Resumo: O presente artigo versa sobre o tema “laicidade na Constituição Federal de 1988”, sob a ótica histórica, jurídica e científica, uma vez que uma das propostas do grande livro é a promoção da liberdade de credo e permissão para liberdade religiosa. O principal intuito é compreender como as religiões são abordadas e influenciam em alguns aspectos da Carta Magna brasileira. É de saber que considera-se que a laicidade é considerada concretizada no Brasil, devendo-se compreender como isso funciona na prática, libertando as pessoas ao invés de proibi-las. A fim de entender o processo histórico que levou a essa realidade brasileira, foram feitas pesquisas bibliográficas e documentais, a fim de entender melhor a laicidade na CF/88, observar-se-á sua influência quanto às garantias fundamentais, aspectos democráticos, sobre como integrou a assembleia constituinte, quanto à imunidade tributária de templos religiosos e possibilidade de casamentos religiosos com efeitos civis. Ao término, observar-se-á que a laicidade é uma pedra angular na construção de uma sociedade democrática e diversificada, motivo pelo qual, deve ser constantemente defendida e promovida, a fim de assegurar que todas as crenças.
Palavras-chave: Estado Laico; Pluralismo Religioso; Constituição Federal de 1988; Liberdade Religiosa; Direitos Fundamentais.
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) representa um marco histórico na consolidação da democracia e dos direitos fundamentais no Brasil. Entre os princípios fundamentais que norteiam essa Constituição, a laicidade ocupa um lugar de destaque, estabelecendo uma relação de separação entre o Estado e as instituições religiosas. Neste trabalho, busca-se apresentar algumas notas sobre a laicidade dentro da Norma Maior. O principal objetivo é compreender um pouco da influência religiosa no Brasil hoje, governança que se autodenomina laico.
A laicidade na Constituição de 1988 desempenha um papel fundamental na proteção das garantias fundamentais dos cidadãos, vez que o Estado não pode/deve favorecer ou prejudicar qualquer religião, qualquer pessoa por seu credo, garantindo a todos os brasileiros o direito à liberdade de crença e culto. Isso significa que o Estado não pode impor uma religião oficial, nem interferir nas práticas religiosas dos indivíduos, para, assim, promover um ambiente de igualdade e pluralismo religioso.
Além disso, a laicidade do Estado contribui para a promoção dos aspectos democráticos da sociedade brasileira. O foco é que ela estabeleça uma neutralidade estatal em relação às questões religiosas, o que é essencial para a garantia de uma democracia sólida e inclusiva. Todos os cidadãos, independentemente da sua fé ou crença, devem ter garantida a igualdade de direitos perante a lei, e não podendo o Estado privilegiar grupos religiosos em detrimento de outros.
Outro aspecto relevante abordado a saber é a imunidade tributária dos templos religiosos. Isso significa que as instituições religiosas são isentas de direitos fiscais, a fim de garantir sua autonomia financeira e sustentabilidade. Essa medida visa não apenas proteger a liberdade religiosa, mas também o papel desempenhado por essas instituições na promoção de valores culturais e sociais.
Ademais, a Constituição de 1988 autoriza o casamento religioso com efeitos civis, permitindo que os cidadãos formalizem sua união perante as autoridades religiosas em que acreditam, desde que estejam em conformidade com as leis civis, seguindo-se determinados procedimentos. Essa disposição reflete a diversidade cultural e religiosa do Brasil, afinal, busca permitir que as pessoas escolham como desejam celebrar e formalizar sua união, desde que atendam aos requisitos legais estabelecidos.
Nesse trabalho, deseja-se aprofundar o estudo sobre aspectos da laicidade na CF/88, a fim de, por meio da metodologia de revisão bibliográfica, demonstrar o papel que a laicidade desempenha na construção de uma sociedade justa, plural, respeitosa quanto a diversidade religiosa e valores presentes em solo nacional.
2 - ESTADO LAICO E AS GARANTIAS FUNDAMENTAIS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988.
Com abertura dada pelo governo Geisel, em 1974, iniciou-se a transição “lenta, gradual e segura” (FAUSTO, 2006), para o regime democrático. Em 1985, por meio de eleições indiretas, Tancredo Neves foi eleito para a presidência do Brasil. No entanto, com sua morte, quem veio a assumir o cargo foi o então vice, José Sarney. Sob o seu mandato, restou promulgada a Carta Constitucional de 1988.
O novo texto constitucional representou o “fim aos últimos vestígios formais do regime autoritário” (FAUSTO, 2006), e o estabelecimento da democracia. Bem como, não menos importante, representou o marco jurídico da promoção dos direitos humanos em território nacional (PIOVESAN, 2009) - direitos estes que, em sua conceituação mais sucinta, podem ser definidos como aqueles que se propõem a proteger a dignidade de toda e qualquer pessoa, “pelo simples fato de ser humano” (VIEIRA, 1999).
Foi a primeira constituição brasileira a tratar primeiramente dos direitos e das garantias fundamentais em seu texto, dando a estes dispositivos status de cláusula pétrea, para então, só depois, dispor a respeito do Estado e de sua organização. Essa topografia adotada pelo legislador é bastante simbólica e representativa, visto que as constituições anteriores garantiam esse status apenas aos dispositivos que tratavam do Estado (PIOVESAN, 2009). Como se pode notar, logo no primeiro artigo do texto magno, mais precisamente no inciso terceiro, foi garantida a “dignidade da pessoa humana”, fixando-a como núcleo básico e norteador de todo o ordenamento jurídico pátrio e “como critério de parâmetro de valoração a orientar a interpretação do sistema constitucional” (PIOVESAN, 2009). Os direitos e garantias fundamentais passam, portanto, a compor os princípios constitucionais atendendo os valores éticos e de justiça que permeariam nosso sistema jurídico (PIOVESAN, 2007).
Conhecida também por Constituição Cidadã, alterou o modus operandi da política brasileira no tratamento aos direitos humanos. Reconhecendo as obrigações da comunidade internacional nesse aspecto, concedeu aos tratados internacionais de direitos humanos o status de norma constitucional (PIOVESAN, 2009). Foi a partir de sua promulgação que foram ratificados, pelo Brasil, importantes tratados na proteção desses direitos, entre eles, pode-se citar: Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 1989; Convenção sobre Direitos da Criança, de 1990; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1992; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência da Mulher, de 1995; Estatuto de Roma, de 2002, entre outros. Houve ainda o reconhecimento da jurisdição da Corte Americana dos Direitos Humanos e do Tribunal Penal Internacional (PIOVESAN, 2009).
Os Direito Humanos devem ser compreendidos a partir de uma concepção de luta e ação social (PIOVESAN, 2007), ou ainda, como uma racionalidade de resistência tendo por base a luta “em defesa de novas liberdades contra velhos poderes” (PIOVESAN, 2009). Não surgem todos de uma única vez, ou ainda, depois de nascidos, não são para uma vida toda (PIOVESAN, 2007) pois são frutos de uma criação humana que está em constante processo de (re)construção. Os direitos fundamentais, nesta ótica, são sempre direitos humanos. No entanto, é importante diferenciá-los haja vista que aqueles são tidos como fundamentais por estarem positivados em uma constituição, enquanto os segundos são usados para nomear os direitos naturais que foram incorporados em declarações e convenções internacionais, assim como as necessidades fundamentais relacionadas à dignidade, liberdade e igualdade das pessoas que ainda não foram reconhecidas em um quadro legal específico (LUÑO, 2007).
A adoção de um sistema laico pelo constituinte é, para o exercício dos direitos humanos, uma garantia essencial (PIOVESAN; PIMENTEL, 2003). Em um primeiro momento, de acordo com os ideais liberais de cidadania, a laicidade relaciona-se com o direito de liberdade (BLANCARTE, 2008) que, de acordo com a teorização acerca da historicidade dos Direitos Humanos, trata-se de direito de primeira dimensão[1]. Liberdade, em um conceito breve, trata-se de direito instituído a todos os cidadãos de agir segundo sua própria convicção sem sofrer restrições no exercício de direitos, respeitados os casos determinados por lei (DINIZ, 1998). Desse modo, o texto constitucional tratou tanto das liberdades coletivas, em seu artigo 3°, quanto das liberdades individuais, artigo 5°, prevendo até mesmo punição para qualquer tipo de discriminação que as atentasse.
Tal direito, no campo religioso, refere-se sobretudo à liberdade de consciência, de crença, de culto e de organização religiosa, que se resumem na denominada Liberdade Religiosa, medular para o convívio social (SORIANO, 2002). O ser humano, fundado em sua própria existência, reclama a capacidade de determinar-se, livremente, por acepções filosóficas, sociais e religiosas que deem a realidade mais perfeita sobre si. Assim, atentar contra esta liberdade é negar dimensões essenciais e colocar fim à dignidade (CIFUENTES, 1989). Sobre o assunto, no dia mundial da paz em 1999, o papa João Paulo II afirmou que a liberdade religiosa compunha o coração dos direitos humanos e que ninguém poderia aceitar a imposição de uma religião, independente da circunstância em que se encontra (GALDINO, 2006).
No novo texto constitucional a matéria foi tratada da seguinte forma: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (BRASIL, 1988). Desse modo, o Estado assume um duplo papel em que, de um lado deve garantir a proteção da religiosidade professada por seus cidadãos, e de outro, é defeso de interferir nesta esfera íntima do indivíduo, bem como, na forma organizacional das instituições religiosas.
Nesse aspecto, a Constituição Federal se inscreve na mesma lógica da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 que, ao tratarem da matéria religiosa, garantiram a plena liberdade religiosa, abrangendo seu direito de livre consciência, de crença e de culto, fazendo do Estado o maior garante destas liberdades (MARTIN, 2009). Este tripé – liberdade de consciência, de crença e culto - opera-se no íntimo de cada indivíduo, sendo sua manifestação, portanto, um direito e não um dever. Não obstante, a exteriorização da fé em ambientes coletivos e públicos não autoriza a imposição do credo aos outros indivíduos. Sendo assim, não pode “definir e determinar a esfera pública”, nem pode “tornar suas leis religiosas em parte das leis civis”.
Em um segundo momento, a laicidade vincula-se com outro importante pilar dos Direitos Humanos, também direito de primeira dimensão: a igualdade. É sabido e notório que, devido aos aspectos históricos e sociais, a sociedade brasileira apresenta uma característica muito peculiar: a sua pluralidade cultural. Qualidade esta que também reflete no âmbito religioso. Muitas são as doutrinas religiosas professadas pelo povo brasileiro, havendo ainda aqueles que se eximem de ter fé em algo transcendental, como ateus e agnósticos. Neste aspecto, o princípio laico vem como ferramenta importante que possibilita tratar a todos, sem distinção de crença, com o mesmo respeito e consideração (SARMENTO, 2008).
O princípio da igualdade, dessa forma, também encontra viés na liberdade religiosa e de sua organização, restando vedado ao poder público fazer qualquer diferenciação ou discriminação com escopo na fé do indivíduo. É o que disciplinou o inciso VII do artigo 5° do texto magno ao dizer que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa, ou de convicção filosófica ou política [...]” (BRASIL, 1988). Importante entender também que o favoritismo do Estado a uma crença, religião ou instituição religiosa implica em uma “inaceitável violência” contra o ideal de igualdade ao dar o entendimento desleal que as outras crenças são menos dignas de reconhecimento (SARMENTO, 2008).
Conclui-se, assim, que não há de se falar em Estado Laico sem reconhecer sua relevância para proteção de garantias fundamentais e direitos humanos, bem como para conservação de uma sociedade pluralista e cidadã, que visa a ter sua dignidade respeitada. A importância da laicidade para a proteção da dignidade humana é tamanha que, “alguns autores como G. Jellinek, vão mesmo ao ponto de ver na luta pela liberdade de religião a verdadeira origem dos direitos fundamentais” (CANOTILHO, 2003).
3 - CONCEITO DE ESTADO LAICO E SEUS ASPECTOS DEMOCRÁTICOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988.
No ano de 1988, com a promulgação do texto constitucional, inaugurou-se no Brasil uma nova fase do constitucionalismo brasileiro, rompendo, como já dito anteriormente, com a lógica militar autoritária vivida nas décadas anteriores. Estabeleceu-se, assim, a democracia constitucional no país, que veio a contar com grande participação popular em sua elaboração. Por meio de emendas, foi a constituição que apresentou “o maior grau de legitimidade popular” (PIOVESAN, 2009), fazendo-se valer do princípio democrático adotado logo no primeiro artigo, mais precisamente em seu parágrafo único, o qual diz que todo o poder emana do povo, seja da forma direta, como nas iniciativas populares, ou indireta, na escolha de seus representantes (BRASIL, 1988).
Nesse sentido, a democracia representativa e a laicidade estão intrinsecamente ligadas (BLANCARTE, 2008). Não há de se falar em liberdade religiosa, direitos civis e políticos, sem democracia. Esta é substrato para o exercício daqueles, e de outros direitos fundamentais (SORIANO, 2009). Por Estado Laico entende-se “um regime social de convivência, cujas instituições políticas são legitimadas principalmente pela soberania popular e não por elementos religiosos” (BLANCARTE, 2008). Portanto, em determinado momento da história, o poder afasta-se da figura central do monarca que se legitima pelo sagrado, deixando assim sua forma absoluta, para basear-se em uma forma constitucional fomentada pelos anseios populares (BLANCARTE, 2008).
O termo Laico deriva da palavra grega “laikos”, que significa “leigo, do povo”. Nessa concepção, o termo se aproxima ainda mais da ideia de Estado Democrático. O princípio da laicidade adota uma postura neutra em relação às questões religiosas, o que o torna imparcial, não apoiando e nem se opondo a nenhuma religião. Permite aos cidadãos a escolha da matriz religiosa que pretendem seguir, livre de qualquer discriminação direta ou indireta, promovendo a igualdade e liberdade entre os indivíduos em um ambiente plurireligioso (DOMINGOS, 2009).
A laicidade veda a submissão ou cerceamento praticados por qualquer religião ou organização religiosa às diretrizes e aos direitos do Estado, ou ainda, de “apropriar-se dele para seus interesses”, garantindo com isso a pacificação em um cenário de pluralidade religiosa em que o Estado não privilegia nenhuma delas (DOMINGOS, 2009). O Estado Moderno preocupa-se não só com a separação entre Estado-Religião, como também pela autonomia de ambas as instituições, a fim de evitar qualquer contaminação entre elas, entendendo que “o Estado nada pode em matéria puramente espiritual, e a Igreja nada pode em matéria temporal” (LOCKE, 1978, p. 14). No entanto, embora a separação “orgânica e formal” entre Estado-Religião tenha sido fundamental para o próprio surgimento do Estado Nacional, países tradicionalmente católicos têm demonstrado que sua separação é apenas institucional, e que suas políticas continuam sendo inspiradas em valores, crenças e princípios religiosos (HUACO, 2008).
Desse modo, o princípio da laicidade é composto por outros três princípios: da neutralidade do estado, da liberdade religiosa e do respeito ao pluralismo (DOMINGOS, 2009). Entretanto, no âmbito da relação Estado-Religião, importante se faz distinguir a laicidade de outros dois sistemas: Estado Ateu e Estado Confessional.
Em uma breve diferenciação, entende-se por Estado Ateu aquele anticlerical, ou ainda, antirreligioso, no qual o poder público tenta suprimir toda e qualquer religião por entender que esta é causa de alienação em termos sociais e individuais. Opõe-se a qualquer prática religiosa retirando a ideia do “divino” tanto da vida pública quanto da esfera privada dos indivíduos. Não se admite, portanto, a liberdade religiosa e outras liberdades que dela derivam (ZYLBERSZTAJN, 2012).
Já no Estado Confessional há a escolha de uma religião oficial - vedando ou apenas tolerando as demais confissões - e, com isso, a concessão de privilégios a esta. Estes privilégios podem vim de diversas maneiras, como por meio de recursos financeiros públicos, direta ou indiretamente, incorporação das diretrizes morais religiosas no ordenamento jurídico do Estado, entre outros. Tal predileção é justificada pelos Estados com base no fato da religião escolhida ser adotada pela maior parte da população, ou ainda, por considerar aquela crença a única verdadeira, fazendo jus a sua superioridade (GALLEGO, 2010). Sendo assim, apenas seus seguidores têm a identidade religiosa garantida de forma igualitária. Há, portanto, a união entre Estado e Religião: o Estado declara sua fé e garante a ela certa autoridade, o que pode resultar em conflitos religiosos. No Brasil, este modelo de Estado se fez presente no período Imperial (SEFERJAN, 2012).
Em vista destes três sistemas, vê-se que a escusa em adotar um Estado Laico “inviabiliza qualquer projeto de sociedade pluralista, justa e democrática” (PIOVESAN; PIMENTEL. 2003). No entanto, o aspecto democrático deve ser entendido levando-se em conta o modelo constitucionalista garantidor e protetor de direitos fundamentais de qualquer cidadão. Assim, embora seja entendido que democracia, restritamente, esteja ligada à participação popular e satisfação das pretensões da maioria, em um Estado Democrático de Direito, os princípios constitucionais devem impedir arbítrios que transgridam as liberdades individuais das minorias. Sob pena de arruinar sua própria essência, a democracia não pode se estabelecer de maneira absoluta ou ilimitada (ZYLBERSZTAJN, 2012). Portanto, para o bom funcionamento do sistema democrático, a “democracia não se confunde com o simples governo das maiorias, pressupondo antes o respeito a uma série de direitos, procedimentos e instituições, que atuam para proteger as minorias” (SARMENTO, 2008).
Neste sentido, a religião predominante em um Estado Democrático não deve prevalecer e nem se impor àqueles que optam por professar outra fé ou por não professar nenhuma. A assimilação dos “valores da maioria aos valores da minoria [...] torna a comunidade política hostil ao pluralismo” (ALMEIDA, 2006, p. 96). Assim, o Estado em suas ações deve apoiar-se unicamente à racionalidade e à razoabilidade, não podendo admitir que discussões e decisões políticas baseiem-se em dogmas, pois, com estes, não há discussão democrática (ZYLBERSZTAJN, 2012).
4 - A INFLUÊNCIA RELIGIOSA NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE
Abordar a laicidade no texto constitucional de 1988 remete à análise do poder constituinte desta e da influência religiosa fomentada por alguns parlamentares. A Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 contou com o maior grupo de constituintes evangélicos da história do país, representado por 34 parlamentares, tendo como líder o deputado Gidel Dantas (PMDB/CE) (PINHEIRO, 2008).
Formada uma bancada evangélica constituinte, sua primeira vitória veio com a aprovação da emenda n° 681, que culminaria no art. 46 do Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte. Proposta por Salatiel Carvalho, membro da igreja Assembleia de Deus e deputado pelo PFL/PE, o dispositivo legal dispunha que, “A Bíblia Sagrada deverá ficar, sobre a mesa da Assembleia Nacional Constituinte, à disposição de quem dela quiser fazer uso” (BRASIL, 1987b). Embora, a princípio, o então relator e senador Fernando Henrique Cardoso tenha feito uso do discurso da laicidade para afastar a proposta, o mesmo voltou atrás e colocou o texto em pauta para votação alegando que na própria assembleia já estava afixado, em uma das paredes, um crucifixo e, portanto, não haveria maiores problemas em se ter também uma bíblia. Em fase de votação, a proposta foi acolhida por unanimidade da casa (PINHEIRO, 2008).
A aceitação da emenda pode advir de duas justificativas/possibilidades: representou o “anseio profundo e indispensável de todos os constituintes” (PINHEIRO, 2008) ou, “correspondia à pretensão de um grupo específico, mas que não encontrava qualquer oposição por parte dos demais em razão de sua matéria caracterizar-se por uma não-essencialidade” (PINHEIRO, 2008), ou seja, por entenderem se tratar de um assunto irrelevante, que não mereceria maiores discussões. No entanto, tendo em vista a rejeição inicial à proposta e que, provavelmente, nem todos os parlamentares tenham tido interesse na supracitada bíblia, quiçá alguns não eram nem adeptos à alguma religião cristã, mister se faz optar pela segunda opção.
A vitória foi exposta pelos parlamentares evangélicos na tribuna do plenário constituinte, entre eles Orlando Pacheco do PFL/SC, que exaltou a coragem dos colegas que lutaram pela medida, bem como, em suas palavras, afirmou: “a Bíblia Sagrada é o livro que representa a primeira, maior e melhor Constituição que o mundo já recebeu” e, ainda, “a partir da sua efetivação, todos os interessados poderão usufruir dos ensinamentos e das palavras de orientação bíblicas para a vida moral, social e cultural de cada um” (BRASIL, 1987a, p. 763). Outro parlamentar que tratou de parabenizar a proposta foi Matheus Iensen, do PMDB/PR, que além de exaltar seus companheiros responsáveis pela conquista, exaltou também a escritura sagrada: “teremos de compartilhar neste recinto do maior ensinamento contido em qualquer livro que se tenha conhecimento, [...], o livro dos livros, que hoje é parte integrante do nosso meio através da Emenda n°681” (BRASIL, 1987a, p. 4986) e, por fim, tratou de profetizar que países que se fundamentaram na Bíblia Sagrada prosperaram grandemente, e seremos ainda mais prósperos se continuarmos a ler e adotar seus valiosos ensinamentos (BRASIL, 1987a, p. 4986).
Todo este evento, ocorrido no interior de uma Assembleia Nacional Constituinte, mostra a dificuldade que o novo texto constitucional teria para a efetivação da laicidade na redemocratização do país. Não só a presença, mas a exigência legal da Bíblia na Assembleia não poderia ser tratada como assunto irrelevante, ignorando-se assim todo seu potencial simbólico e de influências.
O mandato político daqueles que se auto afirmavam como bancada evangélica, diante de suas próprias falas em assembleia, se estabelecia como “um tripé vocação-profetismo-martírio” (PINHEIRO, 2008). A “vocação” diz respeito à escolha de Deus ao eleger o candidato. Vencer as eleições seria o chamado de Deus ao parlamentar para cumprir sua obra divina. Já o tom “profético” se relaciona à obrigação do parlamentar, assim como os profetas bíblicos, de denunciar “as realidades desviadas do plano divino” (PINHEIRO, 2008), como fez Daso Coimbra (PMDB/RJ) ao trazer à tona, em tribuna, os efeitos do Carnaval brasileiro, comparando a celebração com as “cidades imorais de Sodoma e Gomorra, sobre as quais a ira de Deus se manifestou plena ao ponto de destruí-las e a seus habitantes” (BRASIL, 1988, p. 7647).
A última característica, o “martírio” se dá uma vez que, por ser representante de seu povo, o parlamentar sofreria as consequências e perseguições por professar sua fé (PINHEIRO, 2008). O deputado Milton Barbosa (PDC/BA), ao comentar uma notícia da época, que acusava a Confederação Evangélica do Brasil de captar recursos federais para se privilegiar (PINHEIRO, 2008), fez referência ao texto bíblico, “bem aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós [...]”, e ainda, para reforçar o tom de martírio e de perseguição, disse “a imprensa brasileira [...] levantou-se contra a representação que as Igrejas Evangélicas [...] mandaram a esta casa [...] nenhum outro grupo, anteriormente, foi atacado de forma tão pusilânime e violenta” (BRASIL, 1988, p. 12564-12565).
Apesar de contar com 34 parlamentares, no total de 559 constituintes, a bancada evangélica passou a ganhar corpo e força de articulação em assuntos estratégicos de sua conveniência. Buscando a defesa dos bons costumes, eram de seu interesse, por exemplo, assuntos ligados ao aborto, ao divórcio, à prostituição, à pornografia (principalmente aquela que pesava sobre os meios midiáticos, como a televisão), e ao homossexualismo (PINHEIRO, 2008).
As citações religiosas não só ampliaram a importância visual da Bíblia, mas também conferiram um efeito de veracidade ao discurso do legislador (PINHEIRO, 2008). O texto bíblico passou a ser lembrado por diversas vezes durante as audiências para elaboração da nova carta constitucional. Desse modo, ao tratar sobre aborto, o deputado Matheus Iesen exaltou o Livro de Levíticos, inserido na Bíblia (BRASIL, 1988, p. 6771); ao tratar sobre a inclusão do termo “orientação sexual”, o parlamentar Eliel Rodrigues alegou que seria a oficialização do homossexualismo, reprovável pela ordem moral e espiritual, e lembrou que “Deus ama o pecador, mas aborrece-o o pecado” (BRASIL, 1987a, p. 4877); nas discussões em torno da AIDS, Orlando Pacheco do PFL/SC se referiu à doença como “símbolo da permissividade”, consequência de uma sociedade libidinosa que colheria “os frutos de sua desobediência a Deus” (BRASIL, 1987a, p. 1279). Gidel Dantas, líder da bancada evangélica, não deixou de demonstrar seu viés religioso, afirmando: “A nossa participação no centro de decisões do País é para oferecer ao Senhor Deus o nosso mandato” (BRASIL, 1987a, p. 176).
A bancada também mostrou sua pujança nas discussões acerca da permanência do termo “sob a proteção de Deus” contida no preâmbulo da Constituição de 1988. Isto, pois, o deputado do PT de São Paulo, José Genuino, manifestou-se, por meio da emenda supressiva n° 523, a favor da retirada da expressão contida preambularmente no texto magno, visto que, segundo ele, afrontava a laicidade nacional e o pluralismo religioso, característica esta que estava na essência do povo brasileiro (PINHEIRO, 2008). No entanto, a bancada rebateu fortemente a emenda. Assim o fez Daso Coimbra, alegando que a sociedade brasileira não refutaria a proteção de Deus em nenhum momento (PINHEIRO, 2008). Fausto Rocha (PFL/SP) alegou ser “feliz a nação cujo Deus é o Senhor” (BRASIL, 1987a, p. 6634), e justificou a permanência do termo tendo em vista a prevalência do cristianismo em nosso país.
Trazida ao plenário da comissão, a supracitada emenda proposta pelo deputado do PT foi vencida por 74 votos contrários, contando apenas com um a favor (PINHEIRO, 2008). Desse modo, conclui-se que o processo constituinte nacional contou com grande influência e efervescência religiosa, personificada em um grupo devidamente organizado.
5 - DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA AOS TEMPLOS RELIGIOSOS
Garantida pioneiramente pela constituição de 1934, a imunidade tributária sobre os templos religiosos de qualquer culto foi mantida pelo texto constitucional atual, no artigo 150, inciso VI, alínea “b”. De antemão, deve ser compreendido que esta previsão constitucional se refere a impostos, apesar da existência de imunidades que recaem sobre outros tipos de tributos (FISCHER, 2009). Por imunidade entende-se um “obstáculo decorrente de regra da Constituição à incidência de regra jurídica de tributação. O que é imune não pode ser tributado. A imunidade impede que a lei defina como hipótese de incidência tributária aquilo que é imune” (MACHADO, 2010, p. 190).
O alicerce das imunidades constitucionais encontra-se no fato de ser uma ferramenta de promoção dos valores fundamentais de uma sociedade, como, por exemplo, aquela garantida aos livros, que visou ao desenvolvimento cultural, científico, artístico, intelectual do povo brasileiro (FISCHER, 2009). Do mesmo modo, ao garantir a imunidade aos templos de qualquer religião, buscou-se a efetivação da tolerância religiosa e do princípio da liberdade de crença uma vez que - como previsto pelo artigo 19, I, da Constituição, que proíbe o Estado de embaraçar as atividades religiosas - a imunidade assim garantida impede que sobrevenham obstáculos econômicos à realização dos cultos (MORAES, 2014).
O termo utilizado pelo constituinte - “templos” - não visa a proteger apenas os locais onde se dá a realização das liturgias, mas sim todo imóvel anexo que se relaciona à atividade religiosa, como seminários, conventos, e até mesmo cemitérios – conforme decidido pelo STF no Recurso Extraordinário n° 578.562 (BRASIL, 2008). Não obstante, também se encontram protegidos e imunes todo o patrimônio, renda e serviços que estejam ligados às finalidades essenciais confessionais. É o que preceitua o §4° do artigo 150° da Constituição Federal. Importante ressaltar que deve haver este nexo entre a coisa sobre a qual recai a imunidade e a essencialidade da atividade religiosa. Deste modo, não se encontra sob esta proteção, as rendas que provêm da venda de bens, ou ainda, aluguéis de imóveis, entre outras coisas, por não serem tidas como funções essenciais.
Congruente ao estabelecido no art. 150, VI, alínea "b" da Constituição Federal, a EC 116 de 2022 define a inaplicabilidade da incidência de impostos municipais sobre templos de qualquer culto, mesmo que o referido artigo preveja somente a imunidade para locatárias do bem imóvel.
6 - CASAMENTO RELIGIOSO E OS EFEITOS CIVIS
Após 1934, todas as constituições nacionais garantiram efeitos civis aos casamentos realizados sob a égide religiosa. O constituinte de 1988 trouxe, no artigo 226, §2°, que “o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei” (BRASIL, 1988). De forma subsidiária caminham os artigos 1.515 e 1.516, ambos do Código Civil, que equiparam o casamento religioso ao casamento civil e submetem a validade daquele aos requisitos exigidos por este, como habilitações e prazos. No mesmo sentido, tem-se ainda a lei de Registros Públicos (lei n° 6.015/73) que traz outras diversas exigências legais para o registro civil de casamento religioso.
Ocorre que, apesar do texto legal não instituir nenhum óbice ao respeito das liberdades laicas, a prática tem-se mostrado controversa quanto aos casamentos realizados sob os pilares de religiões não hegemônicas, como seitas umbandistas e centros espíritas. Caio Mário da Silva Pereira, por exemplo, ao tecer comentários referentes ao casamento religioso instituído pelo código civil de 1916, defende que é inadmissível o registro de casamentos ocorridos em “terreiro de macumba, centros de baixo espiritismo, seitas umbandistas, ou outras formas de crendices populares, que não tragam a configuração de seita religiosa reconhecida como tal” (PEREIRA, 2000, p. 42).
No entanto, apesar da matéria ainda não ter sido levada ao Supremo Tribunal Federal, há Tribunais de Justiça estaduais que já decidiram sobre o tema e apresentaram posicionamentos divergentes da doutrina pontuada acima, como os Tribunais do Rio Grande do Sul e da Bahia.
Em 2006, o Tribunal de Justiça baiano - ao apreciar o mandado de segurança impetrado por um casal que teve o registro de casamento negado pelo cartório por ter sido celebrado em um centro espírita - baseou-se nas garantias constitucionais de liberdade religiosa e dignidade da pessoa humana para decidir que o casamento celebrado sob o mantra da religião espírita terá eficácia jurídica e se equiparará ao casamento realizado diante autoridade pública, desde que respeitados os requisitos legais (LENZA, 2014).
No mesmo sentido decidiu o Tribunal do Rio Grande do Sul, após uma viúva ter seu benefício de pensão por morte indeferido administrativamente, pelo INSS, sob a justificativa do não cumprimento de um dos requisitos, qual seja, ser dependente do segurado sob a qualidade de cônjuge, tendo em vista o não reconhecimento do seu casamento com o falecido marido celebrado em terreiro Umbanda. O Tribunal, acertadamente, garantiu validade jurídica à celebração nupcial (LENZA, 2014).
O que se deve entender, portanto, é que a lei fundamental do país, bem como a lei ordinária, não especificaram quais religiões teriam direito à este reconhecimento civil, e nem poderiam tê-lo feito, tendo em vista o caráter laico e a vedação de garantir privilégio a determinadas denominações religiosas. O que ocorre é que os instrumentos normativos exigiram apenas formalidades burocráticas de modo a garantir a dignidade e a liberdade de crença do ser humano. Sendo assim, preenchidas estas formalidades legais, é inconstitucional a vedação do reconhecimento civil de casamento realizado sobre o prisma de qualquer religião.
A Constituição Federal de 1988, aduz através de suas disposições que a laicidade do Estado, desempenha um papel fundamental na proteção das liberdades individuais e na promoção da igualdade religiosa no Brasil.
Neste sentido, a Constituição estabelece as bases para uma sociedade pluralista e inclusiva, que somente é possível em razão da separação clara entre o poder estatal e as instituições religiosas, juntamente com a garantia da liberdade de consciência e crença.
No entanto, é oportuno mencionar que, mesmo com as seguranças constitucionais, ainda persistem desafios referentes à aplicação efetiva desses princípios, especialmente no que diz respeito à garantia da liberdade religiosa para todos os cidadãos.
Portanto, a laicidade na Constituição Federal de 1988 é um tema de grande relevância para a compreensão do sistema legal e da cultura política brasileira. Este artigo demonstra que a laicidade é uma pedra angular na construção de uma sociedade democrática e diversificada, motivo pelo qual, deve ser constantemente defendida e promovida, a fim de assegurar que todas as crenças, ou a ausência delas, sejam respeitadas e protegidas em um ambiente de igualdade perante a lei.
Isto posto, pontua-se que o estudo da laicidade na Constituição de 1988 também serve como inspiração para outros países que buscam estabelecer um equilíbrio entre liberdade religiosa e a separação efetiva entre religião e governo.
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[1] A teoria das gerações dos Direitos Humanos surgiu pela primeira vez com Karel Vasak e, ao longo dos anos, foi sendo desenvolvida por pensadores como Noberto Bobbio. Dividida em gerações/dimensões, em que não há um processo de substituição entre elas e sim de acumulação, a primeira dimensão é reflexo da Revolução Francesa e diz respeito à preservação de direitos como a vida, liberdade e igualdade. Já a segunda dimensão diz respeito aos direitos sociais decorrentes da luta de classes em que o Estado deve promover uma vida digna com trabalho, educação, saúde, moradia, entre outros. A terceira compreende os direitos de preservação do meio ambiente e do consumidor. Fala-se ainda em uma quarta dimensão, que se referiria aos avanços das tecnologias, como, por exemplo, as pesquisas biológicas e o patrimônio genético, e seus limites constitucionais. (BOBBIO, N. Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Campus, 1988. p. 9-11.).
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Grande Dourados. Pós graduado em Direito Administrativo pela Faculdade Campos Elíseos. Defensor Público do Estado do Paraná .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Matheus Paulo de. Notas sobre a laicidade na Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 nov 2023, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/63702/notas-sobre-a-laicidade-na-constituio-federal-de-1988. Acesso em: 22 nov 2024.
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