Resumo: Decifrar o conteúdo e a vontade da norma é um grande desafio para o jurista e objeto de estudo da hermenêutica jurídica contemporânea. O método concretizador de interpretação constitucional propõe a abordagem a partir da pré-compreensão, uma expectativa de sentido imediata frente ao objeto interpretado. A pré-compreensão do intérprete somada à compreensão da norma e à compreensão do problema resulta na interpretação.
Palavras-chave: Constituição, hermenêutica jurídica, método concretizador.
Introdução
O Direito é um objeto cultural e o juiz é, antes de tudo, um ser humano, que está inserido no mundo, preso a sua realidade histórica. O ato de compreender é histórico porque o mundo e a existência do homem também o são.
Nesse sentido, os novos ditames da hermenêutica filosófica, com base nos ensinamentos de Gadamer, ecoaram na hermenêutica jurídica: o sentido da norma não é mais descoberto, mas construído pela interpretação.
O presente estudo se dedica à hermenêutica jurídica contemporânea, sob o ponto de vista do método concretizador de interpretação constitucional.
Método concretizador
Na esteira da hermenêutica contemporânea, a tópica, o pensamento do problema, foi o “ponto de partida do preenchimento do grande vácuo deixado pela herança do positivismo lógico-dedutivo” (DINIZ, 1998, p. 250). Iniciada por Theodor Vieweg na metade do século XX, pretende, em resumo, adotar o pensamento problemático para a interpretação, que consistiria em escolher, entre várias possibilidades de abordagem, argumentos ou pontos de vista (topoi), aquele mais adequado, não importando se alheio ao pensamento jurídico.
O método concretizador “permanece no meio-termo, entre a tópica desvinculada da norma e a vinculação clássica da interpretação” (ALVARENGA, 1998, p. 96), pois não admite a superioridade do problema sobre a norma, mas também não se prende cegamente ao texto legal. A concretização não admite uma livre escolha de topoi, tomando a Constituição escrita como fronteira para o intérprete (BONAVIDES, 2000, p. 557):
Como se vê, o método concretizador recepciona a tópica orientada ao problema, mas vai além: supera-o conservando-o em parte. Enquanto o pensamento tópico parte da primazia ao problema, tendo o texto normativo como um dos topoi ao lado de outros - o que pode produzir soluções desvinculadas do texto, ultrapassando-se os limites da interpretação -, o método concretizador dá primazia ao texto, limite último de toda interpretação constitucional (STEINMETZ, 2001, p. 90).
Um dos suportes da concretização constitucional é que a determinação do sentido da norma e a solução do caso concreto não se dão separadamente, como pretendia a hermenêutica clássica. A interpretação e a aplicação ocorrem em um mesmo momento (SILVA, 2001, p. 180), que é solução para uma situação jurídica real, a “norma de decisão” de CANOTILHO (1992, p. 229).
Seu limite reside na possibilidade de extração de significado do próprio texto da norma: “os limites da interpretação constitucional estão lá onde não existe estabelecimento obrigatório da Constituição, onde terminam as possibilidades de uma compreensão conveniente do texto da norma ou onde uma resolução iria entrar em contradição unívoca com o texto da norma” (HESSE, 1998, p. 69). A interpretação não pode extrapolar o sentido linguisticamente possível da norma[i], que é, ao mesmo tempo, o ponto de partida e o limite da atividade hermenêutica (COELHO, 2003, p. 67-69).
O método concretizador deve a Konrad Hesse sua formulação teórica. A interpretação ocorre pela concretização, o procedimento de realização próprio da norma constitucional, que leva em conta o contexto normativo e as particularidades das condições concretas de vida (HESSE, 1998, p. 50).
Na medida em que sua atividade é condicionada a um problema concreto, o intérprete formula seu juízo sobre o conteúdo da norma dentro da situação histórica em que se encontra, como visto na doutrina de Gadamer, resgatada por HESSE (1991, p. 24-25):
“Em síntese, pode-se afirmar: a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade. (...) Todavia, ela não está condicionada, simplesmente, por essa realidade. Em caso de eventual conflito, a Constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca. Ao contrário, existem pressupostos realizáveis (realizierbare Voraussetzungen) que, mesmo em caso de confronto, permitem assegurar a força normativa da Constituição”
Continua o mestre alemão:
“O significado da ordenação jurídica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas – ordenação e realidade – forem consideradas em sua relação, em seu inseparável contexto, e no seu condicionamento recíproco. (...) Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas” (HESSE, 1991, p. 13-15).
Hesse apoia-se em Gadamer para construir que a compreensão da norma pressupõe uma pré-compreensão, que se constitui pela formação do pensamento do intérprete em razão, principalmente (mas não unicamente), de sua situação histórica. A pré-compreensão atua como uma expectativa de sentido imediata que encontramos frente a um texto (GADAMER, 2003, p. 355-356; STRECK, 2000, p. 197). É a primeira abordagem do intérprete sobre o conteúdo da norma, o ponto de partida para a atividade compreensiva.
Nos dizeres de LARENZ (1997, p. 288), o conhecimento do sentido do objeto interpretado seria difícil, até impossível, sem a ação da pré-compreensão do intérprete: “O texto nada diz a quem não entenda já alguma coisa daquilo de que ele trata” (p. 441). Por isso, quanto mais informado estiver o julgador a respeito da coisa de que trata o conteúdo da norma, em todas as perspectivas possíveis dos campos do saber (visão social, política, econômica), melhor será sua pré-compreensão, aumentando a qualidade do resultado do processo interpretativo:
Quem não tem qualquer ideia da matemática encontrar-se-á frente a um manual de matemática de início algo confundido. Também a quem nunca se ocupou de questões jurídicas será difícil a compreensão de um texto legal ou de uma fundamentação de sentença. O jurista que interpreta uma lei, ou um contrato, enfrenta a sua tarefa com todo o seu saber acerca dos problemas jurídicos, conexões de problemas, formas de pensamento, e, assim, possibilidades condicionadas de solução do Direito vigente (...).
A pré-compreensão do jurista é resultado de longa aprendizagem em virtude da experiência profissional e extraprofissional (LARENZ, 1997, p. 288-289).
Por outro lado, como o juízo, ou melhor, pré-juízo, atinge de imediato o intérprete, ele deve ficar atento para evitar que esse primeiro contato contamine definitivamente o processo interpretativo, impedindo que se alcance um sentido verdadeiramente autêntico da norma.[ii] Mais do que precisas são as palavras de Márcio A. V. DINIZ (1998, p. 221):
O intérprete não pode, contudo, impor ao texto a sua pré-compreensão. Deve confrontá-la criticamente com as possibilidades nele contidas, que dirá mais quanto mais precisa for a pergunta. Ele deve, no diálogo com o texto, pôr em discussão os seus próprios pré-juízos. Desse modo, sempre verá algo mais acrescentado à sua pré-compreensão, tanto quanto melhor for desvelado o sentido do texto.
Assim como as linhas de Lenio STRECK (2000, p. 253): “sem a suspensão dos pré-juízos e, consequentemente, sem confrontá-los/fundi-los com um horizonte de sentido crítico, o intérprete estará incorrendo em um discurso inautêntico, repetitivo, psicologizado e desontologizado.”
É mister que o intérprete esteja consciente da atuação inafastável da pré-compreensão, pois assim poderá reconhecer sua influência e evitar que tome conta da atividade interpretativa. LARENZ (1997, p. 293) chega ao ponto de excluir este “sentido negativo” do conceito de pré-compreensão:
“O pré-juízo, neste sentido negativo, como uma barreira ao conhecimento que se transpõe com a preocupação pela questão, não deve, todavia, ser confundido com a ‘pré-compreensão’ no sentido da hermenêutica, como uma condição (positiva) da possibilidade de compreender a questão de que se trata.”
Em síntese, a imersão histórica do intérprete vincula a interpretação a uma pré-compreensão relativa à norma. Esta pré-compreensão somada à compreensão da norma e do problema (particularidades concretas) resulta na interpretação constitucional.[iii]
Conclusão
Hesse, no embalo da Nova Hermenêutica, teoriza sobre a interpretação constitucional pela concretização. A chave de seu pensamento é que a determinação do sentido da norma e a solução do caso concreto não se dão separadamente, mas em um mesmo momento de interpretação/aplicação.
O contexto normativo e o problema concreto condicionam o procedimento de realização da norma, para o qual aflui a pré-compreensão. Esta atua como uma expectativa de sentido imediata frente ao objeto interpretado. É o ponto de partida, a primeira abordagem do intérprete sobre o conteúdo da norma, que pode ser modificada ou confirmada ao fim do procedimento de interpretação.
É importante que o aplicador do Direito não cristalize inarredavelmente sua pré-compreensão, fechando os olhos ao que a norma pode lhe dizer.
Para não se perder em devaneios meta-jurídicos, o método concretizador adota como limite da interpretação o sentido linguisticamente possível que se pode extrair do texto da norma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVARENGA, Lucia Barros Freitas de. Direitos humanos, dignidade e erradicação da pobreza: Uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional. Brasília: Brasília Jurídica, 1998.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1992.
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 2ª ed. Porto Alegre: Fabris, 2003.
DINIZ, Márcio Augusto de Vasconcelos. Constituição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 1998.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. vol. 1. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Fabris, 1991.
______. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Fabris, 1998.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
SILVA, Christine Oliveira Peter da. Hermenêutica de direitos fundamentais: uma proposta constitucionalmente adequada. Brasília, 2001. 267 f. Dissertação (Mestrado em Direito e Estado) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
NOTAS:
[i] Nesse sentido, a formulação teórica se amolda à corrente denominada interpretativista da hermenêutica constitucional. “Chamam-se interpretativistas os que, embora admitam que o aplicador da Constituição – tal como o aplicador de qualquer norma jurídica – não deva prender-se à literalidade do texto, mesmo assim consideram incompatível com o princípio democrático qualquer criatividade judicial em sentido forte, isto é, qualquer forma de interpretação dos enunciados normativos que ultrapasse o âmbito do seu significado linguisticamente possível, porque isso implicaria atribuir aos juízes uma legitimidade que é privativa dos titulares de mandatos políticos.” (COELHO, 2003, p. 81-82). Conferir também CANOTILHO, 1992, p. 203-205.
[ii] “Aquele que quer compreender não pode se entregar de antemão ao arbítrio de suas próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do texto da maneira mais obstinada e conseqüente possível - até que este acabe por não poder ser ignorado e derrube a suposta compreensão. Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa” (GADAMER, 2003, p. 358).
[iii] “O método concretista de interpretação gravita ao redor de três elementos básicos: a norma que se vai concretizar, a ‘compreensão prévia’ do intérprete e o problema concreto a resolver.” (BONAVIDES, 2000, p. 440).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Rodrigo Bezerra. Método hermenêutico-concretizador de interpretação constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41308/metodo-hermeneutico-concretizador-de-interpretacao-constitucional. Acesso em: 22 nov 2024.
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