RESUMO: O artigo tece comentários à Proposta de Emenda à Constituição nº 215, de 2000, a qual pretende transferir ao Congresso Nacional a competência para demarcação de terras indígenas.
Palavras-chave: Demarcação de Terras Indígenas. PEC 215. Direito fundamental. Cláusula pétrea.
Muito repercute na imprensa nacional as dificuldades e confusões envolvendo a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional nº 215, de 2000, a qual tem por principal objetivo retirar do Poder Executivo a competência para a demarcação de terras indígenas.
De um lado, índios, organizações não-governamentais e o Poder Executivo lutam para manter a demarcação nos autuais termos constitucionais, de outro, parlamentares e ruralistas que clamam pelo fim da demarcação de terras indígenas.
A proposta, ainda em trâmite na Câmara dos Deputados, tem nesta data, dezembro de 2014, a seguinte redação[1]:
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional:
Art. 1º O § 1º, do art. 61 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte inciso III :
“Art. 61 .......
§ 1º São iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
......
III - delimitem terras indígenas.”(NR)
Art. 2º O art. 231 da Constituição Federal passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 231....
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as que, em 5 de outubro de 1988, atendiam simultaneamente aos seguintes requisitos:
I - por eles habitadas, em caráter permanente;
II - utilizadas para suas atividades produtivas,
III – imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”(NR)
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, podendo explorá-las, direta ou indiretamente, na forma da lei, excetuando-se as seguintes situações:
I – ocupações configuradas como de relevante interesse público da União, nos termos estabelecidos por lei complementar;
II – instalação e intervenção de forças militares e policiais, independentemente de consulta às comunidades indígenas;
III - instalação de redes de comunicação, rodovias, ferrovias e hidrovias e edificações destinadas à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e de educação, vedada a cobrança de tarifas de qualquer natureza;
IV - área afetada por unidades de conservação da natureza;
V - os perímetros urbanos.
VI - ingresso, trânsito e permanência autorizada de não índios, inclusive pesquisadores e religiosos, vedada a cobrança de tarifas de qualquer natureza. (NR)
.................
§ 8º É vedada a ampliação de terra indígena já demarcada. (NR)
§ 9º A delimitação definitiva das terras indígenas far-se-á por lei, competindo ao Poder Executivo propor em projeto de lei de sua iniciativa privativa os limites e confrontações da área indígena, ou, havendo conflito fundiário, a permuta de áreas, assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo relativo às encravadas em seus territórios. (NR)
§ 10. As comunidades indígenas em estágio avançado de interação com os não-índios podem se autodeclarar, na forma da lei, aptas a praticar atividades florestais e agropecuárias, celebrar contratos, inclusive os de arrendamento e parceria. (NR)
§ 11. A comunidade indígena, na forma da lei, pode permutar, por outra, a área que originariamente lhe cabe, atendido o disposto no inciso III do § 1º.(NR)
§ 12. A União adotará políticas especiais de educação, saúde e previdência social para os índios, harmonizando-as com a cultura, crenças e tradições, e com a organização social das comunidades indígenas. (NR)”
Art. 3º O art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido com o seguinte parágrafo único:
“Art. 67 .........
Parágrafo único. O § 6º do art. 231 da Constituição não se aplica às áreas demarcadas após o prazo fixado no caput deste artigo”.(NR)
Art. 4º Os procedimentos de demarcação em curso que estejam em desacordo com as disposições desta Emenda Constitucional serão revistos no prazo de um ano, contado da data da publicação desta Emenda.
Art. 5º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.
A despeito da alteração legislativa proposta versar sobre outros assuntos, focaremos na questão da transferência da competência da demarcação do Poder Executivo para o Poder Legislativo.
Em primeiro lugar, aponto que tal providência seria inócua se o Estado Brasileiro tivesse cumprido o compromisso firmado quando da edição da Lei nº 6.001, de 1973:
Art. 65. O Poder Executivo fará, no prazo de cinco anos, a demarcação das terras indígenas, ainda não demarcadas.
Compromisso esse reiterado pelo legislador constituinte, por ocasião da Constituição Federal de 1988:
Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.
Ou seja, a partir de meados de outubro do ano de 1993, todas as terras indígenas deveriam estar regularmente demarcadas o que evidentemente não ocorreu. Não correspondendo o prazo assinalado no art. 67 da ADCT a um prazo fatal[2], as demarcações continuaram e continuam até hoje e consistem em palco para inúmeros conflitos sociais.
Destaco que se hoje há dificuldades na demarcação de terras indígenas, maiores dificuldades serão encontradas com a criação de uma nova e dificultosa etapa, a aprovação do Poder Legislativo. Na prática, a conclusão dos estudos a cargo do órgão indigenista oficial (FUNAI) serão encaminhados pelo Ministério da Justiça[3] à Presidência da República que encaminhará um Projeto de Lei ao Congresso Nacional, o qual deliberará sobre a criação ou não da terra indígena.
A simples narração do procedimento proposto traz à lume uma série de incongruências. Para explicitá-las, faz-se necessária breve digressão sobre a natureza do direito do índio à terra. Sobre a questão, já me pronunciei em artigo anterior[4]:
No mais, a constituição e legislação infraconstitucional deixa claro que se trata de direito originário, ou seja, a demarcação é um ato meramente declaratório. Houve o acolhimento da chamada teoria do indigenato, na qual a relação estabelecida entre a terra e o indígena é congênita e, por conseguinte, originária. De fato, a Carta Magna, reconhece os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam independente de título ou reconhecimento formal sobre essas terras. Nesse contexto, o processo de demarcação das terras indígenas em si, não possui natureza constitutiva, mas declaratória, com o desiderato de delimitar espacialmente os referidos territórios, possibilitando o exercício das prerrogativas constitucionais conferidas aos índios. Na lição de Kayser:
O “reconhecimento dos direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, pela Constituição vigente do Brasil, representa a reafirmação constitucional do chamado indigenato, de maneira modificada (...). O indigenato inclui o reconhecimento da propriedade dos indígenas à terra que se encontra em sua posse. De acordo com essa noção jurídica, os direitos dos índios à terra que eles tradicionalmente habitam são fundamentados pelo fato de que os índios são os “senhores originários e naturais da terra”. Seus direitos à terra são direitos “inatos”, enquanto que os direitos de outros são simplesmente direitos “adquiridos”. Como os direitos congênitos dos índios já existiam quando o Estado ainda não existia, o Estado não pode “conceder” aos índios esses direitos, mas apenas “reconhecer” sua existência. A Constituição adotou o indigenato de forma apenas modificada, já que ela não reconhece o direito de propriedade dos indígenas, mas apenas seu direito de posse permanente à terra, vinculando, ao mesmo tempo, a propriedade à União (...) O indigenato foi confirmado a partir de 1609 na legislação para o Brasil[5].
A confirmar tal entendimento, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou:
3.3. A demarcação administrativa, homologada pelo Presidente da República, é “ato estatal que se reveste da presunção juris tantum de legitimidade e de veracidade” (RE 183.188, da relatoria do ministro Celso de Mello), além de se revestir de natureza declaratória e força auto-executória. (pet 3388/RR)
(...)
12. DIREITOS ‘ORIGINÁRIOS’. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente ‘reconhecidos’, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta magna havê-los chamado de ‘originários’, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como ‘nulos e extintos’ (§ 6º do art. 231 da CF). (EDCL na PET 3388/RR).
Ainda, registre-se que o tratamento conferido pela Carta Constitucional aos índios deu-se no inequívoco desiderato de favorecê-los. Reafirma-se o constitucionalismo fraternal, voltado à efetivação da igualdade civil-moral dos indígenas:
9. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relação interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica. (PET 3388).
A Constituição Federal, em seu artigo 231, reconhece aos índios o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam de modo a garantir-lhes a sobrevivência física e cultural. Não há dúvida de que tal reconhecimento constitua direito fundamental dos índios, já que direitos inatos, imprescindíveis à existência digna, livre e saudável dos índios, estando umbilicalmente ligado ao princípio máximo da dignidade da pessoa humana. Tal conclusão se chega também através dos inúmeros compromissos internacionais assumidos pelo Estado Brasileiro, notadamente o Pacto de San José da Costa Rica e a Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho.
A doutrina constitucionalista afirma que o controle de constitucionalidade não se dirige somente à norma em vigência, mas também àquela submetida ao processo legislativo, com o fim de obstar que uma norma inconstitucional seja promulgada e gere efeitos que possam ser irreversíveis. Nesse sentido, o legislador originário previu uma série de comandos fundamentais que devem restar imunes a uma posterior alteração legislativa, sob pena de descaracterizar o desenho constitucional original.
Assim, chama atenção o disposto no art. 60, §4º da Constituição, ao proibir a deliberação de proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais, ou seja, tendente a abolir uma cláusula pétrea.
No caso em análise, não temos dúvida de que o direito originário dos povos indígenas sobre suas terras será ofendido e inviabilizado em seu núcleo essencial com a alteração pretendida, uma vez que, além de criar etapa desnecessária e burocrática, tornará o reconhecimento hoje calcado em critérios puramente técnicos em reconhecimento meramente político, a depender da vontade do Congresso Nacional.
Ora, a demarcação anterior à Constituição de 1988 tinha outro objetivo. Demarcava-se para assimilar ou integrar a população indígena à comunhão nacional. Esse era o objetivo expresso do Estado. Não havia critérios técnicos para a demarcação, a qual se valia de juízos meramente políticos. Não se atentava para a concretude da ocupação, nem para sua extensão, em desrespeito às necessidades desses povos.
Com a Constituição de 1988, a relação entre Estado e índio fora revista. O índio não mais precisa deixar de ser índio. A Carta Magna encoraja os índios a assumirem as suas identidades, sem que isso lhes traga carga de preconceito, sem que isso lhes restrinja direitos. Do mesmo modo, garante-se aos índios o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, propiciando-lhes o usufruto exclusivo dos recursos naturais, a residência em meio ambiente preservado e a sua reprodução física e cultural.
A definição do espaço territorial a contemplar-lhe os requisitos apontados pela Constituição deve ser fundamentado em estudos de natureza técnica. Hoje, esses estudos de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário são conduzidos pela FUNAI e realizados por grupo técnico especializado coordenado por antropólogo, por força do disposto na Lei nº 6.001/73 e Decreto nº 1.775/96.
A demarcação de terras indígenas não é um ato político, mas mera execução técnica do mandamento constitucional esculpido no art. 231 da CF/88, o qual proíbe juízo político e de discricionariedade na demarcação. Com efeito, o núcleo fundamental do direito originário às terras tradicionalmente ocupadas é justamente a garantia de que o processo de demarcação será técnico.
Assim, a proposta de emenda constitucional tendente a tornar o reconhecimento de um direito fundamental em ato submetido à chancela política, esvazia o próprio direito fundamental, retirando-lhe completamente a eficácia, subjugando-o à vontade de uma maioria em detrimento do legítimo direito de uma minoria. Aqui reforço que o regime democrático não tolera nem admite a opressão da minoria por grupos majoritários, no que se convencionou falar na existência de direitos contramajoritários.
A propósito, sobre o tema da PEC nº 215, o Ministro Barroso, do Supremo Tribunal Federal, assim pronunciou, quando, provocado, analisou a possibilidade de trâmite da proposta de emenda, nos autos do Mandado de Segurança nº 32.262/DF:
No caso, insurgem-se os impetrantes contra a tramitação de proposta de emenda constitucional que, a seu ver, afronta os limites materiais impostos pela Constituição ao poder de reforma reconhecido ao Congresso Nacional.(...)
A questão trazida no presente mandado de segurança envolve um aspecto extremamente sensível da teoria constitucional contemporânea. No constitucionalismo democrático, as Constituições desempenham dois grandes papéis: (i) o de preservar os direitos fundamentais, inclusive e sobretudo das minorias; e (ii) o de assegurar o governo da maioria, cujos representantes foram livremente eleitos.(...)
15. No caso dos autos, o que estaria em risco, segundo os autores, é o direito originário dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam (CF/88, art. 231). Como recentemente observado por este Tribunal, não se trata aqui de um direito de propriedade ou de posse – no sentido que os termos assumem no direito privado –, mas de uma figura peculiar, de índole e estatura constitucional, voltada a garantir aos índios os meios materiais de que precisam para proteção e reprodução de sua cultura. Não é outra a orientação acolhida pelos tratados internacionais pertinentes, pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU e pela Corte Interamericana de Direitos Humano. Como a cultura integra a personalidade humana e suas múltiplas manifestações compõem o patrimônio nacional dos brasileiros (CF/88, arts. 215 e 216), parece plenamente justificada a inclusão do direito dos índios à terra entre os direitos fundamentais tutelados pelo art. 60, § 4º, IV, da Constituição.
16. A circunstância de um grupo ser minoritário não enfraquece, mas antes reforça a pretensão de fundamentalidade dos seus direitos. Como já observado por este Tribunal, “a proteção das minorias e dos grupos vulneráveis qualifica-se como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito”.(...)
19. Não é descabida a alegação de que a proteção constitucional aos direitos dos índios poderia, em linha de princípio, ficar fragilizada pela atribuição de competência ao Poder Legislativo para autorizar a demarcação das terras por eles tradicionalmente ocupadas. Afirma-se isso por duas razões. Em primeiro lugar, e novamente em linha de princípio, condicionar o reconhecimento de um direito fundamental à deliberação político-majoritária parece contrariar a sua própria razão de ser. Com efeito, tais direitos são incluídos na Constituição justamente para que as maiorias de ocasião não tenham poder de disposição sobre eles. Para utilizar o termo que se tornou clássico, os direitos fundamentais são “trunfos” contra a maioria, contra a prevalência incondicionada das metas coletivas sobre as posições subjetivas dotadas de proteção especial. O ponto é particularmente relevante quando a tutela se volta a grupos minoritários e/ou historicamente marginalizados, os quais, como regra, não dispõem de meios para participar em condições adequadas do debate político. É esse o caso dos índios, no Brasil e em diversas outras partes do mundo.
20. Além disso, e em segundo lugar, a jurisprudência deste Tribunal já assentou que a demarcação de terras indígenas é um ato declaratório, que se limita a reconhecer direitos imemoriais que vieram a ser chancelados pela própria Constituição. O que cabe à União, portanto, não é escolher onde haverá terras indígenas, mas apenas demarcar as áreas que atendam aos critérios constitucionais, valendo-se, para tanto, de estudos técnicos. Nessa linha, trata-se de um procedimento que se volta, tanto quanto possível, à aplicação do direito de ofício – província tipicamente atribuída ao Poder Executivo, como igualmente observado por este Tribunal. Naturalmente, admitem-se alguns ajustes na repartição de competências entre os Poderes e certamente é compreensível que o Poder Legislativo queira participar do debate público referente ao tema, em seus múltiplos aspectos. Apesar disso, é preciso cautela para não se produzir um arranjo em que, na afirmação de fatos antropológicos, um juízo político venha a prevalecer sobre a devida avaliação técnica. Em especial, quando disso dependerem: (i) a fruição de um direito fundamental por grupos minoritários; e (ii) a superação de direitos adquiridos dos índios e de terceiros (CF/88, art. 231, caput e § 6º).
21. Essas considerações suscitam relevantes dúvidas quanto à validade, em tese, da PEC nº 215/2000, tendo em vista não só os direitos dos índios, mas também outro direito fundamental – a proteção aos direitos adquiridos (CF/88, art. 5º, XXXVI) – e, possivelmente, até a separação dos poderes, igualmente acolhida como cláusula pétrea (CF/88, arts. 2º e 60, § 4º, III). Por todas essas razões, é plausível a alegação dos impetrantes de que a proposta impugnada não poderia ser objeto de deliberação.
A despeito do entendimento exposto, o Ministro Relator indeferiu a liminar sob o entendimento de que seria prematura a intervenção judicial em um processo legislativo que ainda está em fase inicial de discussão e que seria impensável presumir que os parlamentares atentariam de forma deliberada contra a Constituição.
De toda sorte, já deixou claro em sua decisão que a proposta, nos moldes em que se encontrava, flerta com a inconstitucionalidade por condicionar a fruição de um direito fundamental à vontade política do Congresso Nacional.
O paradigma constitucional inaugurado em 1988 se baseia na construção de uma sociedade democrática, plural e fraterna, na qual o exercício das faculdades inerentes aos direitos de determinada parcela da população não pode inviabilizar a própria estrutura fundante do Estado, ao contrário, ele deve agregar valor e identidade às discussões e diferenças como meio de viabilizar um progresso que promova o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. É essa a verdadeira noção de Estado Democrático de Direito fundada no pluralismo político e na dignidade da pessoa humana.
Como apontado, o direito ao reconhecimento das terras que tradicionalmente ocupam é encarado pela Carta Magna e pelas normas de direitos humanos como direito fundamental dos povos indígenas, notadamente pelo fato de estarem ligados à própria sobrevivência física e cultural (elemento que os distingue) desses povos, ou seja, a uma existência com uma mínima dignidade.
Desse modo, não se pode condicionar o gozo de um direito fundamental cuja concretização depende apenas de estudo técnico a um juízo político, ainda que esse juízo decorra da vontade da maioria, pois é nesse momento que a necessidade de respeito aos direitos contramajoritários mais se acentua, justamente para que a maioria de ocasião não possa dispor sobre ele. É esse respeito que conduz à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito.
A proposta de emenda à Constituição analisada, da forma como está atualmente redigida, ou seja, ante a pretensão de transferir a competência da demarcação de terras indígenas para o Poder Legislativo, encontra óbice na cláusula pétrea que proíbe a deliberação de proposta tendente a abolir direitos e garantias fundamentais e a separação dos Poderes, não havendo dúvidas de que revela um retrocesso de matéria de direitos humanos.
[1] Substitutivo a Proposta de Emenda à Constituição nº 215-A, de 2000 (Apensadas: PEC 579/2002; PEC 257/2004; PEC 275/2004; PEC 319/2004; PEC156/2003; 37/2007; PEC 117/2007; PEC 411/2009; PEC 415/2009 e PEC 161/2007)
[2] EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO. INEXISTÊNCIA. DECRETO 1.775/1996. CONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. RECURSO DESPROVIDO. I - Esta Corte possui entendimento no sentido de que o marco temporal previsto no art. 67 do ADCT não é decadencial, mas que se trata de um prazo programático para conclusão de demarcações de terras indígenas dentro de um período razoável. Precedentes. II – O processo administrativo visando à demarcação de terras indígenas é regulamentado por legislação própria - Lei 6.001/1973 e Decreto 1.775/1996 - cujas regras já foram declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. Precedentes. III – Não há qualquer ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa, pois conforme se verifica nos autos, a recorrente teve oportunidade de se manifestar no processo administrativo e apresentar suas razões, que foram devidamente refutadas pela FUNAI. IV – Recurso a que se nega provimento. (RMS 26212, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 03/05/2011, DJe-094 DIVULG 18-05-2011 PUBLIC 19-05-2011 EMENT VOL-02525-02 PP-00290)
[3] Responsável pela supervisão ministerial da FUNAI.
[4] CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Demarcação de terras tradicionalmente ocupadas. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov. 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.51052>. Acesso em: 12 dez. 2014.
[5] KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os Direitos dos Povos Indígenas do Brasil: desenvolvimento histórico ao estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editora, 2010, p. 236.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Demarcação de terras indígenas: comentários à PEC 215 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42565/demarcacao-de-terras-indigenas-comentarios-a-pec-215. Acesso em: 23 dez 2024.
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