RESUMO: A situação dos deslocados forçados demonstra verdadeira crise humanitária – a maior, desde a Segunda Guerra Mundial. Neste contexto, cresce a discussão no âmbito global sobre a proteção jurídica dos refugiados. O presente artigo se propõe a problematizar o tema, por meio de apontamentos acerca da definição insuficiente de refugiado, da distinção entre refugiado e imigrante, do estatuto jurídico dos refugiados, no plano internacional e interno e da atual onda de criminalização dos refugiados.
PALAVRAS-CHAVE: Crise humanitária, refugiados, estatuto jurídico dos refugiados, criminalização
ABSTRACT: The situation of the forced displaced people demonstrates a real humanitarian crisis - the biggest since World War II. In this context, there is growing discussion at the global level on the legal protection of refugees. This article proposes to problematize the theme, through notes on the insufficient definition of refugee, the distinction between refugee and immigrant, the legal status of refugees at the international and domestic level, and the current wave of criminalization of refugees.
KEYWORDS: Humanitarian crisis, refugees, legal status of refugees, criminalization
SUMÁRIO: 1. Introdução: Crise dos refugiados; 2. Mas quem são os refugiados? 2.1. Conceitos tradicionais; 2.2. Refugiados ambientais; 3. Refugiados no cenário jurídico internacional; 4. O refugiado no cenário jurídico brasileiro; 4.1. Distinção de refugiados e imigrantes; 4.2. O refugiado como titular de direitos fundamentais; 5. Criminalização dos refugiados; 6. Considerações finais; e 7. Referências Bibliográficas.
1. Introdução: Crise dos refugiados[1]
Segundos dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), até o final de 2019 havia cerca de 79,5 milhões de deslocados forçados no mundo. Dentro desse grupo, 26 milhões são refugiados, sendo que 20,4 milhões estão sob o mandado da ACNUR, e o restante sob o mandado da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA). Destarte, havia, até o final de 2019, aproximadamente 4,2 milhões de solicitantes de refúgio no mundo.
No Brasil, a situação dos refugiados venezuelanos merece destaque. Segundo a ONU, o número de venezuelanos que deixaram o país, desde 2016, ultrapassa 4 milhões de pessoas, sendo o Brasil um dos destinos mais procurados.
O governo brasileiro reconheceu a crise humanitária relativa a tais fluxos migratórios e criou, por meio da Medida Provisória nº 820/18, posteriormente convertida na Lei nº 13.684/18, a Operação Acolhida, de proteção e assistência aos venezuelanos que chegam ao Brasil pela fronteira em Roraima. Trata-se da primeira (e bem sucedida[2]) missão humanitária em território nacional, e ocorre com o apoio das três esferas de Governo, das forças armadas, da sociedade civil e de diversas agências da Organização das Nações Unidas (ONU). É coordenada no âmbito do Comitê Federal de Assistência Emergencial, da Casa Civil da Presidência da República, com a participação 12 Ministérios.
Assim, a situação dos deslocados forçados, especialmente dos refugiados, demonstra verdadeira crise humanitária – a maior, desde a Segunda Guerra Mundial.
Neste contexto, portanto, cresce a discussão no âmbito global sobre a proteção jurídica dos refugiados.
Objetiva-se, com este artigo, trazer breves apontamentos acerca da insuficiência dos conceitos tradicionais de refugiados dado o surgimento de novos fluxos migratórios, da distinção de refugiados e imigrantes - e tratamentos jurídicos correspondentes -, da normativa do Direito dos refugiados e da atual onda de criminalização dos refugiados, em substituição à adoção de medidas migratórias adequadas.
2. Mas quem são os refugiados?
2.1. Conceitos tradicionais
No âmbito das Nações Unidas, a definição de refugiado está contida no artigo 1º, parágrafo 2º, alínea “c”, da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 50.215, de 28 de janeiro de 1961:
Art. 1º - [...]
Parágrafo 1º - Para fins da presente Convenção, o termo “refugiado” se aplicará a qualquer pessoa:
c) Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.
Parágrafo 2º. Para fins da presente Convenção, as palavras “acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951”, do artigo 1º, seção A, poderão ser compreendidos no sentido de ou
a) ”Acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa”.
b) ”Acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa ou alhures. ”
Posteriormente, essa definição foi ampliada pelo Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967, promulgado no Brasil pelo Decreto nº 70.946, de 7 de agosto de 1972, no tocante ao limite temporal e geográfico, ou seja, desconsiderando-se a data- limite equivalente a 1º de janeiro de 1951; e que esses dispositivos fossem aplicados aos refugiados em todo o mundo.
Há que encarar, contudo, as definições apresentadas no contexto do Direito Internacional como padrões mínimos que devem ser atendidos para que uma pessoa possa ser considerada refugiada (SOARES, 2012, pág. 50).
Assim, a ampliação do conceito pelos Estados é não apenas possível, mas recomendada, em virtude das necessidades de novas situações que surgirem e que não se enquadrem nessa definição mínima.
Nesse sentido, a Declaração de Cartagena das Índias, de 1984, ampliou o conceito de refugiados no contexto da América Latina, para abranger as pessoas que se veem obrigadas a sair de seus países em decorrência da violência generalizada, da agressão estrangeira ou da larga violação dos direitos humanos.
Destarte, conforme leciona André de Carvalho Ramos (2015), a interpretação dos Direitos Humanos deve ser pro homine, no sentido de ser sempre aquela que mais favoreça ao indivíduo.
No âmbito nacional, o Estatuto dos Refugiados (Lei nº 9.474/97) traz um conceito de refugiados já alargado nos moldes da Declaração de Cartagena:
Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:
I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
Contudo, essa definição é insuficiente e não abrange os chamados “refugiados ambientais”.
2.2. Refugiados ambientais
Inicialmente, cumpre destacar a ausência de nomenclatura ou definição considerada oficial para a expressão “refugiado ambiental” (RAMOS, 2011, pág. 74).
Destarte, um dos conceitos mais populares é o surgido em 1985 com Essam El-Hinnawi, quando atuava junto ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente:
“refugiados ambientais são definidos como aquelas pessoas forçadas a deixar seu habitat natural, temporária ou permanentemente, por causa de uma marcante perturbação ambiental (natural e/ou desencadeada pela ação humana), que colocou em risco sua existência e/ou seriamente afetou sua qualidade de vida. Por “perturbação ambiental”, nessa definição, entendemos quaisquer mudanças físicas, químicas, e/ou biológicas no ecossistema (ou na base de recursos), que o tornem, temporária ou permanentemente, impróprio para sustentar a vida humana” (RAMOS, 2011, pág. 76).
Conforme explica Tiago Fensterseifer (2013, pág. 354), a figura dos refugiados ambientais está diretamente ligada com a questão climática e também com o cenário socioambiental que lhe está subjacente, na medida em que
“o deslocamento de tais pessoas dos seus locais originários será motivado, na maioria das vezes, pela busca de condições de vida que atendam a um padrão de bem-estar mínimo, tanto em termos sociais quanto ambientais”.
Entretanto, em que pese a emergência dessa nova categoria de pessoas na ordem internacional, há a ausência de proteção jurídica pelos instrumentos internacionais vigentes, de modo que
“a adoção de uma convenção internacional específica, cuidadosamente elaborada para lidar com a categoria emergente dos “refugiados ambientais”, apresenta-se como o melhor caminho (FENSTERSEIFER, 2013, p. 354).
3. Refugiados no cenário jurídico internacional
Tradicionalmente, afirma-se a existência de três ramos da proteção internacional dos direitos da pessoa: Direitos Humanos, Direito Humanitário e Direito dos Refugiados.
Contudo, tal visão compartimentalizada está superada, tendo em vista a identidade de propósitos de proteção dos direitos humanos, bem como a aproximação dessas vertentes nos planos conceitual, normativo, hermenêutico e operacional (PIOVESAN, 2012, pág. 197).
Feitas essas breves considerações, passemos ao desenvolvimento do estatuto jurídico internacional dos refugiados.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, e constatadas as atrocidades cometidas durante o Holocausto, é criada a ONU.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, que é o primeiro documento internacional que positiva direitos humanos, introduz a concepção contemporânea dos direitos humanos e serve como parâmetro internacional para a proteção desses direitos. A partir da sua aprovação, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais.
O fundamento da Declaração Universal dos Direitos Humanos se confunde com o da criação da ONU, na medida em que busca a reconstrução da ordem mundial fundada em novos conceitos de direito internacional, em contraposição à doutrina da soberania nacional absoluta e à exacerbação do positivismo jurídico, que possibilitaram os regimes políticos baseados em hipertrofia estatal e no repúdio ao fundamento jusnaturalista dos direitos humanos.
O art. 14 da Declaração prevê o direito de asilo, ao dispor que “toda pessoa vítima de perseguição tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países”, salvo em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas, conforme excepcionado pelo mesmo dispositivo.
Em 1951, juntamente com a criação da ACNUR, é aprovada a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, que define em caráter universal a condição de refugiado, prevendo um rol de direitos e deveres.
Conforme já explicitado, a Convenção instituiu reservas temporal e geográfica, que restaram superadas com o Protocolo Adicional Relativo ao Estatuto dos Refugiados.
A intenção inicial era proteger pessoas que se encontravam em situação de refúgio, devido a acontecimentos anteriores a 1º de janeiro de 1951 (reserva temporal), na Europa ou alhures, dando, contudo, aos países signatários a opção de escolherem o alcance geográfico da proteção.
Percebe-se, assim, que o pensamento que se tinha era o de que o direito ao refúgio seria algo passageiro, limitado ao fim da Segunda Guerra Mundial, o que restou superado tendo em vista o constante surgimento de novos fluxos migratórios.
Nos âmbitos regionais, há a Convenção da Organização da Unidade Africana, de 1969 e a Declaração de Cartagena sobre os Refugiados, de 1984, aplicável aos países da América Latina, que são importantes documentos principalmente por estenderem o conceito de refugiado, conforme visto.
Dez anos depois da Declaração de Cartagena, foi elaborada, em 1994, a Declaração de São José sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas. E vinte anos depois, em 2004, em decorrência de novos fluxos de deslocados forçados, foi criada a Declaração e o Plano de Ação do México para Fortalecer a Proteção Internacional do Refugiados na América Latina.
Em 2010 foi aprovada a Declaração de Brasília sobre a Proteção de Refugiados e Apátridas no Continente Americano, a fim de reiterar as previsões do Plano de Ação do México, promovendo os valores da solidariedade, da tolerância, do respeito e do multiculturalismo (PORFÍRIO, 2018, pág. 32).
Em 2016, no âmbito da ONU,
governantes de 193 países compareceram à Reunião de Alto Nível sobre Grandes Movimentos de Refugiados e Migrantes, em Nova York, nos Estados Unidos, a fim de debater formas de melhorar a garantia dos direitos dos refugiados e de compartilhar as responsabilidades em escada global. Adotou-se, então, a Declaração de Nova York para Migrantes e Refugiados, a qual, apesar do seu caráter recomendatório (assim como a DUDH de 1948), consiste em um amplo consenso entre os Estados, com vistas a reafirmar a obrigação de respeitar os direitos humanos e os direitos dos refugiados e dos migrantes. (PORFÍRIO, 2018, pág. 30)
Finalmente, em 2018, foi aprovado pela Assembleia Geral da ONU o Pacto Global sobre Refugiados, com votos contrários dos Estados Unidos e da Hungria. Tal documento não tem valor vinculativo, e, assim como o Pacto Global para a migração, também aprovado, ambos derivam da Declaração de Nova York.
O Pacto Global sobre Refugiados aponta quatro objetivos principais: aliviar a pressão sobre os países anfitriões, aumentar a autossuficiência dos refugiados, ampliar o acesso a soluções de países terceiros e ajudar a criar condições nos países de origem, para um regresso dos cidadãos em segurança e dignidade (CAVALCANTE, 2018).
Ante o exposto, é forçoso reconhecer que houve inegável avanço no que tange ao fortalecimento do estatuto jurídico dos refugiados, no plano internacional. Contudo, conforme visto, ainda há um longo caminho a ser percorrido, a começar pela necessidade de alargamento normativo do conceito de refugiados, tendo em vista o constante surgimento de novos fluxos migratórios.
4. O refugiado no cenário jurídico brasileiro
4.1. Distinção de refugiados e imigrantes
Tal distinção é importante, sobretudo em razão das necessidades de cada grupo e das diferentes consequências jurídicas.
Tradicionalmente distinguem-se ambos tendo em vista sobretudo o critério da voluntariedade.
Enquanto os refugiados seriam compelidos a fugir dos seus países de origem, pois não lhes restou outra opção, seja em razão de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas (conceito restrito e adotado pelo sistema ONU), sendo necessário garantir-lhes, portanto, a proteção contra a devolução e o acesso ao asilo, os imigrantes seriam aqueles que espontaneamente deixam seus países de origem em busca de melhores condições de vida, o fazendo, assim, principalmente por questões socioeconômicas.
Contudo, não há como considerar como espontânea a saída de imigrantes de seus países de origem, onde possuem laços sanguíneos, linguísticos, afetivos e culturais, se fogem da extrema miséria, buscando condições dignas de vida e, em última análise, fogem de grave e generalizada violação de direitos humanos, ainda que na esfera dos direitos sociais.
Destarte, é certo que a análise de uma “hipervulnerabilidade” sob o ponto de vista socioambiental apta a ensejar a caracterização de “refugiado socioambiental” teria que ser feita caso a caso - e a linha de distinção é deveras tênue.
No entanto, certo é que o conceito de refugiado vem sendo alargado e hoje, conforme visto, já se fala em refugiado ambiental. O desafio reside justamente na ausência de normativa que garanta a concessão de refúgio aos deslocados forçados que não se amoldem perfeitamente ao conceito estrito de refugiado.
Quanto às consequências jurídicas, conforme a chamada Lei de Migração (Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017), os imigrantes estão sujeitos à deportação (nos casos de estada irregular no país), expulsão (quando atentarem contra a segurança nacional, a ordem pública ou social, a tranquilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais), repatriação (devolução de pessoa em situação de impedimento ao país de procedência ou de nacionalidade) e extradição.
Os refugiados, de outro modo, têm o direito fundamental ao refúgio[3], sendo certo que a decisão de concessão do refúgio tem natureza declaratória.
O princípio da proibição do rechaço (non-refoulement) está previsto no artigo 33, da Convenção Relativa ao Estatuto do Refugiado, de 1951:
1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas.
2. O benefício da presente disposição não poderá, todavia, ser invocado por um refugiado que por motivos sérios seja considerado um perigo para a segurança do país no qual ele se encontre ou que, tendo sido condenado definitivamente por crime ou delito particularmente
O Estatuto do Refugiado (Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997) possui norma mais benéfica ao refugiado, na medida em que não traz qualquer exceção à proibição de rechaço:
Art. 7º, §1º: Em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.
A lei brasileira foi além, ao permitir a aplicação do princípio mesmo nos casos de recusa definitiva de refúgio:
Art. 32. No caso de recusa definitiva de refúgio, ficará o solicitante sujeito à legislação de estrangeiros, não devendo ocorrer sua transferência para o seu país de nacionalidade ou de residência habitual, enquanto permanecerem as circunstâncias que põem em risco sua vida, integridade física e liberdade, salvo nas situações determinadas nos incisos III e IV do art. 3º desta Lei.
Assim, é de extrema importância a diferenciação entre refugiados e imigrantes, para que não se corra o risco de, por exemplo, retornar erroneamente refugiados aos países dos quais foram obrigados a sair (SILVA, 2017, pág. 958).
Tal diferenciação, contudo, não é tarefa simples, sobretudo tendo em vista tanto a necessidade de alargamento do conceito de refugiados, quanto a recente onda migratória, composta tanto por imigrantes quanto por refugiados. De fato, estamos vivendo a maior movimentação de pessoas desde a Segunda Guerra Mundial.
4.2. O refugiado como titular de direitos fundamentais
A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, sem distinção de qualquer natureza, o postulado dos direitos fundamentais.
Embora o artigo 5º traga apenas o rol dos direitos e deveres individuais e coletivos relacionados ao direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, é certo que o “caput” também se refere aos direitos fundamentais que digam respeito aos direitos sociais, políticos, e ao direito à nacionalidade.
Importante destacar que a titularidade de direitos fundamentais não implica um tratamento igual a brasileiros (natos e naturalizados) e a estrangeiros em todos os casos, admitindo-se diferenças em hipóteses específicas expressamente estabelecidas pela Constituição (estrangeiro, por exemplo, não pode votar e ser votado).
Ainda, pela literalidade da norma, os estrangeiros não residentes no Brasil estariam excluídos do rol de titulares dos direitos fundamentais. Contudo, a melhor interpretação do dispositivo, segundo doutrina dominante e o posicionamento do STF (HC 94.016/SP e HC 97.147/MT), é no sentido de que a proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal) impõe que se reconheça aos estrangeiros, inclusive não residentes no país, a proteção dos direitos fundamentais.
Ademais, conforme lições de Marco Antonio da Silva (2017, pág. 958)
Os direitos fundamentais não podem mais ser entendidos a partir de um conceito de Nação e nacionalidade, de um povo ligado a um território, mas sim sob o aspecto cosmopolita, de uma efetiva participação de todos, atuando em favor do bem comum, isto é, de todas as pessoas.
Assim, os refugiados no Brasil são detentores de todos os direitos e garantias fundamentais, e, mais do que isso, a questão relacionada ao direito de acolhida não deve ser vista como assunto nacional, mas como uma demanda de toda a humanidade.
Destarte, o artigo 5º, §1º, da Constituição Federal estabelece que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Repise-se que, ainda que inserida no art. 5º, por sua própria redação a ele unicamente não se aplica, espraiando-se a todas as normas dos direitos fundamentais, inclusive aquelas que definem os direitos econômicos, sociais e culturais.
De fato, os direitos civis e políticos só podem ter justificação se os relacionados à comunidade – econômicos, sociais e culturais, forem também promovidos e protegidos.
Isso porque a complementaridade, sem perder de vista a individualidade do ser humano, reconhece nesta os efeitos da vida social, na qual aquele desenvolve sua existência, estabelecendo vínculos que influenciam a conformação de seus valores e crenças individuais.
Poucas são as situações em que as liberdades civis produzem efeitos no plano da realidade, sem depender da efetivação de qualquer providência caracterizada em um direito social (em suma, se os direitos de primeira dimensão são de aplicabilidade imediata, e sua eficácia depende da concretização dos direitos de segunda dimensão, então esses também devem ter aplicabilidade imediata).
Sabemos, contudo, que algumas normas de direitos sociais e até mesmo individuais dependem de regulamentação ou atuação do Estado, possuindo, portanto, na prática, aplicabilidade mediata.
O próprio Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais indica que os direitos ali previstos são de exercício progressivo, a depender do esforço interno e mesmo de assistência e cooperação internacionais, a fim de dotar os Estados de meios que possibilitem a concretização desses direitos.
Assim, o artigo 5º, §1º, da Constituição Federal deve ser entendido como um comando de otimização, significando que não podem os direitos fundamentais serem vistos como mera promessa.
Finalmente, o artigo 5º, §2º, da Lei Maior prevê que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
5. Criminalização dos refugiados
Conforme dito, o mundo vive a maior onda de fluxos migratórios desde a Segunda Guerra Mundial. Necessário, portanto, que os países que vêm sendo especialmente afetados por esses fluxos desenvolvam políticas migratórias adequadas.
Contudo, para MORAES (2014, pág 39), devido ao atual retrocesso do direito humanista desenvolvido no período após a Segunda Guerra Mundial, a política migratória tem cada vez mais dado mais espaço à política criminal.
Ao discorrer sobre o fenômeno do encarceramento em massa de negros nos Estados Unidos, WACQUANT (1999, págs. 215 e 216) pontua que, se os negros se tornaram os principais "clientes" do sistema penitenciário dos Estados Unidos, não é por causa de alguma propensão especial que esta comunidade teria por crime e desvio, mas porque ela fica no ponto de interseção de três forças que, juntas, determinam e alimentam o regime sem precedentes de encarceramento em massa norte-americano.
Essas três forças são, na visão do autor: (i) a dualização do mercado de trabalho e a generalização do emprego precário e subemprego; (ii) o desmantelamento de programas de assistência pública para os membros mais vulneráveis da sociedade; (iii) a crise do gueto como instrumento de controle e confinamento de uma população estigmatizada considerada estranha ao organismo nacional e ao mesmo tempo supranumerária econômica e politicamente.
Em tom profético, o autor advertiu para a possibilidade de que algo parecido ocorresse na Europa[4]:
Com as mesmas causas produzindo os mesmos efeitos, há todas as chances de que as sociedades da Europa Ocidental gerem situações análogas, embora menos pronunciadas, na medida em que elas também devem embarcar no caminho da gestão penal da pobreza e da desigualdade, exigindo aos seus sistemas penitenciários não apenas que contenham o crime, mas também que regulem os segmentos mais baixos da mão-de-obra do mercado de trabalho e mantenham a segregação de populações consideradas indecoráveis, abandonadas e indesejadas. Deste ponto de vista, estrangeiros e quase estrangeiros seriam "os negros '' da Europa. (WACQUANT, 1999, pág. 216)
De fato, a profecia do autor se realizou. Atualmente há o fenômeno do encarceramento massivo de estrangeiros não europeus na Europa. Ademais, o encarceramento em massa em diversos países da União Europeia coincide com altos níveis de desemprego e flexibilização do trabalho.
A demonização do estrangeiro, em especial do refugiado, não é exclusiva do continente europeu. Segundo MORAES (2014, pág. 39), enquanto na Europa, sobretudo em razão de interesses eleitorais, a migração se tornou bode expiatório da crise econômica (e os estrangeiros tem sido acusados de subtrair empregos dos nacionais, abusar dos serviços do Estado e elevar os índices de criminalidade), nos Estados Unidos a demonização do estrangeiro atingiu o seu ápice após os atentados de 11 de setembro de 2001, quando foi declarada “guerra ao terror”, na qual “a descoberta de potenciais terroristas confunde-se com a xenofobia e converte a diferença em ameaça”.
De qualquer modo, é certo que em toda a Europa há a convergência quanto à especial severidade na aplicação de práticas policiais, judiciais às pessoas de fenótipo não europeu, havendo um verdadeiro processo de criminalização de imigrantes que tende, por sua desestruturação e efeitos criminogênicos, para reproduzir o próprio fenômeno que deve combater, de acordo com o conhecido mecanismo da "profecia de autorrealização" (WACQUANT, pág. 219).
Esse processo é poderosamente reforçado e amplificado pela mídia e pelas campanhas eleitorais, que se aproveitam da onda xenofóbica que acomete a Europa desde a virada neoliberal dos anos 80, forjando, assim, uma correlação entre imigração, ilegalidade e criminalidade.
Há uma diferença entre “governar o crime” e “governar através do crime”, sendo que essa última é menos democrática e não traz mais segurança, mas reforça a cultura do medo, bem como transforma o “welfare state” em “penal state” (SIMON, 2007, pág. 5).
O estrangeiro não europeu, independentemente de sua categoria (imigrante ou refugiado) se transforma em um 'inimigo adequado', símbolo e alvo de todas as ansiedades sociais, e tal rótulo é feito sob medida para legitimar uma tendência à gestão penal da pobreza (WACQUANT, pág. 219).
Assim, o tratamento do estrangeiro e do refugiado pelos órgãos de repressão identifica-se com a criminologia do outro (MORAES, 2014, pág. 44).
No Brasil de hoje[5] não há o encarceramento massivo de estrangeiros, em que pese o país possuir a terceira maior população carcerária do mundo. Nesse cenário, a adoção de medidas migratórias adequadas, a exemplo da Operação Acolhida, é de suma importância, a fim de evitar que os refugiados, que crescem exponencialmente no território nacional, sobretudo vindos da Venezuela, se tornem “inimigos adequados”, a exemplo do que ocorre há tempos na Europa e, mais recentemente, nos Estados Unidos.
6. Considerações finais
Em que pese estarmos vivendo a maior movimentação de pessoas desde a Segunda Guerra Mundial, percebe-se a insuficiência de proteção jurídica pelos instrumentos vigentes.
O constante surgimento de novos fluxos migratórios torna os conceitos tradicionais de refugiado obsoletos, o que enseja a necessidade de alargamento de tal conceito. Hoje, conforme visto, já se fala em refugiado ambiental.
Há que diferenciar corretamente refugiados e imigrantes, tendo em vista as peculiaridades do tratamento jurídico conferido a cada uma dessas categorias.
Tal diferenciação, contudo, não é tarefa simples, sobretudo tendo em vista tanto a necessidade de alargamento do conceito de refugiados quanto o constante surgimento de novos fluxos migratórios, compostos tanto por imigrantes como por refugiados. A análise de uma “hipervulnerabilidade” sob o ponto de vista socioambiental apta a ensejar a caracterização de “refugiado socioambiental” teria que ser feita caso a caso - e a linha de distinção é deveras tênue, o que prejudica o desenvolvimento adequado de políticas migratórias adequadas.
Ao revés, o que tem ocorrido, devido ao atual retrocesso do direito humanista, é que a política migratória tem cada vez mais dado mais espaço à política criminal.
Conforme visto, o encarceramento em massa em diversos países da União Europeia coincide com altos níveis de desemprego e flexibilização do trabalho, havendo convergência quanto à especial severidade na aplicação de práticas policiais, judiciais às pessoas de fenótipo não europeu, evidenciando um verdadeiro processo de criminalização de imigrantes. Assim, o estrangeiro não europeu, independentemente de sua categoria (imigrante ou refugiado) se transforma em um 'inimigo adequado', símbolo e alvo de todas as ansiedades sociais.
A demonização do estrangeiro não é exclusiva da Europa. Nos Estados Unidos, tal fenômeno atingiu o seu ápice após os atentados de 11 de setembro de 2001, quando foi declarada “guerra ao terror”, na qual estrangeiros e nacionais provenientes de países árabes são vistos como ameaças em potencial.
O Brasil de hoje, felizmente, ainda não copiou os exemplos europeu e norte-americanos. É certo que a adoção de medidas migratórias adequadas, a exemplo da Operação Acolhida, é de suma importância, a fim de evitar que os refugiados, que crescem exponencialmente no território nacional, sobretudo vindos da Venezuela, se tornem “inimigos adequados”.
7. Referências bibliográficas
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______. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. 1951. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf Acesso em: 30/01/2020
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______. Estatuto dos Refugiados. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997.
______. Lei de Migração. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017.
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[1] Os dados trazidos neste item foram extraídos do sítio eletrônico oficial do ACNUR: www.acnur.org.br. www.unhcr.org e da Operação Acolhida: https://www.gov.br/acolhida/ Acesso em 24/01/2021.
[2] Conforme informado na página oficial da Operação Acolhida (https://www.gov.br/acolhida/), na chegada à fronteira, os venezuelanos são registrados, documentados e imunizados, e recebem orientação para solicitar refúgio ou requisitar visto de residência temporária, sendo que os casos mais vulneráveis são encaminhados para abrigos temporários emergenciais. Outro eixo importante da operação é a interiorização, que tem transferido refugiados e migrantes de Roraima para outros Estados do país, onde encontram melhores oportunidades de integração socioeconômica. Segundo dados oficiais, já foram realizados mais de 890 mil atendimentos na fronteira, sendo que mais de 46.589 mil refugiados e migrantes venezuelanos já foram interiorizados.
[3] Todos os pedidos de refúgio no Brasil são decididos pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e composto por representantes do Ministério da Justiça, do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério do Trabalho, do Ministério da Saúde, do Ministério da Educação, do Departamento de Polícia Federal e de organizações da sociedade civil dedicadas a atividades de assistência, integração local e proteção aos refugiados no Brasil. O ACNUR tem assento no CONARE com direito a voz, porém sem direito a voto.
[4] Tradução livre.
[5] Em seu ensaio sobre o fenômeno da crimigração, MORAES (2016, p. 83) salienta que durante o Estado Novo houve a consolidação da aversão ao estrangeiro enquanto produto de um projeto político totalitário, nacionalista e nacionalizante, de modo que “a imigração dos indesejáveis passou a ser considerada como um problema de segurança nacional” (MORAES, 2016, p. 88).
Mestranda em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Defensora Pública do Estado de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAMILA UNGAR JOãO, . Crise dos refugiados: estatuto jurídico e atual onda de criminalização Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 fev 2021, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56131/crise-dos-refugiados-estatuto-jurdico-e-atual-onda-de-criminalizao. Acesso em: 23 dez 2024.
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