Resumo: O trabalho estuda o instituto da intervenção federal. Aborda o seu conceito, os princípios basilares que regem o instituto, seus requisitos e as hipóteses de cabimento. Por meio do contexto histórico e da análise das intervenções federais decretadas nos Estados do Rio de Janeiro, de Roraima e o Distrito Federal, com reforço nas decisões jurisprudenciais, pretende-se reforçar a excepcionalidade da intervenção.
Palavras-chave: estado de síncope, intervenção federal, excepcionalidade.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Conceito; 3. Princípios que permeiam o instituto da intervenção federal; 4. Sistema constitucional de crises; 5. Intervenção federal: hipóteses autorizadoras; 6. As intervenções federais no Brasil: o caso do Rio de Janeiro, de Roraima e do Distrito Federal. 7. Conclusão; 8. Referências bibliográficas.
1.Introdução
Como primado do princípio da concordância prática, também conhecido como princípio da justeza, o constituinte brasileiro garantiu a devida separação entre os poderes (art. 2º, da Constituição Federal), cláusula pétrea, com previsão no artigo 60, § 4º, inciso III, da CR/88, no entanto, em respeito aos valores fundantes que enuncia, excepcionou em seu próprio texto mecanismos de intervenções excepcionais.
Dentro deste contexto, estuda-se o instituto da intervenção federal regulamentada no artigo 34 e seguintes da Constituição Federal de 1988 (CR/88).
Aborda-se o conceito da intervenção federal, destrinchando os seus requisitos e hipóteses de cabimento, analisando-os, com apontamentos da doutrina e decisões proferidas pelas Cortes Superiores.
A relevância do instituto da intervenção federal foi ampliada pelas recentes intervenções decretadas nos Estados do Rio de Janeiro e Roraima, e no Distrito Federal.
O presente artigo visa apontar as excepcionalidades que permeiam o instituto da intervenção federal e trazer a aplicabilidade do instituto.
2.Conceito.
O instituto político e jurídico-constitucional da intervenção federal pode ser compreendido como uma garantia da integridade e do equilíbrio da Federação.
Conforme preconiza o art. 18, “caput”, da CR/88, a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil é composta pela União, Estados, Distrito Federal e pelos Municípios, todos são autônomos. A autonomia é manifestada pelas capacidades de auto-organização, autogoverno, autoadministração e auto legislação.
Diante de situações de anormalidade, permite-se, de forma excepcional, a intervenção de um ente federado superior em outro ente federado, afastando-se, portanto, a máxima de que nenhum ente federado deverá intervir em qualquer outro.
Para Flávio Martins “a intervenção é a retirada da autonomia do ente federativo”[1]. Importante registrar que esta supressão é temporária, excepcional, visando atender a situações de anormalidades, sempre do ente mais amplo para o ente menos amplo.
Conforme Luiz Guilherme Marinoni, Sergio Arenhart e Daniel Mitidiero:
(...) embora a intervenção implique sempre maior ou menor ingerência no ente federativo que a sofre, ela ocorre para preservar o interesse maior do Estado Federal e, por via de consequência, dos demais entes federativos.
Assim, é possível afirmar que o instituto da intervenção cumpre função essencial à própria preservação do Estado Federal, assumindo, portanto, a condição de defesa do interesse nacional e instrumento de garantia mútua de todos os integrantes da Federação.[2]
Sarlet, Marinoni e Mitidiero ainda esclarecem sobre a natureza dúplice da intervenção:
A natureza da intervenção é dúplice, pois embora se cuide de um ato (e processo) essencialmente político – tese esgrimida por respeitável doutrina –, as suas hipóteses de cabimento (portanto, o seu próprio fundamento e razão de ser) e o seu procedimento, bem como as respectivas consequências, são objeto de regulação jurídico-constitucional, inclusive desafiando controle jurisdicional, de tal sorte que a natureza política convive com a natureza de um ato jurídico[3].
Em linhas gerais, a intervenção é uma medida de natureza política, jurídico-constitucional, de cunho excepcional, prevista taxativamente na Constituição Federal de 1988, consistente na incursão de um ente superior em assuntos de um ente inferior, segundo a qual afasta-se a autonomia federativa, restringindo-a temporariamente, com o objetivo de preservar o pacto federativo – o equilíbrio e a estabilidade – para fazer cumprir os demais princípios e regras constitucionais.
3.Princípios que permeiam o instituto da intervenção federal
Conforme as lições do professor Bernardo Gonçalves Fernandes, entre os princípios basilares que regem o instituto da intervenção federal, figuram o princípio da excepcionalidade, o princípio da taxatividade e o princípio da temporalidade.
O princípio da excepcionalidade indica que a intervenção federal sempre será medida excepcional, uma vez que a regra no federalismo é a autonomia do ente.
Sem dúvida, a intervenção federal é a antítese da autonomia. Nesse sentido, a intervenção é uma ingerência na autonomia visando ao reestabelecimento do equilíbrio que foi desvirtuado e, por isso, só pode ser medida excepcional (e dotada da necessidade). O art. 34, caput, da CR/88, deixa essa assertiva clara quando afirma que a União não intervirá nos Estados nem no DF, senão excepcionalmente[4].
O princípio da taxatividade indica que as hipóteses de intervenção estão previstas em rol fechado (numerus clausus) na Constituição.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) assentou que a Constituição Estadual não pode disciplinar sobre intervenção estadual de forma diferente das regras previstas na Constituição Federal, reforçando a taxatividade do rol do art. 35 da CR/88. Trata-se de entendimento pacífico do STF:
É inconstitucional — por violação aos princípios da simetria e da autonomia dos entes federados — norma de Constituição estadual que prevê hipótese de intervenção do estado no município fora das que são taxativamente elencadas no art. 35 da Constituição Federal.
STF. Plenário. ADI 6619/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 21/10/2022 (Info 1073).
A Constituição Estadual não pode trazer hipóteses de intervenção estadual diferentes daquelas que são previstas no art. 35 da Constituição Federal.
As hipóteses de intervenção estadual previstas no art. 35 da CF/88 são taxativas.
STF. Plenário. ADI 2917, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 27/03/2020.
Viola a Constituição Federal a previsão contida na Constituição Estadual atribuindo aos Tribunais de Contas a competência para requerer ou decretar intervenção em Município.
Essa previsão não encontra amparo nos arts. 34 e 36 da CF/88.
STF. Plenário. ADI 3029, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 27/03/2020.
É inconstitucional a atribuição conferida, pela Constituição do Pará, art. 85, I, ao Tribunal de Contas dos
Municípios, para requerer ao Governador do Estado a intervenção em Município. Caso em que o Tribunal de Contas age como auxiliar do Legislativo Municipal, a este cabendo formular a representação, se não rejeitar, por decisão de dois terços dos seus membros, o parecer prévio emitido pelo Tribunal (CF, art. 31 31, § 2º 2º).
STF. Plenário. ADI 2.631, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 29/8/2002.
O princípio da temporalidade, por sua vez, adverte que a intervenção terá sempre prazo determinado, rememorando que a regra da Federação é a autonomia dos entes federados.
Como alerta Bernardo Gonçalves, “a ingerência buscará o reestabelecimento do equilíbrio. Portanto, no decreto de intervenção deve constar o seu prazo determinado”[5].
4.Sistema constitucional de crises.
A intervenção federal está inserida no âmbito do denominado “sistema constitucional de crises” brasileiro, ou seja, aos estados de exceção, nos quais estão inseridos o Estado de Defesa (art. 136, da CR/88) e o Estado de Sítio (art. 137, da CR/88).
O ponto crucial que diferencia a intervenção federal dos demais sistemas de crises (Estado de Defesa e de Exceção), é o fato de que na intervenção há apenas o afastamento temporário da autonomia do Estado, para dar tratamento pontual à instabilidade manifesta, fundada nas hipóteses taxativamente previstas na Constituição, sem a possibilidade de supressão de direitos fundamentais do cidadão (como o direito de ir e vir, de prestar, de se reunir, a exigência de mandado judicial para a busca e apreensão em domicílio, a prisão apenas sob circunstâncias legais e o devido processo legal), entre outros.
Assim, diversamente dos Estados de Defesa e de Sítio, “não haverá desestruturação do restante da máquina político-administrativa do ente federativo, a ação é específica, planejada a partir do Decreto Presidencial e por tempo certo.”[6]
Nesse sentido, Pedro Lenza:
Diferente da decretação do estado de defesa e do estado de sítio, que expressamente admitem a possibilidade de imposição de medidas coercitivas, inclusive restrições a direitos e garantias (cf. arts. 136, § 1.º, I e II, e 139, I-VII), a Constituição não estabelece nenhuma possibilidade de restrição a direitos na hipótese de decretação de intervenção federal. Nesse sentido, diante da excepcionalidade da medida, a interpretação deverá ser restritiva e, portanto, não se admitirá, em hipótese alguma, mitigação de direitos fundamentais.
Repudiamos qualquer medida que tenha se imaginado no caso do Rio de Janeiro, conforme noticiado pela imprensa, de se expedirem “mandados coletivos de busca, apreensão e captura”, ou, conforme se expressou em outro momento, “mandados com múltiplos alvos”, destacando-se, nesse sentido, tanto a Nota Técnica Conjunta do MPF — PGR-00072549/20158 (20.02.2018), como a Nota Pública expedida pela Associação Nacional dos Defensores Públicos — ANADEP (21.02.2018), ambas enaltecendo a necessidade de serem observadas as garantias fundamentais da presunção de inocência, do devido processo legal, da inviolabilidade do domicílio e da intimidade, do dever de motivar as decisões judiciais e, naturalmente, a regra legal contida no art. 243, do CPP.[7]
A Constituição de 1988 vedou a reforma constitucional "na vigência de intervenção federal, estado de sítio e estado de defesa" (art. 60, §1°).
Acerca dos limites circunstanciais ao poder de reforma, que têm por escopo impedir mudanças constitucionais em contextos de grave crise institucional, rememoram Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto:
Na história constitucional brasileira, muitas reformas foram promovidas nesses períodos de crise: a única emenda à Constituição de 1891 foi aprovada em 1926, quando vigia o estado de sítio no país; as reformas realizadas na Constituição de 1937 foram promovidas sob estado de emergência, com o Congresso fechado; a Emenda Constitucional nº 1/69 – para nós, uma nova Constituição -, e também as Emendas nº 7 e nº 8/77 – conhecidas como o “Pacote de abril” do governo Geisel -, foram impostas pelo Executivo, com o Congresso mais uma vez fechado, com base nos poderes concedidos pelo AI-5.
Apesar disso, algumas constituições brasileiras anteriores previram limites circunstanciais para reformas: as constituições de 1934 (art. 178, § 4°), 1946 (art. 50, § 2°), 1967 (art. 50, § 2°) e 1969 (art. 47, § 2°) vedaram-nas na vigência do estado de sítio.
Outros sistemas constitucionais também instituíram limites circunstanciais ao poder de reforma. A Constituição portuguesa, por exemplo, veda o seu exercício durante o estado de sítio ou de exceção (art. 289), e a espanhola o proíbe em tempos de guerra, estado de alarme, de exceção e de sítio (art. 169). Na França, interditou-se a mudança da Constituição quando "ameaçada a integridade do território" (art. 89), e, na Bélgica, as reformas foram vedadas nos períodos de guerra, ou em que haja impedimento para livre reunião das câmaras (art. 196), além de terem sido substancialmente limitadas nos momentos de regência (art. 197)[8].
Os autores ainda pontuam:
Além de todo o complexo de limitações de ordem formal, já apresentadas, o constituinte de 1988 vedou a realização de emendas à Constituição durante intervenção federal nos Estados-membros da Federação, bem como na vigência dos estados de defesa ou de sítio (art. 60, § 1.º), o que se justifica principalmente pelo fato de que nestas situações anômalas, caracterizadas por um maior ou menor grau de intranquilidade institucional, poderia ficar perturbada a livre manifestação dos órgãos incumbidos da reforma e, em decorrência, a própria legitimidade das alterações[9].
5.Intervenção federal: hipóteses autorizadoras
As hipóteses de intervenção federal, leia-se, realizada pela União nos Estados e no Distrito Federal, estão previstas no art. 34 da CR/88, e da intervenção da União nos Municípios localizados em território federal estão listadas no art. 35, da CR/88.
Conforme dispõe a Constituição Federal:
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I - manter a integridade nacional;
II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;
VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.
Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:
I - deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada;
II - não forem prestadas contas devidas, na forma da lei;
III - não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde;
IV - o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial.
Reconhecendo a ampliação do instituto por ora tratado pela Carta Política, registram Marinoni, Arenhart e Mitidiero:
No que diz com a evolução constitucional brasileira, ao passo que no sistema constitucional anterior a Intervenção era limitada aos Estados membros, ou seja, a uma intervenção federal nos Estados-membros, com a CF o instituto foi ampliado, seja para permitir a intervenção federal no Distrito Federal, mas também por força da inserção do Município no esquema federativo, para assegurar a intervenção dos Estados-membros nos Municípios (e mesmo da União nos Municípios), tudo conforme regulado nos arts. 34 a 36 da CF.[10]
Segundo José Afonso da Silva, em síntese, as finalidades da intervenção federal são quatro, quais sejam: a) a defesa do Estado, quando é autorizada para manter a integridade nacional e repelir invasão estrangeira – inciso I e II do art. 34, da CR/88; b) a defesa do princípio federativo, que visa impedir a invasão de uma unidade federativa em outra, pôr fim a grave comprometimento da ordem pública e garantir o exercício dos poderes nos entes da federação – incisos II, III e IV, do art. 34, da CR/88; c) a defesa das finanças estaduais, quando um estado suspende o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos (inciso V, do art. 34, da CR/88); e d) a defesa da ordem constitucional , quando ocorre para prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial e para garantir a observância dos princípios constitucionais sensíveis (incisos VI e VII, do art. 34, da CR/88).[11]
Há três espécies de intervenção federal, quais sejam: a) a espontânea, que ocorre por decretação do Presidente da República, de ofício, sem provocação, diante da ocorrência das hipóteses dos incisos I, II, III e V, do art. 34, da CF (caso da intervenção do Rio de Janeiro); b) por solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, para garantir o livre exercício de seus Poderes. Deverá haver solicitação do poder coagido ao Presidente da República. Note-se que mesmo diante da solicitação, a decretação da intervenção é de discricionariedade do Presidente (art. 36, I, “1ª parte”, da CR/88; ou c) requisitada.
A intervenção por requisição pode ocorrer: a) em caso de descumprimento de ordem ou decisão judicial que esteja sendo desrespeitada, dependerá de requisição ao Presidente da República feita pelos Tribunais Superiores (leia-se do STF, do STJ ou do TSE), conforme art. 34, inciso VI, da CR/88; b) em caso de violação dos princípios constitucionais sensíveis ou de recusa ao cumprimento de lei federal, a requisição dependerá de provimento (leia-se, decisão julgando procedente), pelo STF, de representação do Procurador-Geral da República (art. 36, III, da CR/88). Nesta hipótese, a intervenção será ato vinculado a sentenças em ações específicas, de competência originária do STF, pela intercessão de uma ação direta de inconstitucionalidade interventiva, razão pela qual o Presidente da República será obrigado a acatar a requisição, pois o seu não atendimento configura crime de responsabilidade.
A ação interventiva é restrita às questões de grave ofensa aos princípios sensíveis elencados no inciso VII do artigo 34 da Constituição Federal, bem como no caso de recusa à execução de lei federal (inciso VI, “primeira parte”, do art. 36, da CF).
Importante instrumento da “check and balances”, a intervenção mostra-se também eficaz no âmbito estadual (art. 35 da CF), de grande relevo para o Poder Judiciário em situações de afrontas ao descumprimento de suas decisões.
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou a favor de intervenção motivada pelo descumprimento reiterado de uma decisão no sentido de determinar a desocupação de acampamentos irregulares. Mas dentro da mesma matéria, a Corte também entendeu incabível a intervenção em face de longo período de descumprimento de decisão judicial, ponderando pela mantença da situação consolidada.
A excepcionalidade e a gravidade que circundam a intervenção federal, bem como a complexidade que emana do cumprimento da ordem de desocupação, sobrepõem-se ao interesse particular dos proprietários do imóvel.
Na hipótese em análise, não há como reconhecer tenha o ente estatal se mantido inerte, em afronta à decisão judicial, não havendo que se falar em recusa ilícita, a ponto de justificar a intervenção, porquanto a situação fática comprovada nos autos revela questão de cunho social e coletivo, desbordando da esfera individual da parte autora.
STJ. Corte Especial. IF 113-PR, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 06/04/2022 (Info 732).
Obs: existem decisões mais antigas deferindo a intervenção: STJ. Corte Especial. IF 115/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 21/6/2017.
Impende consignar que a intervenção não é um mecanismo apenas do Executivo, conforme já demonstrado, é facultada aos Poderes Legislativo e Executivo, sujeita obrigatoriamente à análise do Congresso Nacional (ou Assembleia Legislativa no âmbito estadual). Dispensando-se esta atuação no caso do parágrafo 3º do art. 36, da CF.
A decretação da intervenção federal, portanto, é de competência privativa do Presidente da República (art. 84, inciso X, da CR/88), cujos pressupostos formais encontram-se delineados no art. 36, da CR/88.
Como regra, o Presidente da República deverá previamente ouvir o Conselho da República e o Conselho da Defesa Nacional, órgãos de assessoramento da Chefia do Executivo (arts. 90, I, e 91 §1 º, da CR/88). Aqui, convém registrar que a matéria ainda é passível de análise pelo STF, conforme Pedro Lenza:
No caso do Rio de Janeiro, houve judicialização da matéria, que, contudo, não foi apreciada: a) MS 35.537 (impetrado em 19.02.2018 por parlamentar, atacava a tramitação do projeto de decreto legislativo tendo em vista o encaminhamento da mensagem do Presidente da República n. 80/2018. Com a sua aprovação, houve a perda superveniente do objeto do mandado de segurança); b) ADI 5.915 (ajuizada em 14.03.2018, em 28.02.2019, tendo por objeto o decreto interventivo, foi julgada prejudicada, por perda superveniente do objeto, já que a intervenção no Estado do Rio de Janeiro atingiu o seu termo em 31.12.2018)[12].
A doutrina sustenta o afastamento da regra da oitiva prévia dos Conselhos da República e de Defesa Nacional, em situações excepcionalíssimas, de extrema urgência, diante de justificativas próprias e decorrentes de circunstâncias específicas dos fatos. Conforme Pedro Lenza, além do Rio de Janeiro, a decretação da intervenção federal no Distrito Federal em 2023 também se implementou sem a prévia oitiva (Decreto n. 11.377/2023).[13]
O Decreto Interventivo precisa especificar a amplitude, o prazo e as condições de execução, facultando ainda, a nomeação de interventor, que estará à frente da execução dos trabalhos e, portanto, suas atribuições dependerão do ato interventivo e de suas instruções (art. 36 § 1º, da CF).
O controle político do decreto interventivo será realizado pelo Congresso Nacional, em 24 h, a ser convocado extraordinariamente, se necessário (art. 36 §§ 1º a 3º, da CF), sendo de competência exclusiva do Legislativo Federal, aprovar, mediante decreto legislativo, ou rejeitar a intervenção (CF, art. 49, IV), salvo a exceção da ação interventiva.
6.As intervenções federais no Brasil: o caso do Rio de Janeiro, de Roraima e do Distrito Federal.
Durante a vigência da Constituição Federal de 1988, tivemos três situações de efetiva decretação de intervenção federal, implementadas pelo Decreto nº 9.288/2018 no Estado do Rio de Janeiro, pelo Decreto n.º 9.602/2018 no Estado de Roraima e pelo Decreto n.º 11.377/2023 no caso do Distrito Federal, consoante a doutrina de Pedro Lenza[14].
Pela primeira vez desde a Constituição, o Brasil presenciou a decretação da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, fruto do grave contexto de ausência de segurança, Presidente da República, no exercício de suas atribuições constitucionais que lhe confere o art. 84, X, CF/88, decretou a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública (art. 34, III, CF/88 e Decreto n. 9.288/2018).
No caso, o Presidente da República atendeu aos ditames do parágrafo 1º do artigo 36 da Constituição e, ainda, nomeou o interventor e estipulou as suas funções, retirando as funções privativas do governador do Estado (art. 144, § 6º, da CR) e transferindo momentaneamente ao interventor.
Decreto Presidencial, assinado em 16 de fevereiro de 2018, estabeleceu Intervenção Federal até 31 de dezembro de 2018, tendo como objetivo o de “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro”, (CF, 33, III).
O segundo caso de efetiva decretação de intervenção federal na vigência da CR/88, foi a intervenção federal no Estado de Roraima - Decreto n. 9.602, de 08.12.2018 – em razão da grave crise na segurança pública e no sistema carcerário, acrescentando-se o enorme risco de rebeliões, além da política de acolhida humanitária a imigrantes venezuelanos, Presidente da República, Michel Temer, com a aquiescência da Governadora, decretou a “intervenção federal no Estado de Roraima até 31.12.2018, para, nos termos do art. 34, caput, inciso III, da Constituição, pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”.
A intervenção no Estado de Roraima foi total, substituindo-se a Governadora pelo interventor, que assumiu todas as suas atribuições, diferentemente do que ocorreu no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, nos quais as intervenções foram parciais (segurança pública).
A intervenção no Distrito Federal, por sua vez, aprovada pelo Decreto n.º 11.377, de 08.01.2023, foi o terceiro caso de efetiva decretação de intervenção federal na vigência da Constituição.
Conforme Pedro Lenza, os atos antidemocráticos praticados no dia 8 de janeiro de 2023 sofreram medidas de reação e contenção, dentre as quais a decretação de intervenção federal no Distrito Federal até 31 de janeiro de 2023, limitada à área de segurança pública, com objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública no Distrito Federal, marcado por atos de violência e invasão de prédios públicos (art. 34, III, da CR/88). Assim como ocorreu no Rio de Janeiro, a decretação da intervenção se deu sem a prévia oitiva dos Conselhos da República e de Defesa Nacional).[15]
7.Conclusão
A intervenção federal, no contexto dos estados de exceção, deve ser interpretada de forma restritiva, com coerência aos consectários legais previstos pela Constituição Federal.
A garantia da estabilidade e autonomia dos entes federados somente poderá ceder espaço à intervenção desde que excepcionalmente.
Instrumento excepcional e de relevo constitucional, a intervenção federal merece ser estudada com cautela, frente à proibição de intervenção de um poder sobre o outro, mas pode auferir benefícios.
Diante das três recentes decretações de intervenções federais nos Estados do Rio de Janeiro, de Roraima e o Distrito Federal, demonstrou-se a atualidade do tema e a necessidade de remetermos à excepcionalidade desse instituto.
8.Referências bibliográficas
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BRASIL. Planalto. DECRETO Nº 9.288, DE 16 DE FEVEREIRO DE 2018. Decreta intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/d9288.htm
BRASIL, Planalto. DECRETO Nº 9.602, DE 8 DE DEZEMBRO DE 2018. Decreta intervenção federal no Estado de Roraima com o objetivo de pôr termo a grave comprometimento da ordem pública. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/d9602.htm
BRASIL, Planalto. DECRETO Nº 11.377, DE 8 DE JANEIRO DE 2023. Decreta intervenção federal no Distrito Federal com o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública, nos termos em que especifica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11377.htm
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[1] MARTINS, Flávio. Curso de Direito Constitucional / Flávio Martins. - 6. ed. - São Paulo : SaraivaJur,
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[2] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz, e MITIDIERO, DANIEL. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 1314.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz, e MITIDIERO, DANIEL. Ob. Cit. p. 1315.
[4] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Ed. Juspodivm, 2019. p.1125.
[5] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Ob. Cit. p.1126/1127.
[6] SILVA, Cecilia de Almeida. INTERVENÇÃO FEDERAL E SEUS CONTORNOS NO ESTADO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO. Os desafios da Intervenção Federal na Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/Rev-Dir-UNIGRANRIO_v.8_n.2.04.pdf
[7] Direito Constitucional / Pedro Lenza; organizado por Pedro Lenza. – 27. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2023. P; 754
[8] SARMENTO, Daniel. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. 1. reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 291.
[9] SARMENTO, Daniel. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Ob. Cit. p. 291.
[10] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz, e MITIDIERO, DANIEL. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. P. 1314/1315.
[11] AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 418.
[12] LENZA, Pedro. Ob. Cit. p. 741.
[13] LENZA, Pedro. Ob. Cit. p. 741/742.
[14] Ob. Cit. p. 744/752
[15] LENZA, Pedro. Ob. Cit. p. 753
Advogada (OAB/SP nº 309.249). Formada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Pós-graduada em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera – UNIDERP. Pós-graduada em Direitos Difusos e Coletivos pela Faculdade CERS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Renata Corrêa da. A excepcionalidade da intervenção federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2023, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64036/a-excepcionalidade-da-interveno-federal. Acesso em: 22 nov 2024.
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