-se de uma colisão de direitos, estipular uma escala de valores e com base nela decidir significaria a imposição estatal, via Poder Legislativo ou via Poder Judiciário, de um paradigma filosófico-jurídico não fundamentado constitucionalmente” (STEINMETZ, 2001, p. 120).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Rodrigo Bezerra. Solução do conflito de direitos fundamentais pela harmonização prática Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41131/solucao-do-conflito-de-direitos-fundamentais-pela-harmonizacao-pratica. Acesso em: 22 nov 2024.
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