RESUMO: este artigo problematiza sobre a interferência judicial na implementação de políticas públicas definidas na Constituição sob a ótica da separação de poderes. Para tanto, faz um estudo de caso acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal de que a autoridade judicial pode obrigar o Poder Executivo a matricular crianças em creches, com base na política pública definida no inciso IV do art. 208 da Constituição Federal. A análise crítica sobre a concretização de direitos fundamentais por meio de políticas públicas determinadas pelo Poder Judiciário será construída a partir da incorporação de contribuições do professor Marcus Faro de Castro que viabilizam um novo enfrentamento das conexões entre a nova dinâmica institucional de implementação das políticas públicas definidas na Constituição e a filosofia política de Locke, Montesquieu e Kant.
PALAVRAS-CHAVES: implementação de política pública; interferência judicial; separação de poderes.
SUMÁRIO: 1. Considerações preliminares. 2. O descompasso entre um direito fundamental definido na Constituição e sua realização na vida dos brasileiros. 3. A implementação de políticas públicas definidas na Constituição por ordem judicial: interpenetrações da filosofia política com o direito constitucional. 4. Conclusão.
1. Considerações preliminares
O direito fundamental à educação infantil, apesar de encontrar abrigo no texto constitucional desde 1988, não encontra reverberação na realidade social brasileira. Das crianças com até cinco anos de idade que precisam de vaga em creche, 76,4% não conseguem atendimento e, ao se fazer um recorte no segmento de 20% das famílias mais pobres, essa taxa alcança a marca de 87,8% das crianças sem acesso à creche, conforme a consolidação de dados mais recente de 2010[1], 22 anos após a promulgação da Constituição propalada como “Cidadã”. Apenas no Distrito Federal, em 2014, há um déficit de seis mil vagas em creches públicas para crianças na faixa etária entre 0 e 5 anos, segundo dados fornecidos pela Secretaria de Educação[2].
Diante desse cenário, muitas vozes[3] se levantam contra o atual ordenamento constitucional como se dele fosse a responsabilidade pela ineficácia dos direitos fundamentais há tanto tempo proclamados. Outros, por sua vez, debitam a fatura na atuação das instituições públicas, que historicamente são vistas como lenientes com a inversão de prioridades na tomada de decisão sobre onde investir os recursos públicos. Em meio a esse imbróglio, o objetivo deste artigo é contribuir para tal discussão mediante a análise da atuação do Poder Judiciário quando é chamado para dirimir controvérsias sobre a implementação de políticas sociais[4] definidas na Constituição. Com esse objetivo, será feito um estudo de caso sobre a concretização do direito fundamental à educação infantil, mormente sob a perspectiva do acesso à creche pelas crianças de até cinco anos de idade.
Um precedente emblemático foi a decisão do Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário n. 639337-SP, em que se discutiu sobre a constitucionalidade da imposição de multa diária ao Município de São Paulo na hipótese de descumprimento da ordem judicial para matricular crianças em creches próximas a sua residência ou ao local de trabalho de seus responsáveis legais.
O supracitado recurso extraordinário teve origem no inconformismo do ente municipal com o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que confirmou a possibilidade da intervenção do Poder Judiciário para implementação da política pública prevista no inciso IV do art. 208 da Constituição Federal, qual seja: “o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade”.
Em primeiro lugar, o Município de São Paulo, por meio de sua Procuradoria, alegou que autoridade judicial não teria legitimidade para alterar a destinação dos recursos públicos, pois essa seria uma atribuição precípua dos Poderes Legislativo e Executivo. Enquanto aquele seria um corpo formado por legítimos representantes do Povo, este seria encabeçado por um agente político também escolhido e reconduzido, quando for o caso, em sufrágio universal por votação direta[5].
Sob essa ótica, magistrados – autoridades públicas investidas em sua função mediante o ingresso nos quadros da carreira por concurso público – não teriam legitimidade política para tomarem decisões sobre políticas públicas, quando essas decisões implicassem o remanejamento de dotações orçamentárias para uma finalidade distinta da anteriormente estabelecida no orçamento anual.
Em segundo lugar, a municipalidade postulou que a tarefa de concretização das múltiplas políticas públicas previstas na Constituição estaria inscrita no âmbito da discricionariedade administrativa. Aduziu ainda que haveria escassez de recursos para fazerem frente a todos os mandamentos constitucionais, do que decorria a necessidade de priorização de determinados investimentos em relação a outros. Ademais, a formação dessa lista de prioridades seria uma atribuição do governante, que, além de ser o aclamado nas urnas, muitas vezes apenas estaria privilegiando o já estabelecido no seu programa de governo apresentado e referendado pelos eleitores.
Sendo assim, o Prefeito eleito teria a liberdade para decidir como e em que medida seria oportuno e conveniente concretizar a missão constitucional de atender as crianças de até cinco anos com vagas em creches. Até mesmo porque a ele são conferidas outras incumbências constitucionais, também de elevada significação social e relevo econômico, como a promoção de saúde pública ao alcance de todos, indistintamente.
Segundo esse entendimento, diante da escassez de recursos públicos para a desejável implementação de políticas públicas pelo Estado brasileiro, o gestor municipal ficaria diante das chamadas “escolhas trágicas”[6], para decidir em quais áreas e programas priorizar o emprego da receita pública arrecadada dos contribuintes, em detrimento de outros investimentos também relevantes para a comunidade. Qualquer interferência judicial nessa delicada equação não teria o necessário respaldo político para desconfigurar o que fora inicialmente decidido pelo Prefeito eleito, legítimo representante da comunidade.
Por fim, o Município arguiu a inadequação processual da imposição de multa diária pelo descumprimento da ordem judicial, haja vista o não cabimento, segundo sua perspectiva, da fixação de astreintes contra pessoa jurídica de direito público, nos termos do § 5o do art. 461 do Código de Processo Civil (CPC).
Diante das objeções levantadas pelo Município de São Paulo, no julgamento do recurso extraordinário em questão, os Ministros do Supremo Tribunal Federal seguiram, por unanimidade, o voto do Relator Celso de Mello, que negou provimento ao apelo extremo.
No que tange à alegação de indevida interferência do Poder Judiciário na implementação da política pública de construção de creches no Município de São Paulo, o Ministro-Relator assentou que, realmente, a formulação e a execução de políticas públicas são prerrogativas essenciais dos Poderes Legislativo e Executivo. Entretanto, em casos excepcionais de omissão estatal na tarefa de conferir eficácia e integridade aos direitos sociais e culturais, nos quais se enquadraria a não implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição, o Poder Judiciário teria competência para determinar que as referidas ações fossem realizadas.
Com efeito, assim não estaria configurada a interferência indevida de um Poder sobre outro, com a consequente quebra do equilíbrio institucional que entre eles deve imperar.
Inclusive, o Relator vai além, ao fixar que o tribunal constitucional apenas estaria no cumprimento estrito de sua missão[7].
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal afastou também o entendimento de que, em um ambiente marcado pela escassez de verbas públicas – “cláusula da reserva do possível” –, a implementação das políticas públicas estaria dentro dos contornos da discricionariedade administrativa[8]. De fato, a conveniência e a oportunidade da decisão administrativa não poderiam ser invocadas quando estivesse em questão a noção de “mínimo existencial”, que se materializa na existência das condições necessárias para um viver digno, conforme o “princípio-estruturante da dignidade da pessoa humana”.
Quanto à fixação de astreintes contra o Município de São Paulo, assentou-se que inexiste obstáculo jurídico-processual para que a multa cominatória prevista no § 5o do art. 461 do CPC seja imposta contra pessoa jurídica de direito público.
Dessa forma, restou mantida a fixação de multa diária por cada criança que o ente municipal deixasse de atender com a matrícula em unidades de ensino infantil próximas de sua residência ou do endereço de trabalho de seus responsáveis legais.
Em suma, o Supremo Tribunal Federal decidiu que autoridade judicial pode obrigar o Poder Executivo a matricular crianças em creches, com base na política pública definida no inciso IV do art. 208 da Constituição Federal.
A fruição dos direitos fundamentais não pode ser dinamitada por ostensiva omissão estatal, sob a alegação de que a interferência judicial em políticas públicas viola a separação entre os poderes.
A seguir, para discussão dessa tese, serão incorporadas contribuições do professor Marcus Faro de Castro, extraídas do artigo intitulado “Globalização, Democracia e Direito Constitucional: legados recebidos e possibilidades de mudança”.
Na sequência será feita uma crítica à decisão do Supremo Tribunal Federal no caso em estudo, por meio de conexões entre a nova dinâmica institucional na implementação de políticas públicas definidas na Constituição e a filosofia política de Locke, Montesquieu e Kant.
2. O descompasso entre um direito fundamental definido na Constituição e sua realização na vida dos brasileiros
A disponibilidade de creches para apenas 23,6% das crianças com até três anos revela o abismo existente entre as garantias consagradas no texto constitucional e a realidade concreta da população.
A flagrante ineficácia dos direitos sociais passa ao largo das preocupações dos juristas brasileiros, que, ao adotarem postura descomprometida com os dados empíricos, centram o debate em torno de formas jurídicas abstratas, como o princípio da separação de poderes, a noção de discricionariedade administrativa e a cláusula da reserva do possível.
Com efeito, o discurso normativo dos juristas não encontra eco no dia-a-dia dos brasileiros. O formalismo e o descomprometimento com a mudança social são marcas das instituições pátrias e resultam no crescente esvaziamento da sua credibilidade junto à sociedade, de modo a gerarem um vácuo de representatividade a ser preenchido por novos atores sociais.
Os protestos que tomaram as ruas do País em junho de 2013 são um símbolo da descrença popular nas estruturas políticas, econômicas, jurídicas e sociais. O arcabouço institucional vigente envelheceu[9] e agora precisa ser aproximado da experiência concreta da vida dos cidadãos, sob o risco dos que se acham excluídos ou não representados reduzirem o sistema político a pó[10].
Isto posto, o jurista se vê diante do desafio de estabelecer seu discurso sobre bases empíricas, indo ao encontro da concretude dos fatos sociais, políticos e econômicos. Ao fazer assim, liberta-se do discurso normativo autorreferenciado em princípios abstratos vazios, deixa de atuar como mero agente reprodutor das estruturas então vigentes e passa a ser um agente catalisador da mudança social.
No enfrentamento da quaestio juris sobre a omissão estatal na implementação de políticas públicas definidas na Constituição, cabe ao jurista verificar os dados sobre o que ocorre na sociedade, sem se limitar a acrobacias hermenêuticas em torno da norma.
Ao abrir o discurso jurídico para influxo dos fatos, o juiz se verá diante de uma realidade ainda mais complexa e multifacetária, que para ser compreendida exigirá o recurso à interdisciplinaridade.
Quando se analisa a decisão judicial descrita na primeira parte deste artigo, tem-se que o Relator deveria investigar: o déficit de creches na localidade; a probabilidade da carência de creches impedir as mães de trabalharem por ficarem em casa cuidando dos filhos; o grau de vulnerabilidade social das crianças que ficam sozinhas enquanto os pais vão trabalhar; os índices de criminalidade na região; o risco de ocorrência de crimes sexuais na faixa etária de 0 a 5 anos de idade; os programas governamentais em andamento para atender a demanda reprimida por creches; os costumes sociais da comunidade local; e outros dados empíricos que enriqueceriam a discussão e ajudariam na eficácia do direito à educação infantil.
Sem dúvidas, no momento em que a autoridade judicial se desapega dos estreitos limites da discussão sobre independência dos poderes, discricionariedade administrativa, reserva do possível, mínimo existencial, mas passa a encarar a complexa realidade da insuficiência de creches, o desenlace do conflito judicial exige a incorporação de instrumentais de outras áreas do saber. Assim, a Constituição deixa de ser um repositório de fórmulas prontas para a solução dos problemas sociais e se torna o ponto de partida para a construção de práticas democráticas realizadoras dos direitos fundamentais.
Destarte, a interdisciplinaridade do direito com a economia, a sociologia e a ciência política torna-se a metodologia de trabalho do jurista[11]. Igualmente, o discurso jurídico abre-se para as reflexões da filosofia política e moral aplicada, em um processo de oxigenação com potencial para auxiliar no enfrentamento de questões morais, éticas e políticas (CASTRO, no prelo, 2014, p. 18).
Do relato do julgamento apresentado na primeira parte deste artigo, observa-se que o Supremo Tribunal Federal não explorou o manancial de argumentos e percepções que o emprego de uma abordagem interdisciplinar poderia ter colocado ao seu alcance. No julgamento desse recurso extraordinário, a “matéria social” foi trabalhada apenas com “formas jurídicas” [12] altamente abstratas, como a separação de poderes, a discricionariedade administrativa, a cláusula da reserva do possível e o mínimo existencial.
3. A implementação de políticas públicas definidas na Constituição por ordem judicial: interpenetrações da filosofia política com o direito constitucional
Como dito nos tópicos anteriores, no julgamento da constitucionalidade da ordem judicial que obrigou, sob pena de multa diária, o Município de São Paulo a matricular crianças de até cinco anos em creches próximas de sua residência ou do local de trabalho de seus responsáveis legais, o Relator qualificou como legítima a atuação do Poder Judiciário de São Paulo. Na sua concepção, não houve ofensa ao postulado da separação de Poderes devido à omissão estatal na implementação de política pública prevista na Constituição.
Desse modo, a complexidade da discussão em torno da dinâmica entre os Poderes foi reduzida pelo Supremo Tribunal Federal à verificação se há, ou não, omissão do Legislativo e do Executivo na realização de direitos sociais com abrigo constitucional.
Diante da força irradiadora das decisões provenientes do STF, os demais tribunais passaram a replicar o referido entendimento, assim desestabilizando o equilíbrio que deveria viger entre os Poderes, na medida em que o Poder Judiciário passou a ter protagonismo em seara que lhe era atípica. A concretização de direitos sociais, mediante a implementação de políticas públicas, restou judicializada, especialmente nas áreas de educação, saúde e segurança pública[13].
Se antes ao Judiciário era atribuída a pecha de omisso e leniente com a violação dos direitos fundamentais, agora a problematização aponta para o exacerbado ativismo judicial que avoca para si a tarefa de revisar as “escolhas trágicas”[14] dos legítimos representantes do Povo, consequentemente, interferindo nas decisões políticas sobre onde e como investir os limitados recursos públicos.
Para a melhor compreensão crítica desse processo, este artigo busca construir pontos de contato com a filosofia política de Locke, Montesquieu e Kant.
Preliminarmente, cabe explicitar que o direito constitucional brasileiro incorporou ao seu discurso a doutrina da separação de Poderes de John Locke, para quem a separação institucional entre o poder de legislar e o poder de punir era uma condicionante da sociedade regida pela principiologia ética do direito natural. Isso porque a separação de poderes era uma exigência para a conservação da propriedade privada – o direito natural por excelência[15], que estava na origem da sociedade política[16].
O arranjo institucional lockiano, por adotar uma perspectiva de superioridade da lei, tinha o Parlamento como o poder supremo, que condicionava todos os demais. Não pode nenhum edito “de quem quer que seja, seja de que forma concebido ou por que poder apoiado, ter força e obrigação de lei se não for sancionado pelo legislativo escolhido e nomeado pelo público”. Dessa forma, “toda obediência a que alguém pode estar obrigado [...] termina finalmente nesse poder supremo e é regida pelas leis que ele promulga” (LOCKE, 2005, p. 503).
Não obstante, deve ser ressaltado o caráter fiduciário[17] da função governamental de legislar, haja vista que o povo pode retirar a confiança inicialmente depositada no governo, quando o poder de legislar não for exercido em consonância com a principiologia ética do direito natural, de modo a deixar de realizar o “bem comum de caráter ético” (CASTRO, 2005, p. 167).
O discurso lockiano, fundado no reconhecimento de uma normatividade superior, foi apropriado pelos constitucionalistas brasileiros, que, na tentativa de modernizarem sua roupagem, adotaram seu sucedâneo: a supremacia da Constituição. Mas, claro, nesse processo de assimilação de construções da filosofia política pelo direito constitucional liberal, foi deixado para trás o direito do povo de remover o governo sempre que este rompesse a confiança nele depositada, como apregoado por Locke no momento em que incluiu a fidúcia como elemento da política – caráter fiduciário do poder legislativo.
De qualquer forma, a noção clássica da separação de Poderes empregada pelos constitucionalistas tem origem nas construções lockianas e traz consigo a repulsa a toda ideia de tensão entre os Poderes. É preconizada a máxima de que cada corpo de autoridade tem seu âmbito próprio de atuação, onde deve estar imune à convivência conflituosa com autoridades de outro Poder.
Daí o entendimento da doutrina constitucional liberal sobre o não cabimento da intervenção do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas, haja vista que essa é uma missão típica do legislador e dos administradores públicos. A premissa era a não sindicabilidade judicial das políticas públicas sociais.
A assimilação da doutrina de Locke pelos constitucionalistas também produziu outras consequências, como a elaboração da máxima da supremacia da Constituição – um sucedâneo à noção de supremacia do poder de legislar. Ambas residiam na ideia da existência de uma normatividade superior.
A intangibilidade normativa da jurisdição constitucional prejudica a construção democrática e plural do pensamento jurídico na medida em que o texto constitucional é visto como repositório das respostas prontas e acabadas para todos os problemas atuais e os que ainda vierem a surgir. Até porque não há espaço para se discutir o que é tido como expressão suprema.
No que se refere à noção de separação de Poderes, no século XVIII, Montesquieu também indagou qual seria a estrutura institucional capaz de promover a liberdade política. Contudo, enquanto para Locke a liberdade estava associada à propriedade, Montesquieu entendeu a liberdade como a condição na qual o indivíduo podia ficar sem ter medo do seu semelhante. E o que tornava essa liberdade possível era a tensão entre os Poderes[18]. Logo, a ideia central de Montesquieu está na distribuição do poder entre corpos de autoridade que agem de maneira a se contraporem uns com os outros (“freios e contrapesos”).
Ademais, Montesquieu concluiu que não há um higher law, não há uma supremacia do Parlamento nos moldes apresentados por Locke. No lugar da hierarquia entre Poderes, com o Legislativo no ápice, há a igualdade. Sai de cena o Legislativo como poder supremo e entra em palco a dinâmica de interação entre as autoridades, e sua inevitável tensão estrutural – a noção dos “freios e contrapesos”.
Assim, a doutrina de Montesquieu, ao invés de estimular o fechamento conceitual do sistema jurídico pelo uso de argumentos de autoridade como a supremacia da Constituição, permite um modo de pensar e organizar a Constituição mais republicano e democrático. Nesse sentido, Marcus Faro de Castro conclui que:
A doutrina de Montesquieu, ao valorizar o sentimento de liberdade de cada um, é mais radicalmente republicana ou democrática do que a ideia de supremacia da constituição, que representa um “fechamento conceitual”, e não uma abertura democrática, das possibilidades de se imaginar e organizar a constituição. O que é tornado, em si, como supremo, tende a ser subtraído ao debate democrático constantemente renovado, evitando modelagens potencialmente infinitas da organização do comportamento social, advindas desse debate (CASTRO, no prelo, 2014, p. 8).
Em suma, o direito constitucional deve, permanentemente, trazer ao debate os constructos de Locke e Montesquieu sobre a separação de Poderes, caso queira superar a visão dual entre a omissão institucional e o exacerbado ativismo judicial. Aliás, este já vem sendo uma realidade bem presente na dinâmica entre os Poderes no Brasil.
Além do postulado da separação de Poderes, a abertura conceitual do direito é um segundo aspecto a ser levado em consideração na discussão sobre a implementação de políticas públicas por meio de intervenções diretas de autoridades judiciais.
Cabe pontuar que o direito constitucional liberal consolidou-se no contexto da separação entre Moral e Direito, de matriz kantiana. Inclusive, essa separação foi a base do positivismo normativista de Kelsen.
Em sua filosofia moral, Kant segrega, de um lado, as leis jurídicas voltadas às ações externas e, de outro, as leis éticas voltadas às motivações fundamentais e interiores da personalidade, sendo isentas de qualquer influência de elementos ligados ao exterior (inclinações e interesses)[19].
Ao fazer a separação absoluta do Direito e da Moral, a Filosofia do Direito de Kant tem dificuldade para conciliar a liberdade moral com os fatos concretos da experiência moral e política. O resultado é o distanciamento entre o mundo real das instituições concretas da política e o mundo idealizado da liberdade moral. Inclusive, nesse sentido, Hegel critica o formalismo kantiano qualificando-o como uma forma desprovida de conteúdo[20].
Sobre isso, Marcus Faro de Castro nota que:
Tal dificuldade em reconciliar, de uma lado, a liberdade moral, da qual o indivíduo deve ser capaz de tomar-se consciente, e, de outro, a experiência social e as instituições políticas, aparece na aplicação da filosofia moral de Kant aos fatos concretos da experiência social e política. Tal aplicação está contida expressamente em sua Metafísica dos Costumes, que se divide em uma “doutrina do direito” e em uma “doutrina da virtude (CASTRO, 2005, p. 177).
Diante da dificuldade para conciliar a liberdade moral com a experiência concreta das instituições políticas, Kant sequer formula a separação dos poderes, pelo contrário, ele prega a união deles e entende ser inadmissível o governado se rebelar contra a autoridade. Segundo ele, “a vontade do legislador [...] é incontestável, o poder do governo é irresistível e a sentença do juiz supremo irrevogável”. Por isso, o povo tem o dever de “suportar um abuso, mesmo considerado insuportável, do poder supremo”, sendo a resistência a tal poder vista como “destrutiva de toda constituição legal” (KANT, 2005, p. 320).
Mesmo frente às fragilidades da doutrina de Kant, Hans Kelsen estrutura seu positivismo normativista a partir da incorporação do dualismo kantiano de realidade e valor, de ser e dever-ser. O objetivo de Kelsen com isso é a purificação da ciência do direito mediante a adoção de uma perspectiva totalmente refratária à integração dos interesses emergentes da sociedade – que já vinham sendo canalizados pelos outros ramos do saber – às “formas” da jurisprudentia moderna[21].
Contudo, as premissas do direito constitucional liberal sofreram forte abalo com a incorporação das “formas” das políticas públicas sociais às “formas” da jurisprudentia. Diante desse processo de interpenetração de “formas”, os juristas precisam discutir as representações intelectuais absorvidas pelo discurso jurídico, como a noção clássica da separação de poderes e a ideia de Constituição como repositório de soluções prontas e acabadas.
Ao analisar a legitimidade constitucional da intervenção direta de autoridades judiciais na implementação de políticas públicas, o jurista não pode limitar suas reflexões ao campo da ciência do Direito.
No julgamento sobre a constitucionalidade da imposição judicial de multa diária contra o Poder Executivo municipal, na hipótese deste não ofertar, para as crianças de até cinco anos, creches próximas a sua residência ou ao local de trabalho de seus responsáveis legais, o Relator Celso de Mello fez uma análise rasa do postulado da separação de poderes e da realidade social brasileira.
No caso em questão, a discussão judicial não poderia ser resolvida com o argumento de que, se a política social está prevista no texto constitucional, há legitimidade do Judiciário para revisar a decisão política dos demais Poderes, de modo que os juízes poderiam interferir nos rumos institucionais para a concretização dos direitos sociais.
O Estado Democrático de Direito não abraça a possibilidade de um corpo burocrático reduzido deter a legitimidade de interpretar e decidir o que melhor é para a sociedade. A noção de supremacia da Constituição deve ser atenuada quando resultar no entendimento de que a solução para os desafios institucionais está dada no texto constitucional, necessitando apenas ser descoberta por um corpo privilegiado de intérpretes, como os Ministros do Supremo Tribunal Federal.
4. Conclusão
Em conclusão, o direito deve se abrir para mesclas pragmáticas com “formas” advindas de ciências positivas diversas. Para essa abertura se dar, o juiz precisa ir além da argumentação jurídica e considerar as consequências concretas produzidas por suas decisões, na seara política, social, econômica e institucional.
Diante de casos complexos, como a interferência do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas sociais, faz-se necessário um processo de incorporação de evidências técnico-científicas de outros ramos do saber ao discurso do direito. Sem enfrentar a realidade empírica e sem refletir sobre o conteúdo da filosofia política e da filosofia moral aplicada, os juristas serão omissos na concretização dos direitos sociais ou alimentarão um indevido protagonismo judicial sobre todas as dimensões de vida da sociedade.
Destarte, o jurista só cumprirá sua missão de transformar em realidade as mudanças exigidas pela sociedade, se e quando se disponibilizar a integrar intelectualmente as várias “formas” dos campos de elaboração intelectual, não se contentando em repousar na vagueza e na indefinição de formas jurídicas abstratas.
REFERÊNCIAS
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BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. 2007.
BOBBITT, Philip; CALABRESI, Guido. Tragic Choices – The conflicts society confronts in the allocation of tragically scarce resources. New York: Norton, 1978.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário com agravo n. 639337-SP, Relator: Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177, 15.09.2011, p. 125.
CASTRO, Marcus Faro de. Violência, Medo e Confiança: do Governo Misto à Separação de Poderes. Rio de Janeiro: Revista Forense, vol. 382, novembro/dezembro de 2005.
_____. Formas jurídicas e mudança social: interações entre o direito, a filosofia, a política e a economia. São Paulo: Saraiva, 2012.
_____. Globalização, democracia e direito constitucional: legados recebidos e possibilidades de mudança. Brasília: no prelo, 2014.
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas – A responsabilidade do administrador e o Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2000.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
_____. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2007.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7° ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 2° ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
MONTESQUIEU. O espírito das Leis. 3° ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[1] Os dados foram extraídos da apresentação do Plano Nacional de Educação, realizada pelo Ministro Aloizio Mercadante, em 29 de novembro de 2012. No seu trabalho, o Ministério da Educação utilizou a base de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD - IBGE).
[2] Ver Correio Braziliense, 04/02/2014, “Quase 6 mil crianças não conseguiram vagas em creches públicas do DF”. Disponível no endereço http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2014/02/04/interna_cidadesdf,411147/quase-6-mil-criancas-nao-conseguiram- vagas-em-creches-publicas-do-df.shtml. Acesso em: 19/07/2014.
[3] Ver, por exemplo, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2007).
[4] Neste artigo, adota-se o conceito de políticas públicas sociais trabalhado por Marcus Faro de Castro em seu livro Formas jurídicas e mudança social. Em sua conceituação: “as políticas públicas de caráter ‘social’ (ou, simplesmente, ‘políticas sociais’) são aquelas políticas públicas que proporcionam aos ‘despossuídos’ ou não proprietários o consumo de bens e serviços de acordo com padrões estabelecidos para promover a sua subsistência e reprodução e, dentro do possível, a sua integração social” (CASTRO, 2012, p. 201).
[5] Em nenhum momento é feita a transcrição direta das alegações do Município de São Paulo porque o processo tramitou em segredo de justiça.
[6] A expressão “escolhas trágicas” foi apropriada de Guido Calabresi e Philip Bobbitt (1978).
[7] Para Celso de Mello: “Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos Poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão institucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República”.
[8] Em apoio à tese da discricionariedade mínima do administrador para execução das políticas públicas definidas no aparato constitucional, o Relator citou a seguinte advertência extraída do trabalho doutrinário Políticas Públicas – A Responsabilidade do Administrador e o Ministério Público: “Nesse contexto constitucional, que implica também na [sic] renovação das práticas políticas, o administrador está vinculado às políticas públicas estabelecidas na Constituição Federal; a sua omissão é passível de responsabilização e a sua margem de discricionariedade é mínima, não contemplando o não fazer” (FRISCHEISEN, 2000, p. 59).
[9] No mesmo sentido, o professor Marcus Faro de Castro concluiu, com muita perspicácia, que: “as instituições construídas no passado e legadas para as gerações mais recentes não são mais aceitáveis, incluindo aí as constituições e suas cartas de direitos, que somente adquirem sentido prático efetivo com base no discurso normativo especializado dos juristas e autoridades judiciais, produtores e veneráveis guardiães do “direito constitucional”. Em outras palavras, há uma crise no modo de organização da sociedade mundo afora, uma crise de múltiplas dimensões: política, econômica , social – e também jurídica. E tal crise resulta do fato de que os fundamentos utilizados por autoridades para estabelecer ou manejar estruturas políticas, econômicas e jurídicas flagrantemente envelheceram” (CASTRO, no prelo, 2014, pp. 2-3).
[10] Na toada de descolamento entre a constituição formal e a constituição material, “[...] muitas belas ideias abstratas podem ser ditas, muitas palavras altissonantes e principiologias bem organizadas, mas deve-se admitir, sobretudo, que uma constituição vale mais pelo que significa em termos práticos, no plano vivo das instituições e das políticas públicas concretas, do que no discurso abstrato, e frequentemente vazio, de muitos juristas” (CASTRO, no prelo, 2014, p. 3).
[11] Esse novo ambiente está retratado na enfática advertência do professor Marcus Faro de Castro: “[...] o direito constitucional se beneficiaria muito se os juristas que a ele se dedicam se dispusessem a construir um diálogo com outras disciplinas que tratam da política sob vários ângulos, incluindo, em primeiro plano, a ciência política, a economia política, a sociologia política e a antropologia política” (CASTRO, no prelo, 2014, p. 18).
[12] As expressões “matéria social” e “formas jurídicas” foram retiradas de Castro (no prelo, 2014).
[13] Sobre o tema, Luís Roberto Barroso alerta: “o Judiciário não pode ser menos do que deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que podem ser promovidos com a sua atuação. De outra parte, não deve querer ser mais do que pode ser, presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover os direitos fundamentais de uns, causar grave lesão a direitos da mesma natureza de outros tantos” (BARROSO, 2007, p. 4).
[14] A expressão “escolhas trágicas” foi apropriada de Guido Calabresi e Philip Bobbitt (1978).
[15] Estudiosos da obra de Locke lecionam que: “O governo constitucional, enquanto um equilíbrio de poderes, que inclui um corpo legislativo eleito, fornece, pois, a segurança para as propriedades dos indivíduos que vivem em uma economia de moeda e troca, segurança que a monarquia como forma de governo é improvável e/ou incapaz de oferecer. A discussão de Locke acerca da propriedade nos Dois Tratados, portanto, faz muito mais do que fornecer uma descrição e uma justificação moral da origem da propriedade privada, ela oferece também uma defesa do governo constitucional que se baseia em sua descrição do desenvolvimento da propriedade” (ASHCRAFT, 2011, p. 304).
[16] “O fim maior e principal para os homens unirem-se em sociedades políticas e submeterem-se a um governo é, portanto, a conservação de sua propriedade” (LOCKE, 2005, p. 495).
[17] Na doutrina de Locke, apesar de o poder de legislar ser fiduciário – ele quebra a confiança se e quando legisla contrariamente ao direito natural –, a fidúcia, como observa Marcus Faro de Castro, não chega a adquirir uma forma institucional. “Esta última característica da formulação de Locke [aqui o autor está se referindo ao direito de rebelião do povo contra os tiranos] – uma válvula de escape não- institucional para garantir a prevalência do ponto de vista ético como fundamento da política – desaparece no argumento de Montesquieu. Na formulação desse autor, a fidúcia e sua garantia resultam das instituições” (CASTRO, 2005, p. 167).
[18] “Mas ela [liberdade política] só existe quando não se abusa do poder; mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. [...] Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder” (MONTESQUIEU, 2005, p.166).
[19] Para Kant, “a boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão- somente pelo querer, isto é em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações” (KANT, 2007, p. 23).
[20] Cf. Hegel (2009).
[21] Ao contrário de Kelsen, posicionavam-se aqueles que defendiam a incorporação de interesses da base social. Genericamente rotulados como antipositivistas, autores como Carl Schmitt, Erich Kaufmann, Hermann Heller e Rudolf Smend tinham em comum a aproximação dos seus argumentos às formulações hegelianas, distantes do neokantismo de Kelsen. Entre os antipositivistas ganha destaque Rudolf Smend. Seu trabalho era uma tentativa de se opor ao positivismo do neokantismo kelseniano através do desenvolvimento de um método fenomenológico em sua filosofia hegeliana, tudo ancorado nas ideias do pensador Theodor Litt. A incorporação de interesses da sociedade à Constituição era viabilizada por sua abertura aos valores espirituais, projetados nos direitos constitucionais básicos, sobre os quais os cidadãos concordam. Sobre o tema, cf. Castro (2012).
Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Especialista em Processo Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Advogado. Chefe de Gabinete no Senado Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAULO EMíLIO DANTAS NAZARé, . A implementação de políticas públicas definidas na Constituição mediante intervenção direta de autoridades judiciais: um estudo de caso sobre a concretização do direito fundamental à educação infantil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 fev 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45911/a-implementacao-de-politicas-publicas-definidas-na-constituicao-mediante-intervencao-direta-de-autoridades-judiciais-um-estudo-de-caso-sobre-a-concretizacao-do-direito-fundamental-a-educacao-infantil. Acesso em: 23 dez 2024.
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