RESUMO: O presente trabalho trata da importância em analisar a crise de representatividade que atinge a democracia brasileira. O Brasil adota o regime de governo democrático misto. Entretanto, o regime representativo prevalece e, nele, os políticos são legitimados a representar a vontade dos cidadãos. Ocorre que, atualmente, a finalidade dessa democracia vem sendo desvirtuada por políticos descompromissados com o interesse público. Nesse contexto, se intensifica a crise de representatividade apresentada nesse trabalho. A questão é abordada mencionando o quão grave é a presença da incompatibilidade entre aquilo que a população almeja, e a postura dos representantes. Para tanto, os objetivos específicos abarcam a análise e as características de um Estado Democrático, a identificação das razões e consequências da crise mencionada. A abordagem foi feita pelo método dedutivo, e através de pesquisa bibliográfica, buscou-se fundamentar as possíveis razões que desencadearam o descrédito dos cidadãos para com o atual regime político. Esse trabalho ainda visa demonstrar a forma como a sociedade reage aos problemas elencados, e a infeliz possibilidade de ser instaurado um regime autoritário no país.
Palavras-chave: Democracia; Crise de Representatividade; Autoritarismo.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. 2.1 DA SEPARAÇÃO DE PODERES. 2.2 DA DEMOCRACIA. 2.2.1 Formas de democracia. 2.2.2 A importância de uma representação política eficaz. 3. CAUSAS DA DESCONEXÃO ENTRE E OS CIDADÃOS E OS POLÍTICOS ELEITOS. 3.1 ATUAÇÃO DOS PARTIDOS POLÍTICOS COMO “MÁQUINAS DE PODER”. 3.1.1 A inobservância da finalidade pública na busca por interesses pessoais. 3.1.2 O relevante descumprimento das promessas de campanha. 3.1.3 O abismo entre os políticos e os cidadãos após o pleito eleitoral. 3.2 CRESCIMENTO DA DESIGUALDADE SOCIAL E DA VIOLÊNCIA. 3.3 CORRUPÇÃO INSTITUCIONALIZADA. 4. ENFRAQUECIMENTO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA COMO CONSEQUÊNCIA DA CRISE DE REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA. 4.1 ESCOLHA DE REPRESENTANTES DESQUALIFICADOS COMO FORMA DE PROTESTO. 4.2 ELEVAÇÃO NAS TAXAS DE ABSTENÇÃO. 4.3 ABERTURA PARA INSTAURAÇÃO DE GOVERNOS AUTORITÁRIOS. 4.3.1 A “ineficácia” da democracia e a sensação de efetividade de regimes ditatoriais. 4.3.2 O oportunismo de candidatos adeptos a ideologias autoritárias frente à fragilização da democracia representativa. 5. CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O Brasil, atualmente, enfrenta uma grave situação, na qual há uma gritante desarmonia entre os cidadãos e os políticos eleitos. Isso é perceptível através do crescimento do número de abstenções a cada eleição, pela grande quantidade de votos brancos e nulos, bem como pela escolha de políticos desqualificados como forma de protesto.
A referida desconexão, entre a população e seus representantes, acabou por desencadear uma crise de representatividade na democracia brasileira, que consiste no fato de que o povo não se sente representado pelos governantes eleitos, já que, frequentemente, estes se posicionam de maneira oposta aos anseios daqueles.
Tendo em vista à enorme proporção que essa crise de representatividade vem tomando no país, é essencial identificar suas prováveis causas, bem como demonstrar o perigo que ela representa para o Estado Democrático de Direito brasileiro como um todo.
Embora tenha sido adotada como regime de governo, no Brasil, a democracia semidireta, na qual existe a possibilidade de os cidadãos, em algumas determinadas situações, decidirem sobre questões sociais diretamente, por meio do plebiscito, do referendo e também da iniciativa popular, prevalece o sistema representativo.
No sistema de democracia representativa, os políticos são eleitos pelo povo, para, representando toda a população, estabelecerem as diretrizes do país, respeitando sempre a vontade popular e atuando com a finalidade de alcançar as metas relacionadas ao interesse público.
Dessa forma, os governantes possuem o dever de tomar decisões que reflitam a vontade dos cidadãos, garantindo assim, a soberania popular. Ou seja, os políticos eleitos devem respeitar os anseios sociais, trabalhando para concretizá-los sempre que possível.
Ocorre que, atualmente, são cada vez mais comuns situações em que, em busca de interesses próprios, as atitudes dos representantes destoam, quase que completamente, das necessidades sociais. Tal realidade reflete o fato de que os políticos não vêm cumprindo com honestidade o papel que lhe é constitucionalmente designado, qual seja, atuar de forma capaz de expressar a vontade popular.
Neste viés, é perceptível uma crescente reprovação da população para com as instituições democráticas, tendo em vista a manutenção e até mesmo o aumento de problemas comuns da realidade brasileira, como a desigualdade, a violência e a corrupção.
Tal insatisfação desencadeia o enfraquecimento da democracia, que pode ocasionar uma abertura para instauração de regimes autoritários, uma vez que o sistema representativo se mostra ineficaz e controverso, pois é incapaz de traduzir os ideais populares.
Na presente monografia, o tema apresentado é a crise de representatividade como uma fragilização do ideal democrático brasileiro. A abordagem foi realizada pelo método dedutivo, e foi utilizada como metodologia, exclusivamente, a pesquisa bibliográfica.
O objetivo geral consiste em analisar o enfraquecimento da democracia brasileira que surge da incompatibilidade entre a vontade popular e a conduta dos políticos eleitos, partindo-se do seguinte questionamento: como o regime democrático, no Brasil, é afetado pelo distanciamento entre a vontade dos cidadãos e os posicionamentos adotados pelos representantes políticos?
Sendo assim, para alcançar tal propósito, serão apresentados como objetivos específicos: a análise dos pilares de um Estado Democrático de Direito, com ênfase na importância da efetiva representação política para sua manutenção; a identificação dos principais fatores que ocasionam a distância entre os anseios dos cidadãos e o comportamento dos representantes eleitos; e as consequências da referida crise de representatividade.
Saliente-se que, objetivando alcançar a melhor forma de compreender o referido tema, o presente trabalho, primeiramente, apontará a conceituação e as principais características de um Estado Democrático de Direito, abordando os direitos e garantias fundamentais, a separação de poderes com o sistema de freios e contrapesos, e as formas de democracia.
Posteriormente, será apresentada como vem se manifestando a má atuação dos partidos políticos, o agravamento dos problemas sociais, e a manifesta desconfiança social que é nutrida nos cidadãos pela corrupção, como uma forma de justificar a insatisfação popular com a democracia representativa.
Por fim, para demonstrar como a crise de representatividade é capaz de enfraquecer, ou mesmo, de romper com o regime democrático, serão apontadas consequências perceptíveis no atual cenário político brasileiro, como a opção por candidatos desqualificados, o alto índice de abstenção, e o espaço que vem ganhando políticos adeptos a ideologias autoritárias.
2. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O termo “Estado Democrático de Direito” possui um significado que, em sua essência, é capaz de assegurar os direitos e garantias fundamentais dos seres humanos em geral. Primeiro, por estar intrinsecamente ligado à ideia de soberania popular, na qual o povo é a fonte do poder, depois, por trazer a ideia de imperatividade do ordenamento jurídico.
Como bem explica Di Pietro:
Com a Constituição de 1988, optou-se pelos princípios próprios do Estado Democrático de Direito. Duas ideias são inerentes a esse tipo de Estado: uma concepção mais ampla do princípio da legalidade e a ideia de participação do cidadão na gestão e no controle da Administração Pública. No que diz respeito ao primeiro aspecto, o Estado Democrático de Direito pretende vincular a lei aos ideais de justiça, ou seja, submeter o Estado não apenas à lei em sentido puramente formal, mas ao Direito, abrangendo todos os valores inseridos expressa ou implicitamente na Constituição. No tocante ao segundo, é inerente ao conceito de Estado Democrático de Direito a ideia de participação do cidadão na gestão e no controle da Administração Pública, no processo político, econômico, social e cultural; essa ideia está incorporada na Constituição não só pela introdução da fórmula do Estado Democrático de Direito – permitindo falar em democracia participativa –, como também pela previsão de vários instrumentos de participação, podendo-se mencionar, exemplificativamente, o direito à informação (art. 5o, XXXIII), o direito de denunciar irregularidades perante o Tribunal de Contas (art. 74, § 2o), a gestão democrática da seguridade social (art. 194, VII), da saúde (art. 198, III), do ensino público (art. 206, VI), sem falar em inúmeras normas contidas na legislação ordinária prevendo também essa participação, como ocorre na Lei Geral de Telecomunicações, na Lei de Licitações e Contratos, na Lei de Processo Administrativo (2018, p. 71).
Ao fazer referência a esse tipo de Estado, geralmente é feita uma associação imediata à realização de valores necessários a boa convivência humana, como a igualdade, a liberdade, a propriedade e, principalmente, a dignidade da pessoa humana.
A referida ligação é bastante plausível, uma vez que, um país que se constitui em um Estado Democrático de Direito deve, necessariamente, prezar, de forma real e consistente, pela efetividade dos direitos e garantias fundamentais de todos os indivíduos que nele se encontram.
O Brasil é um país que foi constituído em um Estado Democrático de Direito, e a Constituição Federal de 1988, em seu título II, traz um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, dentre os quais se encontram os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, os direitos da nacionalidade, os direitos políticos, e os direitos de partidos políticos.
Importa ressaltar que o rol trazido pela Carta Magna é meramente exemplificativo, pois, os direitos e garantias fundamentais podem ser encontrados ao longo de todo o texto constitucional e nas leis infraconstitucionais, bem como em tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja parte.
É o que dispõe o §2º do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Exemplo disso são os tratados internacionais sobre direitos humanos que, aprovados através do rito descrito no parágrafo 3º, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, serão considerados como emendas constitucionais:
Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Atualmente, no Brasil, existem duas normas aprovadas dessa forma, e ambas tratam de direitos das pessoas com deficiência. A primeira é a Convenção da ONU sobre as pessoas com deficiência, e a segunda é o Tratado de Marraqueche, que visa facilitação ao acesso de obras às pessoas cegas ou com deficiência visual.
O professor Pedro Lenza conceitua direitos e garantias fundamentais da seguinte maneira:
Os direitos são bens e vantagens prescritos na norma constitucional, enquanto as garantias são os instrumentos através dos quais se assegura o exercício dos aludidos direitos (preventivamente) ou prontamente os repara, caso violados (2018, p. 1177).
Nesse contexto, importa ressaltar que há uma diferenciação entre direitos e garantias fundamentais e direitos humanos:
Em que pese sejam ambos os termos ('direitos humanos' e 'direitos fundamentais') comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo 'direitos fundamentais' se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão 'direitos humanos' guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional) (SARLET, 2006, p. 36).
No mesmo sentido dispõe Marcelo Freire Sampaio Costa:
A distinção mais relevante entre as opções de nomenclatura de "direitos humanos" e "direitos fundamentais" cinge-se à questão da concreção positiva. Os direitos fundamentais possuem sentido preciso, restrito, despido da ideia de atemporalidade e vigência para todos os povos, pois estão juridicamente institucionalizados na esfera do direito positivo de determinado Estado, portanto, também limitados ao lapso temporal de vigência da Carta de direitos desse ente. Os direitos humanos, por sua vez, assumem contorno bem mais amplo, porque estão voltados à previsão em declarações e convenções internacionais com a pretensão de perenidade (2010, p. 32).
Apresentadas as referidas diferenciações, é válido mencionar que um Estado Democrático de Direito respeita não apenas os direitos e garantias fundamentais que estão instituídos em seu ordenamento jurídico interno, mas também deve respeito aos direitos humanos, uma vez que a proteção dos indivíduos e a valorização da dignidade da pessoa humana devem ser objetivos perseguidos da forma mais ampla possível.
Para assegurar a concreta existência e a correta execução dos direitos e garantias fundamentais, há, nos Estados Democráticos de Direito, uma sujeição de todos que nele se encontram, inclusive das autoridades públicas e representantes políticos, às regras de direito.
Tais regras jurídicas, por sua vez, são elaboradas pelo povo, geralmente através de seus representantes eleitos, ou seja, através da democracia representativa, mas sempre devem ser fundamentadas e limitadas pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Ao enfatizar que todos os indivíduos devem se sujeitar ao direito e que há uma imperatividade do ordenamento jurídico, é importante afirmar que os direitos e garantias devem ser observados em qualquer tipo de relação, seja envolvendo particulares, seja envolvendo o poder público.
Essa vinculação de todos ao direito é chamada por alguns doutrinadores, como José Afonso da Silva, de eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais. Ao mencionarem a eficácia vertical, referem-se ao fato de que o Estado está limitado pelos direitos fundamentais.
Obrigar o Estado a respeitar garantias, significa dizer que ele não pode violar os direitos dos cidadãos. Já a eficácia horizontal reflete a oponibilidade dos direitos aos particulares, nas relações privadas, ou seja, é o direito limitando a autonomia privada.
Luiz Guilherme Marinoni enfatiza a vinculação do Estado e dos particulares aos direitos e garantias fundamentais da seguinte maneira:
A norma de direito fundamental, independentemente da possibilidade de sua subjetivação, sempre contém valoração. O valor nela contido, revelado de modo objetivo, espraia-se necessariamente sobre a compreensão e atuação do ordenamento jurídico. Atribui-se aos direitos fundamentais, assim, uma eficácia irradiante. As normas que estabelecem direitos fundamentais, se podem ser subjetivadas, não pertinem somente ao sujeito, mas sim a todos aqueles que fazem parte da sociedade (2004, p. 172).
No mesmo sentido:
O Estado de direito é o modelo de Estado (mais civilizado que o humano já inventou) em que todos estão submetidos à lei (na verdade, ao direito, do qual a lei faz parte), incluindo tanto o indivíduo como o próprio Estado. Não existe verdadeiro Estado de direito sem normas (válidas) reguladoras da atividade pública e privada (normas que fixam direitos, deveres e que impõem limites), sem a separação dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) assim como sem a previsão de um conjunto de direitos fundamentais (seguindo a tradição do nosso direito – civil law -, esse conjunto normativo vem escrito ou positivado em várias fontes: leis, constituições e tratados internacionais). É inconcebível o Estado de direito com poderes desregulados e atos de poder sem controle. Todos os poderes são limitados por deveres jurídicos, relativos não somente à forma, mas também aos conteúdos do seu exercício, cuja violação é causa de invalidade judicial dos atos e, ao menos em teoria, de responsabilidade de seus autores (FERRAJOLI, 2014, p. 790).
Nesse contexto, todas as normas constitucionais e legais, elaboradas democraticamente por representantes políticos, bem como todos os princípios e pensamentos norteadores da aplicação das normas jurídicas, devem ser analisados, obrigatoriamente, sob a ótica da dignidade da pessoa humana. Qualquer dispositivo ou posicionamento que a desrespeite, deve ser necessariamente combatido.
Sobre a força e importância da dignidade da pessoa humana em nosso ordenamento jurídico, Pedro Lenza explica que:
A dignidade da pessoa humana é a regra matriz dos direitos fundamentais, e pode ser bem definida como o núcleo essencial do constitucionalismo moderno. Assim, diante de colisões, a dignidade servirá para orientar as necessárias soluções de conflitos (2018, p. 1571).
Nobre Júnior enfatiza a relevância do tema:
Assim, respeitar a dignidade da pessoa humana, traz quatro importantes consequências: a) igualdade de direitos entre todos os homens, uma vez integrarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; b) garantia da independência e autonomia do ser humano, de forma a obstar toda coação externa ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como toda atuação que implique na sua degradação e desrespeito à sua condição de pessoa, tal como se verifica nas hipóteses de risco de vida; c) não admissibilidade da negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou imposição de condições sub-humanas de vida. Adverte, com carradas de acerto, que a tutela constitucional se volta em detrimento de violações não somente levadas a cabo pelo Estado, mas também pelos particulares (2000, p. 04).
Tamanho destaque atribuído à dignidade da pessoa humana se deve, também, ao fato de que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo primeiro, a menciona como um fundamento do Estado Democrático de Direito.
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
O dispositivo constitucional ora reproduzido, além de evidenciar a enorme relevância que a Constituição Federal atribui à dignidade da pessoa humana, afirma que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, o que pressupõe a existência de uma supremacia constitucional, uma vez que, como já mencionado, todos estão submetidos às regras vigentes no ordenamento jurídico, e todas elas, são fundamentadas na Carta Maior.
Ou seja, enfatizar a supremacia constitucional como característica de um Estado Democrático de Direito, significa dizer que todas as demais normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro, obrigatoriamente, sob pena de serem consideradas inconstitucionais, devem estar adequadas aos parâmetros estabelecidos pela Constituição Federal.
Essa preponderância constitucional existe pelo fato de que a Carta Magna está no ápice do sistema jurídico brasileiro, e é ela quem disciplina a própria estrutura do país, bem como as normas fundamentais que devem ser prioridade em toda a sociedade.
Sobre tal aspecto, José Afonso da Silva traz uma brilhante explicação em sua obra “Curso de Direito Constitucional Positivo”:
O princípio da supremacia da constituição é a pedra angular em que se assenta o edifício moderno do direito político. Significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se acham as normas fundamentais do Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas. Desse princípio, resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a Constituição. As que não forem compatíveis com ela são inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como fundamento de validade das inferiores (2018, p. 49).
José Renato Nalini possui raciocínio semelhante ao dispor que:
O princípio da supremacia constitucional significa encontrar-se a Constituição no vértice do sistema normativo. Ela é o fundamento de validade de todas as demais normas, pois estabelece em seu corpo a forma pela qual a normatividade infraconstitucional será produzida. Todas as demais leis e atos normativos são hierarquicamente inferiores à Constituição. E se com ela incompatíveis, não têm lugar no sistema jurídico, por não haver possibilidade de coexistência entre a Constituição e a norma inconstitucional (1998, p.34).
Ainda sobre o tema, Luís Roberto Barroso expressa seu entendimento afirmando que:
A supremacia constitucional é a nota mais essencial do processo de interpretação constitucional. É ela que confere à Lei Maior o caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento, de forma tal que nenhum ato jurídico possa subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier seu sentido (2008, p.107).
Como se pode notar, ao afirmar que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, não há como deixar de analisar os direitos e garantias fundamentais como prerrogativas dos cidadãos e dever do Estado, uma vez que são trazidos pela Constituição Federal, norma suprema, e fundamentados na dignidade da pessoa humana, base de todo ordenamento jurídico e princípio fundamental.
Entretanto, além da supremacia constitucional e do respeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos e garantias fundamentais, existem outras características que norteiam o ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista a constituição do Brasil em Estado Democrático de Direito, tais como a separação dos poderes e a democracia.
2.1 DA SEPARAÇÃO DE PODERES
A separação dos poderes começou a ser delineada por Aristóteles em “A Política”. Nessa obra, o pensador trazia três funções distintas que eram exercidas exclusivamente pelo soberano. Tais funções consistiam em editar e aplicar as normas, bem como julgar os conflitos desencadeados pela aplicação das mesmas aos casos concretos, uma vez que, por serem editadas em caráter geral, no momento da aplicação ocorriam desconformidades diante das peculiaridades de cada situação.
Apesar de identificar tais funções: editar normas, aplicar normas e julgar conflitos delas decorrentes, Aristóteles as apresentava sendo desempenhadas por um único indivíduo, que era o soberano. Ou seja, apenas um órgão exercia todas as funções, embora se tratassem de funções distintas.
Foi Montesquieu, em sua obra “O Espírito das Leis”, que identificou e aprimorou a tripartição de poderes da forma que é estabelecida no ordenamento jurídico brasileiro atualmente. Na obra, ele buscou evidenciar que a forma mais efetiva de garantir funcionalidade entre o governo e a população seria atribuindo às funções de criar normas, aplicá-las e julgar os conflitos delas decorrentes, a órgãos distintos, isto é, realizando a separação dos poderes.
Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou mesmo o Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria o Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares (MONTESQUIEU, 1973, p.157).
Como bem leciona o professor Pedro Lenza:
O grande avanço trazido por Montesquieu não foi a identificação do exercício de três funções estatais. De fato, partindo desse pressuposto aristotélico, o grande pensador francês inovou dizendo que tais funções estariam intimamente conectadas a três órgãos distintos, autônomos e independentes entre si. Cada função corresponderia a um órgão, não mais se concentrando nas mãos únicas do soberano (2018, p. 571).
Entretanto, é importante enfatizar, que o poder estatal é uno, indivisível e indelegável. Isso é, o poder é um só, e não é passível de divisão, consistindo em um atributo exclusivo do Estado que emana do povo, já que a Carta Magna atribui a estes, a titularidade do poder.
O termo “separação de poderes” é utilizado para designar uma espécie de desconcentração das funções do Estado, que, por sua vez, consiste em uma forte e importante característica do Estado Democrático de Direito, já que é por meio do exercício das funções de órgãos diversos, que se torna possível conter o arbítrio estatal, e, consequentemente, proteger os indivíduos contra ofensas aos direitos e garantias fundamentais.
O poder político, como fenômeno sociocultural, é uno e indivisível, uma vez que aquela “capacidade de impor”, decorrente de seu conceito, não pode ser fracionada. Embora realidade única, ele manifesta-se por meio de funções, que são, fundamentalmente, de três ordens, a saber: a executiva, a legislativa e a judiciária. Essas funções, por muito tempo, houveram-se concentradas junto a determinado organismo estatal. O fenômeno da separação de Poderes não é senão o fenômeno da separação das funções estatais, que consiste na forma clássica de expressar a necessidade de distribuir e controlar o exercício do Poder político entre distintos órgãos do Estado. O que corretamente, embora equivocadamente, se convencionou chamar de separação de Poderes, é, na verdade, a distribuição e divisão de determinadas funções estatais a diferentes órgãos do Estado. Deveras, como o poder é uno e incindível, não há falar em separação de Poderes, mas, sim, em separação de funções do Poder político ou simplesmente de separação de funções estatais. Insistimos: não é o poder que é divisível, mas, sim, as funções que o compõem e se manifestam por distintos órgãos do Estado. (CUNHA, 2018, p. 515).
Nesse sentido:
A separação de poderes tem como objetivo fundamental preservar a liberdade individual, combatendo a concentração do poder, isto é, a tendência ‘absolutista’ de exercício do poder político pela mesma pessoa ou grupo de pessoas. A distribuição do poder entre órgãos estatais dotados de independência é tida pelos partidários do liberalismo político como uma garantia de equilíbrio político que evita ou, pelo menos, minimiza os riscos de abuso de poder. O Estado que estabelece a separação dos poderes evita o despotismo e assume feições liberais. Do ponto de vista teórico, isso significa que na base da separação dos poderes encontra-se a tese da existência de nexo causal entre a divisão do poder e a liberdade individual. A separação dos poderes persegue esse objetivo de duas maneiras. Primeiro, impondo colaboração e o consenso de várias autoridades estatais na tomada de decisões. Segundo, estabelecendo mecanismos de fiscalização e responsabilização recíproca dos poderes estatais, conforme o desenho institucional dos freios e contrapesos (DIMOULIS, 2008, p. 145).
A Constituição Federal, em seu artigo 2º, dispõe que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Os termos “independentes” e “harmônicos” significam que, no tocante ao exercício das suas funções, inexiste subordinação entre eles, e que um poder deve respeitar o outro.
Importante aspecto é que a Constituição Federal, em seu artigo sessenta, traz a separação de poderes como uma cláusula pétrea, isto é, como uma limitação material ao poder constituinte reformador, o que significa que não poderão ser propostas Emendas Constitucionais tendentes a abolir tal matéria.
A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(...)
III - a separação dos Poderes;
Por conta da mencionada tripartição do poder, cada órgão possui suas próprias funções, que são as conhecidas “funções típicas”, ou seja, cada poder fica responsável pela realização daquilo que, na sua criação, lhe foi designado especificamente. São as funções predominantes de cada poder, inerentes a natureza do órgão.
Porém, existem as “funções atípicas”, que consistem no desempenho da função predominante de um poder, por outro. Isto é, além de exercer a função a ele inerente, o órgão também executará função atribuída a outro poder, desde que haja previsão constitucional para tal, sob pena de ferir o princípio da separação de poderes.
O Poder Legislativo, representado no âmbito federal pelos deputados federais e senadores, no âmbito estadual pelos deputados estaduais, e no âmbito municipal pelos vereadores, é responsável pela elaboração de leis, isto é, os representantes do legislativo devem criar, aprovar e rejeitar leis, dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
Além disso, o Poder Legislativo ainda tem como função típica a fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial do Executivo. Isto é, os deputados possuem a atribuição de fiscalizar as contas do Presidente da República, dos Governadores de Estado e dos Prefeitos Municipais.
Atipicamente, o Poder Legislativo pode exercer a função do executivo, quando dispõe sobre sua própria organização, provendo cargos, concedendo férias aos seus servidores, etc. Pode ainda, exercer a função do judiciário, por exemplo, ao julgar o Presidente da República por crime de responsabilidade.
É o que expressa o artigo 52, inciso I, da Constituição Federal.
Compete privativamente ao Senado Federal:
I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;
O Poder Executivo, representado tanto pelo Presidente da República, quanto por Governadores e Prefeitos, pratica atos de chefia de Estado, chefia de governo e atos de administração, em sua função típica. De forma atípica, o executivo pode praticar atos referentes à função do judiciário, ao julgar, apreciando defesas, os recursos administrativos.
O artigo 62 da Lei Maior, ao dispor que “em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”, mostra que o Executivo, além de administrar e julgar, ainda pode exercer a função legislativa.
Já o Poder Judiciário, composto por juízes e tribunais, é responsável por exercer a função jurisdicional, ou seja, tem como função típica dizer o direito no caso concreto, decidindo os conflitos que lhe são levados, quando da aplicação da lei. A função jurisdicional é considerada como a manifestação da soberania do Estado e é efetivada através de processos judiciais.
Segundo Carlos Cintra, a função jurisdicional pode ser conceituada como:
Uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça. Essa pacificação é feita mediante a atuação da vontade do direito objetivo que rege o caso apresentado em concreto para ser solucionado; e o Estado desempenha essa função sempre por meio do processo, seja expressando imperativamente o preceito (através de uma sentença de mérito), seja realizando no mundo das coisas o que o preceito estabelece (através da execução forçada) (1996, p. 129).
Em sua função atípica, o Poder Judiciário pode exercer atividade legislativa, quando os tribunais editam seus regimentos internos, e pode também, exercer a função executiva, que ocorre, por exemplo, quando concede licenças e férias aos magistrados e serventuários.
Conforme dispõe o artigo 96, inciso I, alínea “f” da Constituição Federal.
Compete privativamente:
I - aos tribunais:
(...)
f) conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados;
Apesar de independentes e harmônicos, entre os poderes existe uma forma de controle, é o chamado “sistema de freios e contrapesos”, que consiste em um mecanismo através do qual pode haver interferências de um poder no outro, isto é, há um controle recíproco, visando combater abusos e manter o equilíbrio entre os poderes da federação.
Obviamente, são muitas as virtudes que podem ser associadas ao sistema de “freios e contrapesos”. Fundamentalmente, tal esquema assegura a presença de múltiplos filtros dentro do processo de tomada de decisões políticas: por um lado, tais filtros dificultam a aprovação de leis “apressadas”; por outro, favorecem a possibilidade de que as mesmas se enriqueçam com novos aportes. A primeira das virtudes mencionadas permite um saudável “esfriamento” das decisões: as iniciativas de lei devem se “pensadas duas vezes” antes de resultarem aprovadas (GARGARELLA, 2006, p. 178).
O sistema de freios e contrapesos, basicamente, disciplina que cada poder tem autonomia para exercer suas funções típicas e atípicas, no entanto, é controlado pelos demais poderes. Esse controle consiste em uma fiscalização que um poder realiza com relação a outro.
Um exemplo da atuação desse mecanismo de controle é a possibilidade de o Poder Judiciário declarar uma lei, elaborada pelo Poder Legislativo, inconstitucional. É o que mostra o artigo 102, inciso I, alínea “a”, da Constituição Federal:
Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.
Outro exemplo do exercício do sistema de freios e contrapesos é a possibilidade de o Chefe do Executivo vetar um projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional (legislativo), bem como a possibilidade de o Poder Legislativo sustar lei delegada editada pelo executivo.
Tal norma se encontra expressa no artigo 49, inciso V, da Carta Magna.
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
(...)
V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;
Pode-se mencionar, ainda, como exemplo desse controle recíproco, a nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal (poder judiciário), que é realizada pelo Presidente da República (poder executivo), depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal (poder legislativo).
É perceptível que o texto constitucional traz inúmeras situações em que um poder exerce controle sobre o outro, tais disposições são de grande importância, já que as circunstâncias nelas contidas, sempre são disciplinadas com vistas a evitar o desvio da finalidade pública, através do controle de um órgão sobre o outro.
Percebe-se que o sistema de freios e contrapesos é extremamente democrático, e visa garantir a estabilidade do Estado, tendo em vista a possibilidade de assegurar o cumprimento regular dos direitos e garantias fundamentais, bem como evitar arbítrios por parte dos poderes estatais.
Em suma, a separação dos poderes é uma característica essencial de um Estado Democrático de Direito, e o referido mecanismo é capaz de equilibrar a tripartição de poderes, uma vez que é exercido como um meio de moderar exageros no exercício de quaisquer funções, mantendo a harmonia entre as instituições democráticas.
2.2 DA DEMOCRACIA
A democracia é reconhecida como um dos alicerces do Estado Democrático de Direito, e consiste em um regime político oposto a autocracia, no qual o poder pertence ao povo, isto é, a vontade popular é o elemento que legitima o poder estatal.
Paulo Bonavides define a democracia como:
Aquela forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto – a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo de todo o poder legítimo (1980, p. 17).
O autor ora mencionado, sobre o mesmo tema, ainda dispõe que:
Variam, pois de maneira considerável as posições doutrinárias acerca do que legitimamente se há de entender por democracia. Afigura-se-nos, porém que substancial parte dessas dúvidas se dissipariam, se atentássemos na profunda e genial definição lincolniana de democracia: governo do povo, para o povo, pelo povo (2018, p. 167).
Kleber Pinto elenca como as principais características da democracia:
A participação efetiva do povo na formação da vontade do Estado, concretizando dessa forma a soberania popular; Estado de Direito fundado sobre uma Constituição, que seja preferencialmente rígida, para evitar ataques à própria democracia; constitucionalização de direitos e garantias fundamentais, especialmente os direitos civis clássicos à liberdade e à igualdade; sufrágio universal e secreto como regra; constitucionalização do princípio da separação das funções soberanas; e forma republicana com mandato político eletivo e temporário (2013, p. 167).
O que merece destaque é que em uma democracia se prioriza a vontade da população, ou seja, a presença da soberania popular, assim como a liberdade e a igualdade dos cidadãos, é algo que deve funcionar como pilar dos Estados Democráticos.
A Constituição da República Federativa do Brasil, no parágrafo único do seu artigo primeiro, dispõe que “todo poder emana do povo”. Evidentemente, o Brasil, constituído em um Estado Democrático de Direito, adotou a democracia como regime de governo.
2.2.1 Formas de democracia
Com passar do tempo, a democracia foi se aperfeiçoando e ganhando novos contornos de acordo com as peculiaridades de cada Estado que a adota. Assim, a democracia não possui uma única forma, nem consiste em um sistema de governo imutável.
A Constituição da República Federativa do Brasil, ao trazer, no parágrafo único do seu artigo primeiro, a afirmação de que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, expressa que o Brasil adotou como regime de governo a democracia semidireta.
Isso se deve ao fato de que, atualmente, são reconhecidas três formas de democracia: democracia direta, democracia indireta e democracia semidireta ou mista. Na democracia direta, o povo não transmite os poderes aos representantes políticos, isto é, são os próprios cidadãos que tomam as decisões fundamentais do Estado.
Esses cidadãos expressam suas opiniões e decidem os rumos do Estado em que habitam, diretamente, sem intermediários. Nesse caso, não há eleições diretas aptas a transmitir o poder a alguns cidadãos, que o exercerão legitimamente, em nome de todos, por um determinado tempo.
Na atualidade, é incomum a adoção desse regime, tendo em vista a dificuldade de funcionamento diante da impossibilidade da tomada de decisão, por um grande número de pessoas, ser unânime e harmônica, o que pode ocasionar diversos transtornos sociais.
É o que dispõe Marcos Ramayana:
Na democracia direta, não há transmissão de poderes do povo a representantes. Aqueles que detêm o direito de votar são os próprios responsáveis pelo exercício das funções políticas. Essa forma de democracia hoje é bastante rara, dada a dificuldade de se estabelecer em locais com grandes populações, que são a tendência moderna (2005, p. 47).
Nesse sentido Ferreira Filho é bastante severo ao dizer que:
Hoje, nenhum Estado pode adotá-la, já que não é possível reunir milhões de cidadãos, frequente e quase diuturnamente, para que resolvam os problemas comuns. Sem se falar na incapacidade de que sofre esse povo de compreender os problemas técnicos e complexos do Estado-província (2017, p. 81).
Além disso, em democracias diretas, há a possibilidade de que a igualdade não seja assegurada, pois os governos não são inclusivos, é o que bem explica Bonavides, quando diz que:
A escura mancha que a crítica moderna viu na democracia dos antigos veio, porém da presença da escravidão. A democracia, como direito de participação no ato criador da vontade política, era privilégio de ínfima minoria social de homens livres apoiados sobre a esmagadora maioria de homens escravos. De modo que autores mais rigorosos asseveram que não houve na Grécia democracia verdadeira, mas aristocracia democrática, o que evidentemente traduz um paradoxo (2018, p. 268).
A democracia indireta, também chamada de democracia representativa, possui como característica a existência de representantes políticos, que são eleitos pelos cidadãos, para que administrem o Estado por um determinado período de tempo. Aqui, o povo delega a função de tomar as decisões fundamentais do país para os governantes eleitos, que representam seus ideais.
Nesse caso, o povo continua sendo titular do poder, no entanto, não o exerce diretamente, mas sim através de políticos eleitos periodicamente pelo voto. É o que ocorre no Brasil, quando, através do voto direto, secreto, universal, periódico e obrigatório, os cidadãos elegem os chefes do executivo, bem como os membros do legislativo.
Cabe mencionar que o direito de escolher seus representantes, só poderá ser retirado dos cidadãos brasileiros através da aprovação de uma nova constituição, uma vez que o inciso segundo, do parágrafo quarto, do artigo sessenta, da Lei Maior, traz o voto direto, secreto, universal e periódico como uma cláusula pétrea, o que impossibilita abolição de tal matéria, ainda que por meio de Emenda Constitucional.
A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(...)
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
Ocorre que, apesar de o Brasil utilizar a democracia representativa, a Carta Magna assegura a participação direta dos cidadãos em algumas situações:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Ao dizer que o poder pode ser exercido diretamente, a Constituição Federal faz menção ao exercício da democracia direta. Já no artigo quatorze do mesmo diploma normativo, foram explicitadas as maneiras de execução dessa espécie de democracia no Brasil:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I – plebiscito;
II – referendo;
III – iniciativa popular.
Sobre o tema, a professora Maria Vitória de Mesquita Benevides declara que:
O princípio da democracia semidireta está explícito no primeiro artigo da Constituição Federal brasileira de 1998, o qual afirma o exercício do poder pelo povo através de representantes eleitos ou “diretamente”. A combinação de representação com formas de democracia direta configura um regime de democracia semidireta (2003, p. 111).
Quando se fala em plebiscito e referendo, é importante mencionar que ambos consistem em maneiras de exercício da democracia direta no Brasil. Entretanto, no plebiscito, a população decide sobre uma matéria antes de ela ser elaborada pelo Congresso Nacional. Já no referendo, a população só se manifesta após a apresentação pelo Congresso Nacional de uma matéria pronta.
Tanto o plebiscito, quanto o referendo são disciplinados, além da Carta Magna, pela lei nº 9.709/98, que, dentre outros aspectos, estabelece em seus artigos terceiro e quarto, que nas questões de relevância nacional e na incorporação, subdivisão e desmembramento dos Estados, o plebiscito e o referendo serão obrigatoriamente convocados.
Art. 3º Nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, e no caso do §3º do art. 18 da Constituição Federal, o plebiscito e o referendo são convocados mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei.
Art. 4º A incorporação de Estados entre si, subdivisão ou desmembramento para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, dependem da aprovação da população diretamente interessada, por meio de plebiscito realizado na mesma data e horário em cada um dos Estados, e do Congresso Nacional, por lei complementar, ouvidas as respectivas Assembleias Legislativas.
A iniciativa popular, assim como o plebiscito e o referendo, também funciona como mecanismo de exercício da democracia direta brasileira, e consiste na possibilidade, observados os requisitos elencados na Carta Magna, de a população propor projetos de lei.
Os pressupostos para que cidadãos apresentem, no âmbito federal, um projeto de lei à Câmara dos Deputados são: a subscrição do projeto por no mínimo um por cento do eleitorado nacional, distribuído por pelo menos cinco estados, por no mínimo três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
Um exemplo do exercício de iniciativa popular é a Lei da Ficha Limpa, que surgiu de uma campanha organizada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, e reuniu o apoio de um milhão e seiscentos mil eleitores de todo o país, acabando por entrar em vigor em 2010.
Como se pode notar, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 adotou a democracia semidireta, ou democracia mista. Isso porque, como base do sistema eleitoral brasileiro, existe a democracia representativa, que é preponderante, na qual são os cidadãos elegem políticos para representá-los.
Entretanto, através dos dispositivos retromencionados, foi reconhecida a possibilidade do exercício do poder de forma direta pelo povo, através de mecanismos característicos da democracia direta, como o plebiscito, o referendo, e a iniciativa popular.
2.2.2 A importância de uma representação política eficaz
Para que um regime democrático exista e se mantenha íntegro, é necessário que elementos como a soberania popular, a representatividade real, e a efetividade dos direitos e garantias fundamentais, em especial a igualdade e a liberdade, estejam intensamente presentes na sociedade, uma vez que se tratam da essência da democracia.
Em virtude da potencialidade da soberania popular em um estado democrático, é que os cidadãos possuem autonomia para escolher, dentre as diversas ideologias adotadas pelos inúmeros partidos políticos existentes, aquela que melhor lhe representa.
Cada partido político é fundado com base em uma ideologia, e a ele, são filiados políticos que se comprometem em perseguir os objetivos que estão elencados na essência do seu programa, e que devem ser fiéis aos ideais característicos do referido partido.
No Brasil existem diversos partidos, e, por adotarem ideologias variadas, apresentam uma ampla possibilidade de representação, o que, consequentemente, oportuniza aos cidadãos, o poder de escolha, ou seja, a população possui opções diversas.
Tal aspecto se trata do pluralismo político, fundamento da República Federativa do Brasil, consistente no reconhecimento de que a sociedade brasileira é formada por vários grupos, e que há a possibilidade de existir inúmeras opiniões, sendo devido o respeito e a igualdade a todas elas.
Diante disso, a população tem o poder de delegar a função de administrar seu Estado, aos indivíduos que possuem ideais compatíveis com suas convicções e com aquilo que almejam para o seu país, sendo assim, votam em candidatos filiados aos partidos que mais se assemelha a suas perspectivas.
Por essa razão, a representatividade entre políticos e eleitores deve existir de fato. Ou seja, é necessário que os representantes não tomem decisões que destoem do interesse social, já que eles não são donos do poder, mas apenas o exerce, o que os mantêm sempre comprometidos com a população.
Como bem leciona Kleber Pinto:
O sistema representativo é um conjunto de elementos ou instituições que possibilitam que pessoas venham a exercer, da forma mais legítima possível, em nosso nome e lugar, esse poder maior de autodestinação do Estado, esse ‘poder dos poderes’, a soberania (2013, p. 195).
No mesmo sentido:
Administrar é função de serviço (o semantema min, do sânscrito, carrega esse sentido). É cuidar de um interesse de que não se é propriamente dono. Como dizia Cirne Lima, é a “atividade de quem não é dono, não é senhor”. Com lealdade, eficiência e discrição, a Administração serve o legislador, serve o Judiciário e serve, principalmente, o governo do dia. Mas antes de tudo, serve, pelo direito, o interesse público mais elevado, que transcende o de seus agentes, ao qual se orientam também os demais poderes políticos (SOUZA JR., 2002, p. 89).
Além disso, a democracia pode ser considerada como o mais igualitário dos governos, então, para que exista uma real igualdade jurídica e política entre os cidadãos, é necessário que a representação política seja eficaz, conforme explica Dahl:
O processo democrático é superior a outros modos viáveis de governo em pelo menos três pontos. Em primeiro lugar, ele promove a liberdade como nenhuma alternativa viável consegue fazer: liberdade sob a forma da autodeterminação individual e coletiva; liberdade no grau de autonomia moral que ele encoraja e permite; além disso, ele promove um amplo espectro de outras liberdades mais específicas que são inerentes ao processo democrático, constituem pré-requisitos necessários de sua existência ou existem porque, como a história demonstra claramente, as pessoas que apoiam a ideia e a prática do processo democrático tendem a apoiar generosamente outras liberdades também. Em segundo lugar, o processo democrático promove o desenvolvimento humano, acima de tudo, na capacidade de exercer a autodeterminação, a autonomia moral e a responsabilidade pelas próprias escolhas. Finalmente, ele é o meio mais certo (ainda que não seja perfeito, em absoluto) para que os seres humanos possam proteger e promover os interesses e bens que compartilham entre si (2012, p. 495).
Por haver essa necessidade de respeitar a soberania popular, já que ela é a essência da democracia, após o pleito eleitoral, os candidatos precisam manter seus posicionamentos e perseguir seus projetos prometidos à população, pois a democracia se baseia na relação de confiança entre os cidadãos e os políticos eleitos, e ao escolher um representante, os indivíduos possuem esperança de que seus direitos sejam concretizados e o exercício da sua cidadania efetivado.
Quando há uma representação real, na qual os políticos são honestos com a população, e são ativos na tentativa de alcançar os anseios sociais, o Estado Democrático de Direito se mantém estável, visto que a democracia está cumprindo o dever a ela incumbido.
Entretanto, quando há um distanciamento entre representantes e representados, os pilares democráticos são enfraquecidos, e a consequência é o surgimento de uma insatisfação generalizada capaz de debilitar o Estado Democrático de Direito. Por essa razão, os governantes eleitos precisam se manter fiéis ao interesse público, visto que, o oposto é capaz de trazer inúmeros transtornos sociais, inclusive o rompimento da democracia.
3. CAUSAS DA DESCONEXÃO ENTRE E OS CIDADÃOS E OS POLÍTICOS ELEITOS
Conforme anteriormente mencionado, em uma democracia representativa, os políticos são eleitos para que exerçam as funções de administração do Estado. No entanto, a soberania popular deve ser respeitada, isto é, em uma democracia representativa eficaz, os governantes devem atuar em conformidade com os anseios sociais.
Atualmente, devido ao fato de que a democracia representativa brasileira não vem cumprindo com sua finalidade, é perceptível a existência de uma incontestável crise de representatividade no país, na qual há um descontentamento, quase generalizado, dos cidadãos com os políticos eleitos.
Essa crise é fundada em diversos fatores, tendo em vista que o contexto social, político, econômico e ético, do Brasil, é bastante crítico. A prestação dos direitos mais básicos, garantidores do mínimo existencial, como saúde, educação, moradia, alimentação e segurança, quando não são suprimidos pela omissão estatal, são prestados de forma deficiente.
Além disso, existe a falta de ética dos agentes políticos, frequentemente envolvidos em escândalos de corrupção, e que, escancaradamente utilizam da coisa pública para benefícios pessoais, negligenciando a finalidade pública e as necessidades sociais.
Enfim, inúmeras são as razões da incompatibilidade entre representantes e representados que fundamentam o descontentamento da população, não apenas com os governantes eleitos, mas com as instituições democráticas como um todo, o que afeta negativamente o Estado Democrático de Direito.
3.1 A ATUAÇÃO DOS PARTIDOS POLÍTICOS COMO “MÁQUINAS DE PODER”
É sabido que os partidos políticos são essenciais à representação política. Tanto a Constituição Federal, quanto a lei nº 9.504/1997, que estabelece normas para as eleições, enfatizam a necessidade de haver filiação partidária para que o indivíduo concorra a qualquer cargo político.
Isto é, além de ter a nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos, a idade mínima, estar alistado na justiça eleitoral, e possuir domicílio eleitoral na respectiva circunscrição em que concorrerá, filiar-se a algum partido político é mais uma condição de elegibilidade.
O artigo 9º da lei 9.504/1997 diz que para concorrer às eleições, o candidato deverá possuir domicílio eleitoral na respectiva circunscrição pelo prazo de seis meses e estar com a filiação deferida pelo partido no mesmo prazo. Regulamentando, assim, o artigo 14, §3º, inciso V da Constituição da República Federativa do Brasil, que assim dispõe:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
(...)
§ 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei:
I - a nacionalidade brasileira;
II - o pleno exercício dos direitos políticos;
III - o alistamento eleitoral;
IV - o domicílio eleitoral na circunscrição;
V - a filiação partidária;
VI - a idade mínima de:
a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador;
b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal;
c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;
d) dezoito anos para Vereador.
A lei 9.096/95, que é a lei que regulamenta os partidos políticos no Brasil, os conceitua da seguinte maneira:
Art. 1º O partido político, pessoa jurídica de direito privado, destina-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal.
Para José Afonso da Silva ao conceituar os partidos políticos, dispõe que consistem em “uma agremiação de um grupo social que se propõe organizar, coordenar e instrumentar a vontade popular com o fim de assumir o poder para realizar seu programa de governo” (2013, p. 275).
Já Celso Ribeiro Bastos, ao se referir aos partidos políticos, os traz da seguinte maneira:
Partidos políticos consistem em uma organização de pessoas reunidas em torno de um mesmo programa político com a finalidade de assumir o poder e de mantê-lo ou, ao menos, de influenciar na gestão da coisa pública através de críticas e oposição (1907, p. 275).
Importa mencionar que o Código Civil Vigente traz os partidos políticos como pessoas jurídicas de direito privado:
Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
(...)
V - os partidos políticos.
Apresentadas tais definições, pode-se dizer que os partidos políticos são pessoas jurídicas de direito privado, que reúnem indivíduos com ideais semelhantes, para conquistar e exercer o poder político por um período de tempo determinado, após a realização de eleições diretas.
Ou seja, é o meio através do qual a população escolhe representantes para governar o Brasil, já que, para que um cidadão concorra às eleições, sejam elas federais, estaduais ou municipais, é necessário que ele se encontre filiado a um partido político.
Tendo o pluralismo político como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a Constituição Federal assegura aos partidos ampla autonomia e liberdade organizacional, entretanto, não há que se falar em liberdade partidária absoluta, visto que a Carta Magna também estabelece alguns limites.
Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
I - caráter nacional;
II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes;
III - prestação de contas à Justiça Eleitoral;
IV - funcionamento parlamentar de acordo com a lei.
§1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento, devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidárias.
(...)
§4º É vedada a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar.
A Lei Maior enfatiza que, para que um partido político seja legítimo, não pode violar aspectos como a soberania nacional (por isso a exigência do caráter nacional e a proibição do recebimento de recursos estrangeiros), o regime democrático de direito, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana.
Além disso, os partidos políticos ainda devem, obrigatoriamente, prestar contas à justiça eleitoral de forma regular, tendo em vista a necessidade de evitar o financiamento ilegal de campanhas, que, por sua vez, compromete o regime democrático.
Por fim, os partidos políticos não podem utilizar de organização paramilitar, estas consistem em associações ou grupo de civis armados, que usam táticas militares para alcançarem seus ideais. Sendo assim, tratam-se, evidentemente, de uma ameaça ao Estado Democrático de Direito, o que justifica a referida vedação constitucional.
Dessa forma, desde que respeitadas às condições constitucionais ora mencionadas, os partidos políticos podem expressar sua ideologia da maneira que achar mais adequada e convincente. São livres para se organizarem e apresentarem, ao eleitorado, as causas que priorizam, bem como seus objetivos e ideias.
É através dessa exposição de ideologias, que os partidos conquistam eleitores e elegem seus candidatos. É o que explica Bruno Kneipp, ao trazer o seguinte pensamento:
Para que um sistema seja legítimo, é necessário que ele encontre respaldo nos ideais da população. Sendo assim, para que as vontades do povo sejam devidamente manifestadas nos parlamentos, a fim de possibilitar a adequação dos rumos da nação ao que os cidadãos entendem ser o melhor caminho, a política deve ser estruturada por partidos coerentes e bem determinados ideologicamente. A ideologia, portanto, deve ser o substrato concreto da construção partidária, justificando sua própria existência enquanto Partido Político (2002, p. 6).
Antônio Aras, em sua obra “Fidelidade Partidária: efetividade e aplicabilidade” afirma que a pluralidade de ideologias partidárias é uma maneira de permitir aos cidadãos a escolha, democrática, daquilo que acredita ser necessário para sua existência em sociedade:
A democracia moderna tem como pilar o princípio da dignidade da pessoa humana e envolve a liberdade de consciência, de expressão e de sua manifestação nas urnas, livre das espúrias influências do poder político e/ou econômico, uma vez que, neste regime político, a legitimidade material do Poder decorre do consenso dos cidadãos que optam por certa e determinada ideologia como forma de encontrar o fim último da sua existência e, quiçá, da sua felicidade. (2016, p. 31).
Com isso, é perceptível que os partidos políticos são incontestavelmente essenciais para que o regime democrático representativo seja efetivo, uma vez que, o eleitor, geralmente, escolhe candidatos filiados àqueles partidos que sustentam os ideais que melhor lhe representa.
O problema da realidade brasileira é que os partidos políticos estão deixando de buscar, efetivamente, os ideais propagados como seus, que, por sua vez, atraíram aqueles que lhe confiaram o voto, e estão se tornando mecanismos busca incessante pelo alcance e pela manutenção do poder.
As ideologias partidárias, atualmente, estão sendo tratadas como mero requisito de constituição e divulgação dos partidos e candidatos, enquanto a verdadeira defesa daquelas questões que apresentaram como objetivos importantes, isto é, a concretização da busca pelo interesse do povo, já não vem sendo a prioridade das agremiações partidárias após o pleito eleitoral.
É o que bem expõe Manoel Gonçalves Ferreira Filho em seu Curso de Direito Constitucional:
Os partidos brasileiros não passam de conglomerados decorrentes de exigências eleitorais, sem programa definido e, o que é muito pior, sem vida própria. A autenticidade dos partidos é outra das condições da democracia pelos partidos. No Brasil, essa autenticidade parece ser em face da experiência do passado e do presente um sonho remoto, utópico (2014, p. 202).
Assim, o que se percebe é que atualmente os partidos políticos se desvirtuaram da sua essência, esqueceram a sua real finalidade, e estão se tornando, de forma cada vez mais evidente, instrumentos através dos quais os políticos buscam riqueza e reconhecimento social, transformando-se assim, em instituições desacreditadas, incapazes de representar a população.
3.1.1 A inobservância da finalidade pública na busca por interesses pessoais
Apesar de evidente a essencialidade dos partidos políticos para a efetivação do regime democrático representativo, a realidade política do Brasil se contrapõe a tal fato. A incontestável deturpação da essência da filiação partidária destaca o desinteresse dos políticos na preservação dos direitos dos cidadãos, bem como a ambição dos mesmos no alcance de vantagens pessoais.
Tal situação marca o cenário político brasileiro de forma negativa, pois, os políticos abusam do poder, através do desvio de finalidade das suas condutas, e atuam em benefício próprio, distanciando-se assim, severamente, do interesse público, da busca pelo bem comum, o que, consequentemente, esvazia a razão de existir dos paridos políticos.
Nesse contexto, aponta Manoel Ferreira Filho:
Não são, por outro lado, mais vistos como instrumentos para combinar a escolha de representantes com a definição da orientação política governamental. A experiência mostra que seus programas constituem apenas bandeiras eleitorais, frequentemente demagógicas, que pouco, ou nada, indicam sobre a atuação que adotarão após as eleições, seja como governo, seja como oposição. Ademais, em países como o Brasil, em razão de seu número e de seu vazio programático, estão patentemente desvalorizados. Como instrumento de aglutinação política, cederam lugar a grupos de interesses e, assim, a divisão fundamental no seio do Congresso não mais é, senão formalmente, entre partidos, mas entre grupos pluripartidários que atuam como “ruralistas”, “evangélicos”, “ambientalistas” etc. (2013, p. 395).
Dessa maneira, ao destoarem das finalidades elencadas na instituição de seus partidos, os governantes não dão efetividade aos anseios de seus eleitores, e transformam as necessidades sociais em fator sem importância, pois centram a prioridade do sistema no próprio enriquecimento e bem estar, e principalmente, na sua perpetuação no poder.
Com isso, a democracia representativa é contaminada pelo interesse de classes, isto é, os interesses privados sempre prevalecem sobre o interesse comum, o que faz a ideia de coletividade e de bem estar social receber menor ou, até mesmo, nenhuma atenção dos representantes eleitos.
Tal cenário faz com que problemas sociais se agravem de forma desmedida, e que faltem recursos e políticas públicas capazes de garantir a dignidade dos cidadãos brasileiros, enquanto isso, políticos, seus familiares e pessoas mais próximas, desfrutam de uma elevada qualidade de vida, valendo-se, escancaradamente, do dinheiro público para tal.
É manifesta a gravidade da referida situação. Por causa dela, pilares do ideal democrático brasileiro, como a soberania popular, a manutenção dos direitos e garantias fundamentais, a dignidade da pessoa humana, dentre outros, vêm sendo seriamente fragilizados.
Um exemplo da grave inversão da finalidade da democracia representativa é o financiamento de campanhas por particulares. Pois estes, em troca do apoio financeiro que concedem aos candidatos durante o pleito eleitoral, exigem vantagens políticas, que são concedidas pelo representante popular eleito, como forma de pagamento.
Isso faz com que os políticos, depois de empossados, fiquem vinculados às elites econômicas e acabem governando em prol delas, o que é refletido na elaboração, reforma e revogação de leis, bem como na criação e execução de políticas públicas, e em todas as possíveis articulações feitas pelos governantes, que não são realizadas visando atender o interesse público.
Diante desse tamanho abuso de poder, refletido no desvio da finalidade da coisa pública, o processo eleitoral acaba por afastar-se do seu propósito. Com a representatividade enfraquecida, a população passa a criar aversão aos políticos e ao processo eleitoral como um todo.
É o que esclarece Luís Felipe Miguel, ao escrever que:
O significativo é que essa teoria da democracia, hoje predominante, adotou os pressupostos de uma corrente de pensamento destinada precisamente a combater a democracia: o elitismo. O principal ideal da democracia, a autonomia popular, entendida no sentido preciso da palavra, a produção das próprias regras, foi descartado como quimérico. No lugar da ideia de poder do povo, colocou-se o dogma elitista de que o governo é uma atividade de minorias. A descrença na igualdade que, tradicionalmente, era vista como um quase sinônimo da democracia – levou, como corolário natural, ao fim do preceito do rodízio entre governantes e governados. (2002, p. 505).
Nesse sentido, Eduardo Bittar dispõe que:
Quando a política abandona as ideias de coisa pública, interesse público, vontade da maioria e necessidades sociais, são produzidos os seguintes efeitos nefastos: apatia da consciência política popular; fragilização da participação popular; resignação popular à forma de administrar os espaços públicos; abstinência do povo nos processos participativos; desmantelamento dos espaços públicos de discussão, debate e definição de projetos políticos vitais para a comunidade; erosão do exercício fiscalizatório, que cabe à população e à imprensa; descaracterização de um modelo que prioriza a consciência coletiva, passando a um modelo individualista e egoísta; falta de comprometimento e responsabilidade do eleitorado na escolha dos representantes; proliferação de candidatos e partidos oportunistas, com projetos superficiais, que convencem o público mas não beneficiam as instituições públicas; esquecimento da ideia de continuidade da política, que é substituída por noções fragmentadas de governos descontínuos; e esvaziamento da pressão da sociedade civil sobre o governo. (2016, p. 31).
A rejeição nutrida pelos cidadãos à política é ocasionada por não vislumbrarem seus direitos concretizados, tendo em vista que a atuação dos políticos não se encontra voltada para tal, mas sim, para seus interesses e daqueles que, financeiramente, os auxiliam na manutenção no poder. Com isso, o que se nota é que a delegação do poder, do povo aos governantes, tem se tornado cada vez mais inócua.
3.1.2 O relevante descumprimento das promessas de campanha
É comum e necessário, durante o pleito eleitoral, que os candidatos a cargos políticos formulem suas propostas de governo, isto é, organizem e apresentem, detalhadamente, o trabalho que pretendem pôr em prática, caso obtenham êxito no processo eleitoral.
Geralmente o referido plano de governo é reiteradamente apresentado aos cidadãos, uma vez que possuem como objetivo prioritário, angariar eleitores, tendo em vista que, nesse momento, os políticos prometem exercer o mandato de forma benéfica a todo o corpo social.
Porém, uma triste constatação da política brasileira contemporânea, é que grande parte dos representantes eleitos não cumprem a maioria, senão todas, das promessas feitas à população através do seu plano de governo no decorrer do pleito eleitoral.
Ou seja, durante a campanha os candidatos expõem boas intenções para com a sociedade, entretanto, após alcançarem o cargo almejado, ignoram, quase que completamente, o que prometeram aos cidadãos, direcionando sua conduta para questões diversas.
Inúmeros fatores podem levar os governantes ao descumprimento de suas propostas eleitorais. Pode acontecer de o candidato político, valer-se da falta de conhecimento de determinados grupos de eleitores sobre alguns assuntos, e acabar por prometer algo que a lei não o permitirá cumprir, ou que seu cargo não possua as atribuições necessárias para tal.
Ocorre ainda, de os representantes, quando eleitos, não conseguirem recursos suficientes para a execução do seu plano de governo, ou não obtenham o apoio de outros políticos, que se faz necessário para a execução de uma grande maioria de questões.
Mas, o que muito acontece, também, é de o político agir de má-fé, e mentir para os eleitores. Ou seja, muitas vezes, o candidato faz uma promessa apenas por saber que esta lhe renderá muitos votos, sem que tenha, sequer por um momento, a intenção de cumpri-la.
No entanto, a motivação do descumprimento não tem relevância, uma vez que a inexecução dos planos governamentais já é algo característico do sistema eleitoral brasileiro. Muitos cidadãos, atualmente, não buscam mais conhecer das propostas dos candidatos, uma vez que não creem em sua concretização.
Com isso, a imagem que transmitida à sociedade é de falta de comprometimento com a população e com o Estado Democrático de Direito, o que tem sido um fator extremamente relevante na crise de representatividade que se agrava na sociedade brasileira.
3.1.3 O abismo entre os políticos e os cidadãos após o pleito eleitoral
O atual cenário eleitoral brasileiro, além de revelar que as propostas de campanha são vazias, desprovidas de qualquer intenção real de execução, utilizada pelos políticos apenas como meio de obter êxito na eleição, também tem demonstrado outra situação crítica, que consiste no fato de que os políticos apenas mantém contato direto com a população no momento em que precisam conquistar votos, isto é, durante o pleito eleitoral.
É muito comum, em anos eleitorais, a presença de candidatos em locais populares, como feiras, igrejas, favelas, escolas, universidades, dentre outros lugares que permitem um contato mais próximo com a grande massa de eleitores, bem como proporcionam maior visibilidade dos candidatos.
Tal fato, além de permitir que os políticos apresentem suas propostas diretamente à população, também transmite uma ideia de acessibilidade. Ao trocar beijos, abraços e aperto de mãos, fazer refeições em locais populares, bem como em casas de eleitores, os políticos demonstram humildade e abertura, passando a ideia de que estão, e permanecerão, ao alcance dos cidadãos sempre que se fizer necessário.
No período de campanha eleitoral, o debate entre o povo e os candidatos sobre saúde, educação, segurança, dentre outros temas referentes à melhoria na qualidade de vida de tais indivíduos, são frequentes. É o momento em que os políticos estão sempre receptivos ao diálogo e apresentam as mais variadas sugestões para solucionar quase todos os problemas que assolam aquela camada da sociedade.
Ocorre que tamanha disponibilidade dos políticos aos seus eleitores, geralmente só ocorre a cada quarto anos, justamente durante o pleito eleitoral. Após, os governantes, em sua grande maioria, se tornam inacessíveis à população, o que desencadeia uma desconexão daquilo que os cidadãos realmente almejam e necessitam, com o que de fato os seus representantes eleitos democraticamente realizam.
Neste sentido:
A racionalidade requer que os indivíduos tenham a vontade política de ir além dos limites de seus próprios interesses específicos. Mas ela também impõe exigências sociais para ajudar um discernimento justo, inclusive o acesso à informação relevante, a oportunidade de ouvir pontos de vista variados e exposição a discussões e debates públicos abertos. Em sua busca de objetividade política, a democracia tem de tomar a forma de uma racionalidade pública construtiva e eficaz (SEN; KLIKSBERG, 2010, p. 54).
Distante dos eleitores, os governantes se fecham a debates públicos necessários, e, consequentemente, distanciam-se da realidade social, tornando-se indiferentes aos problemas e às necessidades da população. Com isso, não se propõem a estabelecer normas e políticas públicas capazes de solucionar os problemas dominantes.
Esse distanciamento entre representantes políticos e cidadãos comuns é extremamente danoso para a essência da democracia representativa, e mais uma causa relevante para o fortalecimento da atual crise de representatividade que assola o Brasil.
3.2 CRESCIMENTO DA DESIGUALDADE SOCIAL E DA VIOLÊNCIA
A desigualdade social consiste em um desequilíbrio na qualidade de vida dos habitantes de um país, no qual existem alguns grupos de pessoas que são privilegiados, outros prejudicados. Tal processo pode se manifestar por questões econômicas, de gênero, de opção sexual, de cor, de crença, etc.
Ocorre desigualdade de gênero, quando a discriminação de determinado indivíduo está relacionada ao fato de ele ser homem ou mulher (do gênero masculino ou feminino). Esta, pode ser exemplificada, nas situações em que mulheres, apesar de prestarem os mesmos serviços que os homens em determinada empresa, recebe uma contraprestação inferior.
Homofobia, racismo, intolerância religiosa, são exemplos de desigualdade por opção sexual, de cor e de crença, respectivamente. Toda essa assimetria mencionada é muito presente em qualquer sociedade contemporânea, tendo em vista que a desigualdade social, em suas mais diversas faces, consiste em um problema mundial.
Entretanto, a desigualdade econômica é a que mais marca a questão da desigualdade social na atualidade, tendo em vista que ela priva indivíduos de seus direitos mais básicos, como saúde, trabalho, moradia, educação, dentre outros, além de desencadear uma série de agravantes para a sociedade.
Dentre os fatos mais desfavoráveis decorrentes da desigualdade econômica, que faz com que a pobreza cresça de forma desmedida, está a fome, a mortalidade infantil, o aumento da criminalidade, e, principalmente, a ofensa escancarada à dignidade da pessoa humana.
Como bem explana Maria Helena Souza Patto:
O pobre, assim, é visto pela sociedade capitalista, que reifica as relações humanas e mercantiliza todas as esferas da vida cotidiana, como um perdedor, um ser desvalorizado socialmente, um ser desprovido de competências individuais para alcançar um determinado patamar financeiro. Essa análise do segmento mais pobre da população reflete uma visão condicionada pelos traços mais marcantes da ideologia burguesa, difundidos largamente na sociedade (pela televisão, pelos programas assistenciais, escolas, etc.), tais como: (a) culpabilização dos indivíduos pelos seus fracassos (quando a sociedade justifica o fracasso por uma suposta deficiência moral que está presente, por excelência, nas famílias mais pobres); (b) discurso da competência (no caso de o pobre ser considerado, por natureza, um indivíduo menos competente do que o rico, no que diz respeito à obtenção de um determinado padrão de vida); (c) associação da pobreza à violência (o pobre como ser essencialmente rude, bruto e violento) (1993, p. 119).
Apesar de se tratar, a desigualdade social, de uma questão global, é incontestável que ela consiste no maior problema do Brasil. Segundo um estudo realizado pela ONU (Organização das Nações Unidas), o Brasil está entre os cinco países com maior desigualdade em sua distribuição de renda.
Porém, a desigualdade social, em especial, a econômica, não se trata de um problema brasileiro recente. Pelo contrário, é algo que acompanha intensamente o Brasil desde o seu surgimento. Desde quando o Brasil era colônia de Portugal, já era fácil identificar que uma parte da população era menos favorecida economicamente.
Nesse sentido, ensina Garcia:
O destino não estava traçado e o caminho não era único, ainda que o passado tenha o seu peso no presente. O Brasil foi fundado sobre o signo da desigualdade, da injustiça, da exclusão: capitanias hereditárias, sesmarias, latifúndio, Lei de Terras de 1850 (proibia o acesso à terra por aqueles que não detinham grandes quantias de dinheiro), escravidão, genocídio de índios, importação subsidiada de trabalhadores europeus miseráveis, autoritarismo e ideologia antipopular e racista das elites nacionais. Nenhuma preocupação com a democracia social, econômica e política. Toda resistência ao reconhecimento de direitos individuais e coletivos (2003, p. 9).
Igualmente se posiciona Marcos Costa, ao mencionar que:
O Brasil, portanto, antes de ser uma nação, foi um conglomerado de feitorias, de empresas, muitas delas ligadas a poderosas joint ventures europeias. O parco governo que se teve por aqui tomava decisões inteiramente ao sabor das vontades e necessidades desses arrendatários. Durante 400 anos permanecemos assim, e esse início justifica nosso fim: elites econômicas determinando nosso projeto de nação (2017, p. 9).
A raiz do problema da desigualdade não se encontra no fato de não haver recursos suficientes no Brasil para suprir às necessidades da população, pois o Brasil não é, de maneira alguma, um país pobre. O território brasileiro é de grande extensão e possui uma abundância de recursos naturais que, se bem gerenciados, seriam capazes de manter sua população.
Ocorre que há uma má distribuição dos recursos existentes, isto é, existe pobreza de muitos e riqueza de poucos, por isso, apesar de rico, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. É o que explica Garcia:
Ou seja, foram criadas riqueza e renda suficientes para produzir alterações significativas nas condições de vida da grande massa da população brasileira que é carente de tudo. No entanto, a riqueza existente, a produzida e a renda criada sempre foram apropriadas concentradamente por minorias que sofrem de um estado crônico de “ganância infecciosa” (2003, p. 10).
Sobre o tema:
Dentre os fatores estruturais que interferem nessa situação, podemos citar: a ausência de mecanismos de distribuição de rendas através de uma estrutura tributária progressiva, falta de um amplo processo de reforma agrária, investimento em políticas sociais básicas e democratização do acesso ao poder político... (COSTA, 2005, p. 179).
No mesmo sentido:
No Brasil, a pobreza aprofundou-se como consequência de um desenvolvimento concentrador da riqueza socialmente produzida e dos espaços territoriais, representados pelos grandes latifúndios no meio rural, e pela especulação imobiliária no meio urbano. Tem raízes na formação sóciohistórica e econômica da sociedade brasileira (Silva e Silva, 2010, p.157).
Pode-se perceber que a pobreza do país é inexistente, sendo assim, não pode ser utilizada para justificar a enorme quantidade de pessoas que vivem em condições precárias, de total miserabilidade, sem o mínimo existencial garantido. O verdadeiro motivo para a desigualdade econômico-social brasileira é, exclusivamente, o fato de que o Brasil é um país extremamente injusto.
A comparação internacional entre o grau de desigualdade de renda no Brasil e o observado em outros países comprova não só que a desigualdade brasileira é das mais elevadas em todo o mundo, mas contribui também para entender como um país com renda per capita relativamente elevada pôde manter, nos últimos 20 anos, em média, cerca de 40% da sua população abaixo da linha de pobreza (FARIA, 2000, p. 21).
Como um problema histórico, a sociedade brasileira foi desenvolvida em um cenário de injustiça social que perdura até a atualidade. Parte da população se encontra excluída, privada da dignidade, uma vez que os direitos mais básicos, como saúde, educação, trabalho, alimentação e moradia, não é algo disponível para todos, enquanto há uma minoria privilegiada, que concentra maior parte da riqueza existente no país.
Ocorre que, apesar de ser um problema que remete às origens do Brasil, com o passar o tempo o que se percebe é que a desigualdade se mantém e, inclusive, se agrava. Isso se deve aos problemas históricos mencionados, bem como a ausência de modificação na maneira como são gerenciadas às riquezas e à forma de manutenção do país.
É o que comenta Edmar Bacha:
A extrema desigualdade na distribuição da renda do país tem fundas raízes históricas, que remontam ao padrão monopólico de apropriação da terra no Brasil Colônia. A concentração de renda se projeta do campo para a cidade ao criar uma fonte permanente de suprimento de mão-de-obra a salários reduzidos para a indústria. Ademais, a concentração de renda tende apenas a agravar-se com a continuação do crescimento econômico, mantida a estrutura agrária e o padrão de industrialização dependente. (1976, p. 15).
Para Marcos Costa:
Esse imperativo categórico da sociedade brasileira, ou seja, a inviolabilidade daquilo que foi assim desde sempre, cria um elo profundo entre os que aqui chegaram em 1500 e os que aqui hoje estão. Os mesmos objetivos os animam: a espoliação, a expropriação, o lucro, a exploração. Esses fins justificam os meios utilizados, que passam sempre ao largo de um projeto de país, sempre ao largo dos interesses do povo. Não existe no Brasil, nem nunca existiu, um projeto de nação. Um projeto robusto que levasse em conta o interesse de todos (2017, p. 10).
Pelo fato de o Brasil ter sido constituído em um Estado Democrático de Direito, há necessidade que seja assegurado, por parte do Estado aos seus cidadãos, o mínimo existencial para a sobrevivência de todos com dignidade. Uma vez que saúde, educação, alimentação, emprego, moradia, entre outros, são direitos sociais básicos e essenciais.
Um Estado Democrático de Direito impõe o respeito e à execução adequada dos direitos e garantias fundamentais, além disso, o país precisa funcionar de uma maneira capaz efetivar a igualdade do seu povo, evitando que cidadãos sejam marginalizados e vivam em condições subumanas.
Isto é, os representantes legais precisam trabalhar almejando políticas públicas eficazes o suficiente para estabelecer condições dignas e igualitárias a toda população, tendo em vista, além de tudo, que a justiça e a igualdade social, bem como a erradicação da pobreza, são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, trazidos expressamente no texto constitucional, em seu artigo terceiro.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Como tais objetivos não são plenamente realizados, a frustração dos cidadãos, e o descrédito na democracia representativa só aumentam, isso porque há uma ausência de representatividade política, também e principalmente, no tocante a desigualdade.
Essa gritante disparidade de renda necessita de um olhar mais cauteloso dos políticos eleitos, visando tanto à inclusão social, quanto a necessidade de apequenar a disparidade entre os privilégios de poucos, e as muitas limitações pelas quais padecem a maioria, que é mais pobre.
Assim como a desigualdade, a violência também é um problema muito intenso e presente na sociedade brasileira, e que não tem recebido a devida atenção dos representantes políticos, pois, o que se percebe é que ela tem aumentado significativamente nos últimos anos.
Definir as causas da violência é algo bem complexo, uma vez que deriva tanto (e especialmente) da desigualdade, como da falta de políticas públicas efetivas para combatê-la. Sendo então um problema econômico, político e social, de forma geral, a violência não tem como ser analisada de forma isolada, pelo contrário, para compreendê-la, é necessário que se observe todo o contexto social brasileiro.
Sobre o assunto:
Acredita-se, assim, que se o poder público resolver os problemas sociais e econômicos do Brasil, se resolverá também o problema da violência. A crença é de que os fatores socioestruturais, especialmente os de natureza socioeconômica, seriam as causas do fenômeno da criminalidade. Com isso, seria necessária a formulação de políticas que atuassem tanto no sentido de uma reforma social (igualdade de oportunidades econômicas e defesa dos direitos democráticos), quanto na reforma individual, mediante a reeducação e ressocialização do criminoso para o convívio em sociedade (BEATO FILHO e REIS, 2000, p. 2).
A violência no Brasil é algo que atinge todas as classes sociais. Embora os mais pobres sofram seus efeitos com maior veemência, as pessoas de poder aquisitivo mais elevado também são reféns de tal fator, porque, apesar de possuírem um poder econômico relevante, necessitam viver em sociedade.
Importa ressaltar que esse fenômeno social aflige os cidadãos tanto física, como psicologicamente, uma vez que devido às constantes situações violentas presenciadas, os indivíduos passam a viver com uma permanente sensação de insegurança.
Nesse sentido João Francisco Regis de Morais, em sua obra “O que é violência urbana”, dispõe que:
Em nenhum outro lugar a vida está sendo um jogo tão perigoso como nas grandes cidades. Eis uma afirmação óbvia com a qual precisamos iniciar esse escrito. E “jogo” é bem a expressão, pois que o elemento do “azar” está muito presente nas angústias dos cidadãos. Quando pais estão preocupados com uma demora inesperada de algum filho na rua, costumam dizer: “é um problema, na cidade grande tudo é possível”. Pois bem, quando tudo é possível, está instalado o absurdo. Com este, o seu filho mais direto: o medo (2017, p. 44).
O autor ainda completa:
Assim, fica claro que o medo é o pão cotidiano dos cidadãos. As casas não mais expõem suas fachadas românticas, pois as cercam de muros muito altos para dentro dos quais ainda triangulam cães de guarda. As pessoas trafegam em seus automóveis com vidros bem fechados para evitar abordagens perigosas em cruzamentos e semáforos e, dependendo de por onde andem a pé, sentem-se como se estivessem em plena “roleta russa” (2017, p. 55).
É de se observar que quando se trata da violência, o Estado falha duas vezes. Primeiro, falha ao permitir que cidadãos sejam marginalizados, e, sem conhecimento e oportunidades, acabam encarando a criminalidade como única alternativa de sobrevivência.
Falha, ainda, porque não consegue conter a violência que surge com a marginalização de indivíduos. Assim, o Estado tem se mostrando incapaz de oferecer segurança à população, deixando os cidadãos vulneráveis, propícios a se tornarem vítimas, a qualquer tempo, de algum crime violento.
Como a desigualdade, a criminalidade é algo que aumenta diariamente no Brasil. Em decorrência disso, os cidadãos se sentem cada vez mais desprotegidos, e revoltados com seus representantes, que, além permitirem o aumento da violência social, vez que não atuam na criação de políticas públicas capazes de inibi-la, não estabelecem um mecanismo de combate à mesma, para que a segurança seja restabelecida.
O combate efetivo da criminalidade no país depende de ações abrangentes. Isso porque, o aumento da violência no país se deve não apenas a fatores conjunturais (ou seja, próprios de nosso tempo), como as políticas de segurança pública. Há também que se levar em consideração uma série de fatores estruturais – condições sociais, que estimulam as desigualdades (SASAKI, 2018, p.1).
Importa ressaltar, que a Constituição da República Federativa de 1988 traz a segurança como dever do Estado. Tratada como um direito e garantia fundamental, a segurança pública é mencionada no preâmbulo:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Além do preâmbulo da Carta Magna, a segurança pública encontra respaldo em outros dispositivos constitucionais, como o artigo quinto e o artigo cento e quarenta e quatro:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
(...)
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
É evidente que a Carta Magna não deixou de explanar a devida importância atribuída à segurança pública, bem como sua essencialidade para a efetividade da dignidade da pessoa humana. Seria, no mínimo, justo, que os políticos olhassem para a problemática com maior atenção, e priorizassem a execução de técnicas capazes de assegurá-la, contribuindo assim, para a diminuição do descrédito na democracia representativa.
3.3 CORRUPÇÃO INSTITUCIONALIZADA
A corrupção consiste no fato de um indivíduo obter vantagens indevidas, através de meios ilícitos. Não é um problema que surge apenas na classe política, ela se faz presente no âmbito dos três poderes (executivo, legislativo, judiciário), nas relações políticas, e no cotidiano do cidadão comum.
O código penal brasileiro tipifica a corrupção, classificando-a em corrupção ativa, e em corrupção passiva.
Em seu artigo 317, traz a figura da corrupção passiva:
Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes, de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
§1º - A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.
§2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Já em seu artigo 333, apresenta a figura da corrupção ativa:
Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.
Quando se fala em política, no Brasil, dificilmente é possível se furtar do assunto “corrupção”. Isso porque esta já se tornou uma característica quase inerente aos políticos brasileiros, sendo, a principal geradora do sentimento de não representatividade nos cidadãos.
Isto significa que a corrupção é o principal motivo da falta de identidade entre o povo e os seus representantes, pois, por causa dela, os políticos desvirtuam sua função, deixando de buscar o interesse público, o que desencadeia os demais problemas sociais.
Muito embora não se trate de uma exclusividade do Brasil, é evidente que a corrupção já subverteu a ordem política brasileira a ponto de os cidadãos se questionarem se ainda há solução, tendo em vista que, quase diariamente, são descobertos casos de deturpação da coisa pública envolvendo os políticos.
Importa ressaltar que não se trata de um problema dos governos atuais. A corrupção, assim como a desigualdade, é algo que acompanha a evolução história do Brasil, como bem leciona Adriana Romeiro:
Definitivamente, a corrupção está na moda. Ela invadiu as redes sociais, o noticiário televisivo, a mídia impressa, as conversas informais, a cena política. Por todos os lugares, só se fala a seu respeito. É como se, pela primeira vez na história brasileira, esse inimigo insidioso da República fosse alvo de uma cruzada para arrancá-lo dos bastidores em que se ocultou durante tanto tempo, para, finalmente, expô-lo à luz do dia. Ocorre que há mais de cinco séculos a corrupção tem atraído à atenção dos que refletiram sobre a natureza dos valores políticos no mundo (2017, p. 42).
Ao se envolverem em corrupção, os políticos ofendem o princípio da moralidade, que exige que os agentes públicos atuem com honestidade e boa-fé ao tratar com a coisa pública. E, ao desrespeitarem tal mandamento, há um cometimento de ato ilícito, que deve ser repelido.
Tal princípio se encontra expresso no artigo trinta e sete da Constituição Federal:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...).
Sobre ele, Carvalho Filho explica:
O princípio da moralidade impõe que o administrador público não dispense os preceitos éticos que devem estar presentes em sua conduta. Deve não só averiguar os critérios de conveniência, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é desonesto (2010, p. 23).
Di Pietro se refere ao princípio retromencionado de seguinte forma:
A lembrar-nos que, a imoralidade administrativa surgiu e se envolveu ligada a ideia de desvio de poder, pois se entendia que em ambas as hipóteses a Administração Pública se utiliza de meios lícitos para atingir finalidades meta-jurídicas irregulares. A imoralidade estaria na intenção do agente. Essa a razão pela qual muitos autores entendem que a imoralidade se reduz a uma das hipóteses de ilegalidade que pode atingir os atos administrativos, ou seja, a ilegalidade quanto aos fins (2009, p. 76).
A corrupção não permite que o país funcione normalmente, isto é, impede que os governantes deixem de atuar em prol da conservação da coisa pública e do bem comum, para alcançarem interesses pessoais. Sendo assim, além de desencadear descrédito da população na política, a corrupção ainda é a principal causa dos principais problemas que afligem a realidade brasileira, quais sejam: desigualdade e violência.
Como bem menciona José Álvaro Moisés, em seu artigo “Corrupção e democracia: os efeitos de uma sobre a outra”:
A corrupção é um dos problemas mais severos e complexos enfrentados por novas e velhas democracias. No fundamental, ela envolve o abuso do poder público para qualquer tipo de benefício privado, inclusive vantagens para partidos de governo em detrimento da sua oposição. Ela frauda, portanto, o princípio de igualdade política inerente à democracia, pois os seus protagonistas podem obter ou manter poder e benefícios políticos desproporcionais aos que alcançariam através de modos legítimos e legais de competir politicamente. Ao mesmo tempo, ela distorce a dimensão republicana da democracia porque faz as políticas públicas resultarem não do debate e da disputa pública entre projetos diferentes, mas de acordos de bastidores que favorecem interesses espúrios. (2017, p.1).
O descrédito na política se encontra aparentemente generalizado, uma vez que os cidadãos possuem a infeliz constatação de que a regra é que o político seja corrupto e almeje apenas seus próprios interesses, enquanto o governante probo e comprometido com o interesse público é uma exceção quase inexistente, na atual conjuntura.
Aliado a corrupção, ainda há o sentimento de impunidade, já que a justiça não corresponde às expectativas dos cidadãos, pois, não raras vezes, apesar de incontestavelmente envolvidos em escândalos envolvendo o dinheiro público, os políticos permanecem intangíveis, em seus respectivos cargos.
Diante desse cenário, até mesmo o judiciário brasileiro se encontra descredibilizado pela população, pois a mensagem transmitida é de conivência com a corrupção. Consequentemente, os cidadãos se veem sem perspectiva, uma vez que não há uma instituição transparente e capaz de solucionar tal problema, havendo então, uma nítida desmoralização das instituições democráticas.
4. ENFRAQUECIMENTO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA COMO CONSEQUÊNCIA DA CRISE DE REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA
Atualmente o nível de representatividade da democracia brasileira é baixo. Isso se deve ao fato de que os problemas que assolam a população, como a corrupção, a violência e a desigualdade, têm origem no descaso dos representantes políticos com a coisa pública.
Como a democracia brasileira é exercida, quase que na sua totalidade, através da representação, o descrédito dos cidadãos coloca o Estado Democrático de Direito em risco, pois, conforme retromencionado, a reprovação não alcança somente os governantes, mas as instituições democráticas como um todo.
Se há um descontentamento generalizado dos titulares do poder (o povo), com aqueles que o exerce (os representantes), a essência da democracia acaba fragilizada e tal regime não cumpre o papel que lhe é designado, o que enfraquece sua legitimidade.
Diante de tal cenário, a reação da população é das mais variadas, que vai desde o afastamento dos cidadãos do sistema político, à escolha de representantes despreparados ou que convergem com ideologias autoritárias. Com isso, a democracia é colocada em uma situação de risco, na qual, a qualquer momento, pode vir a ruir, perdendo espaço para governos ditatoriais.
4.1 ESCOLHA DE REPRESENTANTES DESQUALIFICADOS COMO FORMA DE PROTESTO
O voto de protesto ocorre quando os cidadãos demonstram seu inconformismo, com o sistema eleitoral de um país, no momento em que devem escolher os representantes políticos. Tal repulsa é manifestada através da eleição de candidatos um tanto desqualificados, bem como pela escolha do voto branco ou nulo.
Antigamente, as eleições eram manuais, e os eleitores votavam através de cédulas de papel. Nesse cenário, o cidadão que se encontrava descontente com o processo político, ou com a democracia representativa de forma mais genérica, geralmente escrevia palavras agressivas ou piadas, nas respectivas cédulas eleitorais, referindo-se a determinados candidatos ou ao regime. Importa mencionar que, tais votos eram anulados.
Já aconteceu, também, de serem concedidos votos a animais, como forma de manifestar a desconfiança nos políticos da época. Exemplo disso foi em São Paulo, no ano de 1959, quando um rinoceronte teve sua candidatura “lançada” nas eleições municiais, e obteve mais de cem mil votos.
O primeiro de que se tem registro ocorreu em 1959, na cidade de São Paulo. O rinoceronte Cacareco – na verdade, uma fêmea – fora emprestada pelo Rio de Janeiro para a inauguração do zoológico local e, por brincadeira, o jornalista Itaboraí Martins, do jornal O Estado de São Paulo, lançou a candidatura do animal. Milhares de cédulas eleitorais foram impressas em gráficas com o nome do bicho como parte da intervenção. E o resultado foi estrondoso. Cacareco conquistou quase 100 mil votos nas eleições (PINTO, 2018, p. 1).
Fato semelhante ocorreu no Rio de Janeiro em 1988, quando uma revista de humor lançou a candidatura de um chimpanzé, chamado Tião, do zoológico do Rio de Janeiro. Com isso, ele obteve mais de quatrocentos mil votos, o que o colocaria como o terceiro mais bem colocado nos resultados, caso sua candidatura fosse validada pelo Tribunal Regional Eleitoral.
O episódio de maior repercussão, porém, se daria em 1988, com o lançamento da candidatura do chimpanzé Tião - maior atração do zoológico do Rio de Janeiro - a prefeito da cidade, por obra dos humoristas autores do jornal "O Planeta Diário" e da revista "Casseta Popular". Num período em que o país vivia a transição da ditadura para a democracia, argumentaram eles que o propósito era libertar "o último preso político", concorrente pelo fictício Partido Bananista Brasileiro. A estimativa é de que Tião tenha recebido cerca de 400 mil votos – o terceiro lugar no pleito. Morto pela diabetes em 1996, aos 34 anos, tornou-se ícone da descrença na política partidária (PINTO, 2018, p. 2).
Com o advento da urna eletrônica, essa maneira de expressão do inconformismo popular passou a ser impossibilitada, uma vez que não se faz mais possível, lançar animais como candidatos à cargos políticos, nem mesmo, escrever piadas ou palavrões no momento do voto.
Tal fato levou a população a buscar outra forma de manifestar sua indignação com os governantes. Com isso, diante da crise de representatividade que assola a política brasileira, os cidadãos adotaram uma nova forma utilizar o voto como meio de protesto.
Na contemporaneidade, a população, que se encontra descontente com todo o sistema político, tem escolhido votar em candidatos aparentemente irrelevantes, radicais, exóticos, ou até mesmo, votam em branco ou nulo, objetivando, exclusivamente, expor sua indignação.
Recentemente, pode-se mencionar a eleição dos deputados federais, Enéas e Tiririca, como exemplos da referida forma protesto. Nas eleições de 2002, o deputado federal mais votado foi Enéas Carneiro, que, até então, era uma figura desconhecida.
Com apenas alguns segundos no horário eleitoral, Enéas apenas mencionava seu bordão, que dizia: “meu nome é Enéas”. Com isso, obteve mais de um milhão e quinhentos votos, sem, sequer, apresentar alguma ideia relevante ao contexto social.
Com uma votação tão expressiva, Enéas levou à Câmara dos Deputados outros candidatos do seu partido (Partido de Reedificação da Ordem Nacional – PRONA), uma vez que os deputados federais são eleitos pelo sistema proporcional, no qual o determinador da eleição é o quociente eleitoral.
Importa ressaltar que os deputados que tomaram posse devido à quantidade de votos obtida por Enéas, tiveram uma votação bastante inexpressiva, o que evidencia que, com uma escolha inconsequente, o eleitor pode eleger candidatos que jamais cogitou votar.
Já o palhaço e humorista Tiririca, eleito como deputado federal pelo Estado de São Paulo, durante o horário político, não apresentou nenhuma proposta aos eleitores, apenas se valeu de piadas como “pior que tá não fica, vote no Tiririca”, e assim, foi eleito em 2010, 2014 e na última eleição (2018), novamente.
Ao contrário do que afirma o deputado Tiririca, a escolha de representantes como forma de protesto só tende intensificar os problemas sociais e enfraquecer o Estado Democrático de Direito, piorando a realidade social, que, no Brasil, já é bastante crítica.
Isso pode ocorrer pelo fato de o controle do país pode ser entregue a indivíduos desqualificados, com pouca, ou até mesmo nenhuma experiência e conhecimento da realidade política e social. Isto é, tal movimento, consistente em utilizar o voto como forma de protesto, muito embora legítimo e compreensível, não traz nenhuma melhoria a vida pública dos cidadãos brasileiros.
4.2 ELEVAÇÃO NAS TAXAS DE ABSTENÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil traz a obrigatoriedade do voto aos cidadãos a partir dos dezoito até os setenta anos de idade. Os analfabetos, os idosos a partir de setenta anos e os menores que possuem entre dezesseis e dezessete anos podem votar facultativamente.
É o que dispõe o parágrafo primeiro do artigo quatorze da Carta Magna:
§1º O alistamento eleitoral e o voto são:
I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos;
II - facultativos para:
a) os analfabetos;
b) os maiores de setenta anos;
Desde a Constituição de 1824, o voto no Brasil, com as peculiaridades de cada época, é obrigatório. Entretanto, a obrigatoriedade do voto não é uma característica estabelecida como cláusula pétrea, tendo em vista que a Lei Maior traz elenca como cláusula pétrea apenas o voto direto, secreto, universal e periódico.
Com isso, importa ressaltar que a facultatividade do povo pode ser estabelecida por meio de Emenda Constitucional. Pois, apesar de não se tratar de cláusula pétrea, a obrigatoriedade do voto se encontra estabelecida na Constituição, sendo assim, não pode ser alterada por lei.
No entanto, o voto obrigatório torna-se um poder-dever dos cidadãos, que objetiva, além de selecionar indivíduos capazes de representar o povo nas decisões estatais, é também uma forma de educação política do eleitor, através da qual os eleitores necessitam pensar e participar da vida política do país.
O indivíduo que, por alguma razão, não conseguir participar do pleito eleitoral, deve justificar sua ausência na sua respectiva zona de inscrição em até sessenta dias do pleito eleitoral, ou, em trinta dias após o retorno ao país, para os cidadãos brasileiros que estiverem no exterior no dia da eleição.
Aqueles que não apresentarem a adequada justificativa serão obrigados a pagar uma multa, para que consigam ficar em regularidade com a justiça eleitoral. Caso contrário, sofrerão sanções decorrentes do não exercício da cidadania, pois esta, até o presente momento, além de direito, consiste em um dever do cidadão.
As referidas sanções resumem-se na impossibilidade de retirar certidão de quitação na justiça eleitoral, bem como no impedimento de inscrever-se em concurso público, ou tomar posse neles, além disso, o cidadão irregular com a justiça eleitoral será impedido de obter passaporte ou carteira de identidade, e ainda não poderá renovar a matrícula em estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado pelo governo, etc.
É o que dispõe o artigo sétimo do Código Eleitoral vigente:
O eleitor que deixar de votar e não se justificar perante o juiz eleitoral até 30 (trinta) dias após a realização da eleição, incorrerá na multa de 3 (três) a 10 (dez) por cento sobre o salário-mínimo da região, imposta pelo juiz eleitoral e cobrada na forma prevista no art. 367.
§1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá o eleitor:
I - inscrever-se em concurso ou prova para cargo ou função pública, investir-se ou empossar-se neles;
II - receber vencimentos, remuneração, salário ou proventos de função ou emprego público, autárquico ou para estatal, bem como fundações governamentais, empresas, institutos e sociedades de qualquer natureza, mantidas ou subvencionadas pelo governo ou que exerçam serviço público delegado, correspondentes ao segundo mês subsequente ao da eleição;
III - participar de concorrência pública ou administrativa da União, dos Estados, dos Territórios, do Distrito Federal ou dos Municípios, ou das respectivas autarquias;
IV - obter empréstimos nas autarquias, sociedades de economia mista, caixas econômicas federais ou estaduais, nos institutos e caixas de previdência social, bem como em qualquer estabelecimento de crédito mantido pelo governo, ou de cuja administração este participe, e com essas entidades celebrar contratos;
V - obter passaporte ou carteira de identidade;
VI - renovar matrícula em estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado pelo governo;
VII - praticar qualquer ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou imposto de renda.
Assim, é notável que o ordenamento jurídico brasileiro valoriza a participação popular no processo eleitoral, e busca conscientizar os cidadãos sobre a relevância do voto para os rumos da sociedade, bem como demonstra que o comparecimento da população às urnas é essencial para a efetividade do processo democrático.
Porém, ainda que diante de toda obrigatoriedade e incentivo ao voto existente na sociedade brasileira contemporânea, o que se percebe é que, com o passar dos anos, os eleitores só vem se distanciando do processo eleitoral, se abstendo de escolher os indivíduos que irão determinar o destino da nação por, no mínimo, quatro anos.
Isso ocorre, porque o sentimento de “ninguém me representa” só tem crescido, e se deve ao fato de que os cidadãos perderam a esperança nos governantes, tendo em vista que, apesar das inúmeras promessas durante o pleito eleitoral, os políticos, após ascenderem ao poder, não buscam efetivar nenhuma melhora concreta nas deficiências do país.
Assim, os eleitores permanecem desesperançosos e desacreditados na boa vontade dos candidatos, e, já que não acreditam na possibilidade de uma real mudança, ou ao menos, de uma melhora significativa, por essa razão, preferem se abster do voto, ao votar em candidatos que não priorizam suas necessidades, nem representam seus ideais.
O fato de os cidadãos estarem deixando de comparecer às urnas, demonstra com muita clareza a insatisfação popular. Como dispõe o cientista político José Álvaro Moisés:
O distanciamento entre a participação política e a resolução de problemas sociais, cria a sensação de impotência no eleitorado que, cada vez mais, sente-se alijado das decisões políticas. Daí a apatia que se traduz na maior parte das democracias políticas ocidentais, no aumento da abstenção. Desta forma abre-se espaço ao desencanto, a apatia e até a hostilidade em face de distorções que, muitas vezes, envolvem políticos e instituições democráticas (2005, p. 48).
As últimas eleições presidenciais, ocorridas em 2018, tiveram a maior taxa de abstenção desde a eleição de 1998. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, a abstenção no primeiro turno foi de 20,33%, que corresponde a 29.941.265 de eleitores. Já no segundo turno, esse percentual aumentou para 21,30%, isto é, 31.371.704 eleitores não compareceram às urnas.
O presidente eleito, Jair Messias Bolsonaro (PSL), teve cerca de dez milhões de votos a mais que o candidato do PT, Fernando Haddad. Percebe-se que, o número de abstenções seria suficiente, inclusive, para modificar o referido resultado, já que este foi três vezes maior que a vantagem obtida pelo candidato vencedor.
Tal situação evidencia como o cenário político brasileiro se encontra descredibilizado, e como o sentimento de não representação é capaz de deslegitimar a democracia representativa, tendo em vista que esta é caracterizada pela transferência do poder do povo aos governantes, e quando a população não vai às urnas, se abstendo de tal papel, é possível questionar a legitimidade do representante, uma vez que nem sempre corresponderá a vontade da maioria dos cidadãos.
4.3 ABERTURA PARA INSTAURAÇÃO DE GOVERNOS AUTORITÁRIOS
A democracia, como já dito, se opõe ao autoritarismo. Este consiste em um regime de governo contrário à liberdade individual, no qual o poder se concentra em um ou alguns poucos indivíduos, a quem toda sociedade deve total respeito e obediência absoluta, uma vez que toda e qualquer forma de oposição política ou ideológica a tal governo, é fortemente reprimida.
Em um regime de governo ditatorial, autoritário, a dignidade da pessoa humana não é prioridade:
São cinco os fatores de uma ditatura autoritária: 1) transição de um estado de direito para um estado policial; 2) transição do poder difuso nos estados liberais para a sua concentração no regime totalitário; 3) a existência de um partido estatal monopolista; 4) transição dos controles sociais que passam de pluralistas para totalitários; 5) a presença decisiva do terror como ameaça constante contra o indivíduo (NEUMANN, 1969, p. 268).
Nesse sentido:
Os regimes autoritários, por sua vez, intentam, como as democracias, fundamentar o poder numa base social ampla, capaz de legitimá-Ias. Só que a titularidade do poder não é reconhecida à comunidade, enquanto realidade existencial, mas a um setor abstraído da comunidade (por exemplo, uma dada classe social, uma dada "raça") ou a entidades ainda mais abstratas, elaboradas conceitualmente pelos ideólogos do regime, como a ideia de "nação" (SOUZA, 2002, p. 99).
O autor retromencionado ainda afirma que em um governo regido por ideais autoritários, o Estado não funciona em prol dos indivíduos, mas o inverso.
Os diferentes modos que pode assumir o relacionamento homem-Estado constituem o que se denomina de sistemas políticos ou regimes de governo. Podemos classifica-los, hodiernamente, em suas linhas mais gerais, em dois grupos: ou o homem é colocado a serviço do Estado, ou o Estado é posto a serviço do homem. No primeiro caso temos os regimes autoritários; no segundo, os regimes democráticos (SOUZA JR., 1978, p. 2).
Para Kelsen, em regimes autoritários:
O governo tem poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até matar indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considera-las fora da ordem jurídica desses Estados (KELSEN, 2009, p. 353).
Apesar de, com a Constituição de 1988, o Brasil ter se constituído em um Estado Democrático de Direito, nos anos de 1964 a 1984, um regime autoritário tomou o poder do país. Foi o período da ditadura militar, em que vigorou um sistema sociopolítico baseado na violência e no autoritarismo.
A respeito da Constituição vigente em tal período, Pedro Lenza faz a seguinte observação:
Pode-se afirmar que a Constituição de 1946 foi suplantada pelo Golpe Militar de 1964. Embora continuasse existindo formalmente, o país passou a ser governado pelos Atos Institucionais e Complementares, com o objetivo de consolidar a “Revolução Vitoriosa”, que buscava combater e “drenar o bolsão comunista” que assolava o Brasil (2018, p. 148).
Nesse período, a Constituição de 1967 foi outorgada e, além de estabelecer eleições indiretas para presidência da república, confirmava a edição de atos institucionais, que aperfeiçoavam a repressão imposta pelo regime. Dentre os sucessivos atos institucionais, o AI-5 foi o mais arbitrário e repressivo de todo o período.
Sobre tal ato, Marcos Costa diz que:
O AI-5 era devastador. Delegava ao presidente da república plenos poderes para cassar mandatos e suspender direitos políticos, decretar intervenção federal em estados e municípios, decretar recesso do Congresso por tempo indeterminado, assumindo assim as prerrogativas do Legislativo, entre outras arbitrariedades. A suspensão do habeas corpus para crimes políticos permitia a intervenção, censura e empastelamento de qualquer meio de imprensa que julgassem oposicionista ao regime militar. Intelectuais e artistas foram punidos por ter suas obras e liberdade de expressão tomadas como subversivas, e vários tiveram que se exilar. Era mais uma vez o conservadorismo, o fisiologismo, e o estamento cobrindo com seu manto obscuro sociedade brasileira. (2017, p. 141).
Atualmente, ainda é possível afirmar que o Brasil é um país democrático. Ocorre que a democracia representativa, vem, constantemente, perdendo a credibilidade, tendo em vista à crítica situação política, social, econômica, e ética que existe no país.
Pelo fato de a classe política, democraticamente eleita, não corresponder aos anseios sociais, uma vez que não atuam no sentido de assegurar os direitos e garantias fundamentais, inexiste uma relação saudável entre representantes e representados.
Consequentemente, a democracia brasileira tem suas bases debilitadas, e existe o risco de que não consiga mais se manter legitimada, já que, em um governo democrático é perfeitamente normal que haja desconfiança, cobrança e oposição ao governo eleito, entretanto, quando há o descrédito generalizado e duradouro com o sistema democrático, há possibilidade de abertura para a instauração de uma base governamental autoritária.
4.3.1 A “ineficácia” da democracia e a sensação de efetividade de regimes ditatoriais
No ano de 1964 o Brasil sofreu um golpe militar que perdurou por mais de vinte anos. Nessa época, o autoritarismo era o regime político adotado e havia uma forte repressão popular, na qual aqueles que se mostraram contra o governo era considerado inimigo nacional.
Aparentemente, na ditadura militar brasileira, ocorreu um relevante crescimento econômico.
Sobre tal tema, Marcos Costa dispõe:
A partir do golpe de 1964, não por acaso, durante todo o período militar ocorreu o chamado Milagre Econômico Brasileiro. Um desenvolvimento econômico sem precedentes na história do país. As vozes dissonantes todas caladas, o sentimento de segurança generalizado e o apoio e incentivo do Estado permitiram que as elites industriais investissem sem medo. Desse modo, entre 1968 e 1973, o PIB do Brasil cresceu em números nunca vistos, na média de 11% ao ano. [...] Mas toda essa prosperidade econômica se deu em um clima sociopolítico falso, mantido artificialmente, com base na violência e no autoritarismo. (2017, p. 141).
Tendo em vista a “prosperidade” econômica do período militar, a população brasileira contemporânea, diante do atual cenário social, abalado pela corrupção, violência e desigualdade, começa a olhar para a democracia vigente como um sistema de governo falido e é capaz de acreditar em uma possível efetividade do regime autoritário.
Como bem explica Barrucho:
Ainda assim, não é incomum que o período do regime militar no Brasil, entre 1964 e 1985, seja lembrado por alguns com certa nostalgia como um tempo marcado por um forte crescimento da economia, que ficou conhecido "milagre econômico". A economia brasileira nunca cresceu tanto - antes ou depois. A taxa média de crescimento nesse período girava em torno de 10% por ano. Mas especialistas notam que o regime militar deixou uma herança maldita para a economia, como o agravamento de alguns dos problemas que ainda marcam o noticiário econômico brasileiro, como o endividamento do setor público e o aumento da desigualdade social. O governo militar, quando assume em 1964, enfrenta um período de bastante desorganização da economia, com desequilíbrio fiscal, inflação alta e desemprego. Havia um desgaste muito grande do modelo econômico anterior, com o fracasso do Plano Trienal (para retomar o crescimento econômico). Eles conseguiram modernizar a economia, mas isso teve um alto preço, que acabou sendo pago após a redemocratização, como hiperfinflação e dívida externa estratosférica (2018, p.2).
Com isso, não é incomum o crescimento do radicalismo nos cidadãos brasileiros, que questionam a democracia e desejam, inclusive, a tomada do poder pelos militares, acreditando que, com isso, os problemas que mais maltratam a população (corrupção, desigualdade, violência, etc.) serão resolvidos.
Importa ressaltar que apesar de não chegarem ao conhecimento do público, a corrupção existia naquela época, ocorre que, devido à ausência de instituições para fiscalizar o governo e noticiar os fatos à população, criou-se a falsa ideia de que a corrupção é algo que aflige o Brasil apenas na contemporaneidade, quando se adota um regime democrático.
Infelizmente os representantes democráticos não se preocuparam em criar mecanismos capazes de oferecer à população acesso à história do país, e, diante do desconhecimento do que realmente acontecia no regime ditatorial de 1964 até a redemocratização, muitos brasileiros acreditam na necessidade do restabelecimento daquele, como forma de “salvar a Pátria”.
Esse “saudosismo da ditadura”, que vem ganhando espaço no Brasil, concede uma abertura ao surgimento de movimentos de extrema direita, já que, insatisfeitos, de forma geral, com a atual condição do país, a população é atraída pelo radicalismo e pelo ultraconservadorismo, o que favorece a ascensão do autoritarismo como alternativa adequada.
4.3.2 O oportunismo de candidatos adeptos ao regime ditatorial frente à fragilização da democracia representativa
É muito comum que, devido à falta de legitimidade dos políticos adeptos aos partidos de esquerda e direita, comecem a surgir políticos “antissistema”, que nada mais são do que indivíduos oportunistas, que se valem de um momento de crise generalizada e da fragilização das pessoas, para alcançarem o poder.
Essa figura do “não-político”, do indivíduo inconformado com a realidade que promete modificar o sistema e cessar com todos os problemas que afligem os cidadãos, é algo muito preocupante para a manutenção da democracia, uma vez que, camuflam suas reais intenções em tais discursos, ganhando assim, apoio da população.
Com isso, alçam democraticamente ao poder, porém, possuem ideais autoritários, capazes de destruir a democracia, pois, como o povo lhes transferiu poder, através de eleições diretas, estão, tais representantes, legitimados para adotar as medidas que desejar.
Essas medidas, muitas vezes, destoam vontade popular, o que evidencia que esses políticos são apenas “mais do mesmo”, só que, além disso, também trazem consigo uma postura autoritária, que pode romper com a democracia representativa existente no Brasil até então.
Tal rompimento democrático não é algo que deve ser considerado como solução, muito menos como algo bom para o país. Dele, pode decorrer, além de uma intensificação dos problemas já existentes, repressão social e submissão da população a tratamentos cruéis, se o governo julgar necessário.
É fato que, por mais que existam problemas em governos democráticos, esse regime ainda é preferível a qualquer ditadura, tendo em vista que é o que mais possui mecanismos com foco na preservação da dignidade da pessoa humana e nos demais direitos e garantias fundamentais.
Os habitantes dos países democráticos, embora frequentemente se mostrem insatisfeitos com sua condição, vivem num mundo mais justo do que aquele dos habitantes dos outros países, pois em regimes ditatoriais não há espaço para se falar em direitos e em garantias do cidadão, muito menos em respeito às diferenças e à participação política (TODOROV, 2012, p. 17).
Diante da crise de representatividade que se instaurou na democracia brasileira, é evidente que há uma necessidade urgente de que as forças democráticas brasileiras comecem a se unir para reverter essa situação, buscando meios de alcançar uma solução pacífica para o problema.
Tal urgência se fundamenta no fato de que, apesar de a referida crise ser algo que já vem marcando a democracia brasileira há algum tempo, a última eleição foi uma resposta a esse cenário crítico pelo qual atravessa a sociedade brasileira, como um todo.
O presidente eleito, Jair Messias Bolsonaro, militar reformado, foi um candidato abertamente declarado de extrema direita, e possui um forte apreço às ideologias conservadoras, bem como, por inúmeras vezes durante sua vida pública, insinuou estar de acordo com atrocidades (como tortura), ocorridas no período da ditatura militar.
Durante o pleito eleitoral, o então presidente, homenageou torturadores, falou em banir opositores, se mostrou extremamente despreparado ao ser questionado sobre os problemas sociais, entretanto, mesmo sem mostrar os meios que adotaria, prometeu restaurar a segurança e acabar com a corrupção institucionalizada no país.
Com esse discurso, aliado ao fato de não ter participado de debates, nem apresentar propostas consistentes, apenas enfatizar o desejo de “mudar tudo isso que está aí”, ele foi o candidato escolhido pela população brasileira para representar o país pelos próximos quatro anos.
Tal situação merece atenção, pois, como bem menciona os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt na obra “Como as democracias morrem”:
É assim que tendemos a pensar na morte das democracias: nas mãos de homens armados. Porém, há outra maneira de arruinar uma democracia. É menos dramática, mas igualmente destrutiva. Democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas líderes eleitos, presidentes ou primeiros-ministros, que subvertem o próprio processo que os levou ao poder. É assim que as democracias morrem agora. A ditadura ostensiva – sob a forma de fascismo, comunismo ou domínio militar – desapareceu em grande parte do mundo (2018, p.170).
Ainda não é possível saber qual será o destino do Brasil daqui pra frente, porém, se deve atentar ao fato de que a população se encontra desacreditada e sem perspectiva, e que tal cenário, é propício para o estabelecimento de forças antidemocráticas, principalmente pelo descrédito dos cidadãos nas instituições vigentes, que fomenta o anseio por mudanças e os faz optar por qualquer candidato que se mostre “diferente”, ainda que não seja melhor.
CONCLUSÕES
No decorrer do trabalho buscou-se demonstrar a relevância da análise e discussão do tema “Crise de Representatividade: uma fragilização do ideal democrático brasileiro”, uma vez que é inegável que o Brasil atravessa um momento de crise intensa.
Mostrou-se como a referida crise é capaz de macular os elementos constitutivos da democracia representativa, e, com isso, abrir espaço para a instauração de governos autoritários, que ficou evidenciado através da crescente aderência de brasileiros a políticos com ideias de extrema direita.
Para tanto, enfatizou-se que o Brasil sofre com uma crise que não é só política, mas também social, econômica e ética. No entanto, demonstrou-se que a gênese desse contexto consiste no fato de que os políticos se encontram em débito com a população, já que, ao se desvirtuarem dos ideais democráticos, ocasionam, consequentemente, o descrédito dos cidadãos no sistema, e o enfraquecimento deste.
Neste viés, demonstrou-se que o povo não se sente representado pelos governantes, uma vez que os problemas sociais, como a desigualdade e a violência, crescem diariamente, e, apesar disso, os representantes, sequer, procuram dialogar com o povo para criar uma política capaz de solucionar tais questões, apenas mantêm-se inertes e distantes da realidade social.
Foi evidenciado que os candidatos a cargos políticos não se aproximam da população como necessário, salvo em períodos eleitorais, para conquistar eleitores, fazendo constantemente promessas vazias, que são sempre descumpridas no decorrer do mandato.
Ressaltou-se ainda, que aliado à inatividade dos políticos frente aos problemas sociais, há, por parte destes, uma busca imoderada pelos interesses pessoais, fato que os distancia cada vez mais do esforço para o alcance do bem comum, que passa a ser objetivo secundário, muito embora seja o principal elemento de um Estado Democrático de Direito.
Além disso, demonstrou-se que o envolvimento constante e quase que generalizado dos representantes eleitos em escândalos de corrupção, desmotiva a população em participar da política no Brasil, pois o povo se encontra com dificuldade em acreditar na honestidade dos governantes.
Desse ponto decorrem as elevadas taxas de abstenção, e a escolha de políticos despreparados como forma de protesto, à crença de que uma nova ditadura é a solução para os tantos problemas sociais, bem como a simpatia por candidatos com um discurso autoritário.
Conclui-se, diante de todos os fundamentos trazidos, que efetiva representação política é elemento essencial para a manutenção dos pilares democráticos, pois, apesar de a adoção do regime da democracia semidireta, no Brasil, possibilitar a participação direta dos cidadãos em algumas questões sociais, o regime representativo é preponderante.
São raras as situações em que são convocados plebiscitos e referendos, e os requisitos para a propositura de uma ação popular acaba dificultado o exercício da mesma pelos cidadãos. Assim, é evidente que a grande maioria das diretrizes estatais são estabelecidas através do regime da democracia representativa, na qual o povo delega o poder a um indivíduo, que o exerce temporariamente, por no mínimo, quatro anos.
Sendo assim, ficou evidente que existe a necessidade de a postura dos governantes seja condizente com as necessidades sociais. Isto é, a vontade do povo precisa ser representada nas decisões dos políticos eleitos, para que a soberania popular, elemento basilar de um Estado Democrático de Direito, seja respeitada e mantida.
Um representante político não pode ignorar os problemas sociais, negligenciar o interesse público e utilizar da máquina estatal para alcançar vantagens pessoais, quando isso acontece, a finalidade pública perde o sentido e há uma clara situação de abuso de poder e de ineficácia da democracia representativa.
O presente trabalho ainda apontou a eleição do atual presidente Jair Messias Bolsonaro como uma resposta da população à atual crise de representatividade e um anseio por mudanças, já que o então presidente, durante o pleito eleitoral se afirmou totalmente antissistema.
Por fim, pretendeu afirmar a possibilidade de forças ditatoriais tomarem o poder no Brasil, já que, diante de uma crise tão intensificada, na qual o descrédito nas instituições democráticas é quase generalizado, foi eleito um candidato de extrema direita, que, se declarou, por diversas vezes de acordo com ideais autoritários vigentes na ditadura de 1964. E, mesmo sem apresentar formas eficazes de solucionar as problemáticas do país, adquiriu a confiança dos cidadãos, por mostrar que também se encontrava em total desconexão com os representantes eleitos até então, e apresentou-se como o candidato da mudança.
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Graduação em Direito pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - PE (FACAPE).Pós Graduação em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CORREIA, Lanna Carine Dantas Ferreira. Crise de representatividade: uma fragilização do ideal democrático brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 set 2022, 04:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59268/crise-de-representatividade-uma-fragilizao-do-ideal-democrtico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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