RESUMO: O presente trabalho abordará o direito à alimentação segura e nutritiva sob o prisma da Constituição Federal de 1988, da normativa internacional de Direitos Humanos, da legislação infraconstitucional e de julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Superior Tribunal de Justiça. Também demonstrará que a pobreza é uma das causas da insegurança alimentar e que aquela deve ser abordada em sua multidimensionalidade. Por fim, serão tecidos comentários à Lei 14.016/2020, que dispõe sobre a doação de alimentos como forma de combate do desperdício.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à alimentação; segurança alimentar e nutricional; dignidade da pessoa humana; mínimo existencial; fome; pobreza multidimensional.
ABSTRACT: The present work will address the right to safe and nutritious food from the perspective of the 1988 Federal Constitution, international Human Rights norms, infraconstitutional legislation, and rulings of the Court of Justice of the State of Rio de Janeiro and the Superior Court of Justice. It will also demonstrate that poverty is one of the causes of food insecurity and that it must be addressed in its multidimensionality. Finally, comments will be made on Law 14.016/2020, which provides for the donation of food as a way to combat waste.
KEYWORDS: Right to food; food and nutritional security; human dignity; existential minimum; hunger; multidimensional poverty.
INTRODUÇÃO
No cenário mundial, é possível observar o crescimento exponencial da produção de alimentos. No entanto, a fome continua a assolar milhares de famílias. O contraste entre pessoas que buscam comida em lixões e o desperdício de alimentos descartados por grandes empresas do ramo alimentício causa grande indignação.
No papel, o dever do Estado é garantir a segurança alimentar e nutritiva aos cidadãos como um direito humano fundamental. Na prática, o alimento sequer chega à mesa de uma grande parcela da população. A segurança alimentar não se refere apenas ao consumo diário de calorias ou nutrientes, mas sim à garantia de uma alimentação adequada, segura, completa, duradoura e sustentável.
Por essa razão, este trabalho busca, a partir de uma análise da legislação nacional e internacional, explorar os desafios e as perspectivas para garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
1 COMER É UM DIREITO?
Comumente, os meios de comunicação noticiam o aumento da fome no país e no mundo, com cenas de pessoas buscando comida em diversos lugares, até mesmo no lixo de grandes supermercados. Afinal, há escassez de alimentos no mundo ou apenas uma má distribuição de um elemento tão essencial à vida humana?
O direito à alimentação é o acesso, em todos os momentos, a alimentos em qualidade e quantidade suficientes para a satisfação das necessidades básicas vitais e a garantia de meios para obtê-los. Trata-se de um direito humano fundamental. Não basta o acesso aos alimentos: eles precisam ser seguros, nutritivos e culturalmente adequados para uma vida saudável e ativa.
É necessário que seja feita uma distinção entre o direito à alimentação e o direito de ser alimentado, pois são conceitos distintos. De acordo com Gilmar Mendes:
O primeiro, previsto em nosso texto constitucional, consiste no “direito a alimentar-se de forma digna, id est, espera-se que os cidadãos satisfaçam suas próprias necessidades com seu próprio esforço, bem assim utilizando seus meios disponíveis”. Trata-se, portanto, de conceito distinto do direito a ser alimentado, segundo o qual compete ao Estado entregar alimentos de forma gratuita aos que deles necessitam. [1](p. 1.050)
Alguns elementos são considerados básicos para a concretização desse direito tão necessário. A produção e a comercialização de alimentos devem estar disponíveis para toda a sociedade. A oferta alimentar deve ser estável, evitando a escassez em determinados períodos do ano. Comer deve ser uma atividade acessível a todos, sem que isso implique abrir mão de alguma outra necessidade vital. A ingestão de alimentos deve ser adequada, ou seja, deve garantir uma vida saudável e contribuir para a prevenção de doenças. Por fim, a sustentabilidade deve assegurar que os recursos naturais sejam preservados para as atuais e futuras gerações.
Esse direito exige a atuação tanto do Estado quanto da sociedade. O poder público, em especial, tem um papel fundamental na garantia do direito à alimentação, devendo adotar medidas para implementar políticas públicas de produção, comercialização e distribuição de alimentos.
2 DIREITO CONSTITUCIONAL À ALIMENTAÇÃO
A Constituição Federal, em seu artigo 6º, caput, traz direitos de segunda dimensão, intitulados direitos sociais, que são aqueles que exigem uma atuação positiva do Estado. Por essa razão, os direitos sociais também são conhecidos como direitos prestacionais ou de prestação. In verbis:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
A Emenda Constitucional n. 64/2010 introduziu o direito à alimentação no rol dos direitos sociais. De acordo com Mendes (2018), a inserção desse direito ocorreu após um amplo debate promovido pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que, segundo ele:
De acordo com esse órgão, a inclusão explícita do direito à alimentação no campo dos direitos fundamentais tem o intuito de fortalecer o conjunto de políticas públicas de segurança alimentar em andamento, além de estar em consonância com vários tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Consignou-se, portanto, a importância de uma prestação positiva, por parte do Estado, que possibilite a efetiva fruição do direito social à alimentação. (p. 1.049)[2]
Ressalte-se que o direito à alimentação, antes mesmo da EC n. 64/2010, já era regulamentado pelo Decreto n. 7.272/2010, por meio do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Além disso, esse direito já estava previsto no rol dos direitos dos trabalhadores, conforme o art. 7º, IV da Constituição Federal de 1988,:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.
É possível afirmar que o direito à alimentação integra o mínimo existencial, considerado um núcleo intangível da dignidade humana. Esse conceito surgiu na doutrina alemã e postula que toda pessoa tem direito a condições materiais mínimas para uma vida digna e à inserção na vida social.
O direito à alimentação representa um avanço significativo na garantia dos direitos humanos fundamentais, pois não se limita à simples ingestão de alimentos, mas abrange a fruição de uma vida digna e saudável. Isso está em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, que é fundamental na Constituição Federal, conforme estabelecido em seu artigo 1º, inciso III.
A igualdade, enquanto direito fundamental previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, afirma que todas as pessoas possuem o mesmo valor e merecem respeito. Por essa razão, a alimentação deve ser garantida a todas as pessoas, sem qualquer distinção ou discriminação
3 O DIREITO À ALIMENTAÇÃO NA NORMATIVA INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
Dada a sua importância, o direito à alimentação é reconhecido internacionalmente e está consagrado em diversos instrumentos internacionais. Encontra previsão na Declaração Universal de Direitos Humanos, considerada verdadeira norma de jus cogens, em seu artigo 25.1, que prevê que
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
Previsto também no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu artigo 11.1, preconizando que
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher também tratou sobre a necessidade de nutrição adequada à mulher durante o período de gravidez e amamentação:
Artigo 12
2. Sem prejuízo do disposto no parágrafo 1o, os Estados-Partes garantirão à mulher assistência apropriadas em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância.
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança trouxe a importância da alimentação no combate de doenças e desnutrição entre crianças
2. Os Estados Partes garantirão a plena aplicação desse direito e, em especial, adotarão as medidas apropriadas com vistas a:
(...)
c) combater as doenças e a desnutrição dentro do contexto dos cuidados básicos de saúde mediante, inter alia, a aplicação de tecnologia disponível e o fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em vista os perigos e riscos da poluição ambiental;
(...)
No âmbito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o artigo 28.1 dispõe, ao lado de outros direitos, o da alimentação adequada a toda pessoa com deficiência, sem discriminação:
1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência a um padrão adequado de vida para si e para suas famílias, inclusive alimentação, vestuário e moradia adequados, bem como à melhoria contínua de suas condições de vida, e tomarão as providências necessárias para salvaguardar e promover a realização desse direito sem discriminação baseada na deficiência.
A Agenda 2030 da ONU [3]tem como objetivo de número 2 “Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”.
Na seara do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a Corte Interamericana, especificamente no caso Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai[4], entendeu que uma vez afetados os direitos à alimentação, saúde e água potável impactam no direito à uma vida digna e no usufruto de outros direitos essenciais.
4 SISTEMA NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL
A Lei nº. 11.346, de 15 de setembro de 2006 criou o SISAN – Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, trazendo à baila princípios, diretrizes e objetivos a serem perseguidos para assegurar a todos o direito à alimentação.
O artigo 1º prevê a responsabilidade do Poder Público e da sociedade na formulação e implementação de políticas e ações.
A referida lei assim preceitua a alimentação adequada:
Art. 2º A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
Também conceitua o que é segurança alimentar e nutricional,
Art. 3º A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.
Como se pode observar, a segurança alimentar e nutricional é um conceito multidimensional, uma vez que engloba um complexo de ações e políticas destinadas a promover a realização desse direito fundamental.
Além disso, as políticas públicas devem considerar questões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais (art. 2, §1º). Isso significa que, em um país multicultural como o Brasil, as particularidades de cada grupo e região devem ser consideradas, inclusive quanto aos hábitos alimentares de cada um deles.
Sobre os pilares da segurança alimentar e nutricional preconizados no artigo 4º do diploma normativo, podemos destacar a necessidade de aumento na produção de alimentos, o dever de preservar o meio ambiente e promover a saúde, a garantia da qualidade e armazenamento dos produtos, entre outros.
5 O DIREITO À SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL SOB A ÓTICA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO
Os Tribunais brasileiros enfrentam o tema da segurança alimentar e nutricional sob diversos vieses. Aqui cabe destacar o julgamento, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, de Agravo de Instrumento de nº. 0046743-68.2020.8.19.0000 em sede de Ação Civil Pública.
O caso se deu durante a pandemia causada pelo COVID-19, ocasião na qual houve a suspensão das aulas em diversas escolas públicas. Diante disso, o Poder Público também determinou a suspensão do fornecimento de alimentação escolar, limitando o fornecimento de alimentos em "kits” apenas aos alunos das famílias cadastradas em programas assistenciais, o que correspondia a 1/3 dos alunos matriculados.
O TJRJ, por sua vez, invocando a segurança alimentar, a isonomia e o mínimo existencial, concedeu a tutela de urgência recursal para que todos os alunos matriculados recebessem os kits com gêneros alimentício, em atenção ao artigo 21-A da Lei nº 11.947/09, acrescido pela Lei nº 13.987/20, conforme o trecho da ementa abaixo transcrito:
(...)
Ação Civil Pública. Suspensão temporária das aulas. Distribuição de gêneros alimentícios a 1/3 dos alunos matriculados na rede pública. Medida insuficiente para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional das crianças e adolescentes. Interrupção temporária das aulas que impactou na alimentação das famílias em situação de vulnerabilidade social, considerando que, para muitos, a única refeição completa é aquela ofertada na instituição de ensino.Efeitos da Pandemia e das medidas restritivas aplicadas pelo Poder Público que impactaram sobremaneira na renda familiar que já era, notoriamente, insuficiente para que os pais responsáveis por esses alunos mantivessem a já precária subsistência de seus filhos.
Indispensável intervenção judicial, com a ponderação dos interesses envolvidos, para garantir prioridade absoluta na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes que dependem de uma nutrição mínima para seu desenvolvimento físico, intelectual e cognitivo. Alimentação fornecida no ambiente escolar. Mínimo existencial que deve ser garantido em favor de todos os alunos matriculados, afastando o risco de desnutrição, dano iminente que legitima a concessão da tutela antecipada para que, independentemente do estado de calamidade, os menores não sofram ainda mais com a interrupção da alimentação que contavam no ambiente escolar. Acréscimo de regras ao Plano Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) que permitem excepcional distribuição e aquisição emergencial de gêneros alimentícios em favor das famílias dos estudantes matriculados, devendo este grupo ser contemplado com o programa assistencial sem distinção. Exegese do art. 21-A da Lei nº 11.947/09, acrescido pela Lei nº 13.987/20. Fornecimento de "kits" de alimentos apenas aos alunos das famílias cadastradas em programas assistenciais, grupo correspondente a 1/3 dos alunos matriculados. Burla à universalidade da prestação da política pública de oferta de alimentação aos alunos que contavam com merenda no ambiente escolar. Tutela de urgência concedida que impõe tratamento isonômico em favor dos pais não inscritos, bastando apenas a matrícula do infante para a percepção dos gêneros alimentícios já distribuídos para algumas famílias. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (0046743-68.2020.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). LÚCIO DURANTE - Julgamento: 24/06/2021 - VIGESIMA PRIMEIRA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 19ª CÂMARA CÍVEL))
Noutro giro, o Superior Tribunal de Justiça, por diversas vezes tem decidido pelo cabimento de indenização por danos morais, nos casos em que há a presença de corpos estranhos nos alimentos, ainda que não haja a ingestão do produto, diante da insegurança alimentar a que fora exposto o consumidor e do risco concreto à saúde, incolumidade física e psíquica. Foi pontuada a necessidade de segurança alimentar também na qualidade dos alimentos ofertados. Eis abaixo trecho da ementa do REsp n. 1.899.304/SP, na relatoria Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção:
(...)
1. Ação ajuizada em 11/05/2017. Recurso especial interposto em 24/07/2020 e concluso ao gabinete em 13/11/2020.
2. O propósito recursal consiste em determinar se, na hipótese dos autos, caracterizou-se dano moral indenizável em razão da presença de corpo estranho em alimento industrializado, que, embora adquirido, não chegou a ser ingerido pelo consumidor.
3. A Emenda Constitucional nº 64/2010 positivou, no ordenamento jurídico pátrio, o direito humano à alimentação adequada (DHAA), que foi correlacionado, pela Lei 11.346/2006, à ideia de segurança alimentar e nutricional.
4. Segundo as definições contidas na norma, a segurança alimentar e nutricional compreende, para além do acesso regular e permanente aos alimentos, como condição de sobrevivência do indivíduo, também a qualidade desses alimentos, o que envolve a regulação e devida informação acerca do potencial nutritivo dos alimentos e, em especial, o controle de riscos para a saúde das pessoas.
5. Nesse sentido, o art. 4º, IV, da Lei 11.346/2006 prevê, expressamente, que a segurança alimentar e nutricional abrange "a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos".
6. Ao fornecedor incumbe uma gestão adequada dos riscos inerentes a cada etapa do processo de produção, transformação e comercialização dos produtos alimentícios. Esses riscos, próprios da atividade econômica desenvolvida, não podem ser transferidos ao consumidor, notadamente nas hipóteses em que há violação dos deveres de cuidado, prevenção e redução de danos.
7. A presença de corpo estranho em alimento industrializado excede aos riscos razoavelmente esperados pelo consumidor em relação a esse tipo de produto, sobretudo levando-se em consideração que o Estado, no exercício do poder de polícia e da atividade regulatória, já valora limites máximos tolerados nos alimentos para contaminantes, resíduos tóxicos outros elementos que envolvam risco à saúde.
8. Dessa forma, à luz do disposto no art. 12, caput e § 1º, do CDC, tem-se por defeituoso o produto, a permitir a responsabilização do fornecedor, haja vista a incrementada - e desarrazoada - insegurança alimentar causada ao consumidor.
9. Em tal hipótese, o dano extrapatrimonial exsurge em razão da exposição do consumidor a risco concreto de lesão à sua saúde e à sua incolumidade física e psíquica, em violação do seu direito fundamental à alimentação adequada.
10. É irrelevante, para fins de caracterização do dano moral, a efetiva ingestão do corpo estranho pelo consumidor, haja vista que, invariavelmente, estará presente a potencialidade lesiva decorrente da aquisição do produto contaminado.
11. Essa distinção entre as hipóteses de ingestão ou não do alimento insalubre pelo consumidor, bem como da deglutição do próprio corpo estranho, para além da hipótese de efetivo comprometimento de sua saúde, é de inegável relevância no momento da quantificação da indenização, não surtindo efeitos, todavia, no que tange à caracterização, a priori, do dano moral.
12. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp n. 1.899.304/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 25/8/2021, DJe de 4/10/2021).
Os dois julgados acima são apenas meros exemplos do caráter multifacetado da segurança alimentar e nutricional no Brasil.
6 A POBREZA MULTIDIMENSIONAL E A FOME ANDAM DE MÃOS DADAS
É sabido que o fenômeno global da pobreza transcende a questão econômica. A pobreza passa a possuir várias dimensões quando afeta diversas esferas da vida humana, como educação, moradia, trabalho, acesso aos recursos naturais básicos como água potável e saneamento, alimentação adequada, dentre outras.
Nesse sentido, CAMPELO e BORTOLETTO[5]
O conceito de pobreza, enfim, não pode ser reduzido à noção de precariedade de renda; é complexo e abrangente, está relacionado a vários tipos de desigualdades – raça, gênero, território, idade, etnia, classe, participação, poder. Portanto, também, as soluções e a busca por maior igualdade passarão por todas essas interseccionalidades. (p. 112)
A importância de uma abordagem multidimensional da pobreza está em trazer uma visão mais ampla da realidade das privações sofridas pelos cidadãos, possibilitando políticas públicas mais eficazes. Permite, ainda, identificar as facetas da desigualdade social e contribuir com a definição de planos para o desenvolvimento humano.
Fato é que a pobreza está intimamente ligada à insegurança alimentar, sendo uma a causa da outra e vice-versa. A desigualdade e a má distribuição de renda limitam o acesso de milhares de pessoas a uma alimentação adequada.
Grupos vulneráveis, como idosos, população em situação de rua, desempregados, e outros estão mais suscetíveis à privação de alimentos. Crises econômicas, pandemias, desastres naturais – atualmente constantemente noticiados pela mídia em todo mundo – podem agravar ainda mais a vulnerabilidade e a pobreza.
Sobre a fome, CAMPELO e BORTOLETTO[6]:
A fome é um mal crônico da sociedade brasileira. Atravessa o tempo – e nos atravessa o tempo inteiro. É um “fenômeno social total”, como afirmava Josué de Castro: para além das questões nutricionais, envolve a política, a história, a economia, o social (p.64).
Como consequência, a insegurança alimentar é causa de doenças, baixo desenvolvimento cognitivo em crianças e idosos, baixo desempenho escolar, pouca produtividade no trabalho e de ausência de bem-estar na sociedade.
7 LEI 14.016/2020: UM BASTA AO DESPERDÍCIO?
Quem nunca se deparou com lixeiras contendo toneladas de comida descartadas por supermercados, hortifrutigranjeiros e restaurantes? Por que tanto desperdício quando os indicadores sociais apontam que grande parte da população perece por falta de alimentos?
A Lei 14.016/2020, sancionada em 23 de junho de 2020, durante o início da crise sanitária global do COVID-19, tratou da questão do desperdício, dispondo sobre a doação de alimentos excedentes a pessoas em situação de vulnerabilidade ou risco alimentar, por restaurantes e ou estabelecimentos similares, assim dispondo em seu artigo 1º, caput:
Art. 1º Os estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos, incluídos alimentos in natura , produtos industrializados e refeições prontas para o consumo, ficam autorizados a doar os excedentes não comercializados e ainda próprios para o consumo humano que atendam aos seguintes critérios:
Os incisos do referido artigo trazem os critérios para a doação dos alimentos, que devem estar no prazo de validade e devidamente conservados, sem comprometimento da integridade, dentro das normas de segurança sanitária e com as propriedades mantidas. O que chama atenção é que esses alimentos podem estar com a embalagem danificada ou apresentando aspecto comercial indesejável.
O § 1º do art. 1º estende a abrangência dos doadores a
empresas, hospitais, supermercados, cooperativas, restaurantes, lanchonetes e todos os demais estabelecimentos que forneçam alimentos preparados prontos para o consumo de trabalhadores, de empregados, de colaboradores, de parceiros, de pacientes e de clientes em geral.
A doação dos alimentos deve ser gratuita, sendo vedada qualquer forma de encargo ou onerosidade (art. 1º, § 2º). Os beneficiários serão “pessoas, famílias ou grupos em situação de vulnerabilidade ou risco alimentar e nutricional” (art. 2º).
É cediço que, na prática, vários são os desafios para que a referida lei produza os efeitos necessários. Os estabelecimentos devem possuir uma logística apta a coletar, armazenar e distribuir os alimentos de forma eficiente. A referida norma possui lacunas e conceitos vagos que carecem de complementação e o trabalho de conscientização é de suma importância.
Os impactos que o cumprimento desse diploma normativo pode trazer são positivos e podem, inclusive, contribuir com a redução da insegurança alimentar e do desperdício.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito à alimentação, assegurado constitucionalmente e na normativa internacional de direitos humanos, é fundamental para a dignidade humana e o desenvolvimento social, que deve ser garantido de forma segura e nutritiva.
Para isso, faz-se necessário um esforço conjunto do Estado, da sociedade e do setor privado e a pobreza, enquanto fator que contribui com a insegurança alimentar, deve ser abordada em sua multidimensionalidade, de modo a propiciar a elaboração de políticas públicas mais eficazes.
A Lei 14.016/2020 representa um avanço na luta contra o desperdício e a insegurança alimentar. Contudo, sua efetiva aplicação prática ainda desafia regulamentação pelos demais entes federativos.
A discussão sobre a segurança alimentar e nutricional é ampla e deve perpassar assuntos como uma efetiva política de redistribuição de renda aos brasileiros, maior investimento na agricultura familiar, técnicas de sustentabilidade e de maior produção de alimentos saudáveis, acesso à água potável e à terra, redução do desperdício de alimentos e a uma educação alimentar para os cidadãos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional/Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. -13. Ed. Rev. E atual. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. – (Série IDP).
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos/Valerio de Oliveira Mazzuoli. – 6. Ed.- Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019.
CAMPELO, Tereza, BORTOLETTO, Ana Paula. Da fome à fome diálogos com Josué de Castro. – São Paulo: Cátedra Josué de Castro Zabelê Comunicação; Editora Elefante, 2022.216 .; il.
BRASIL. 5 de Outubro de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil.
BRASIL. 15 de setembro de 2006. Lei 11.346/06. Sistema de segurança alimentar e nutricional.
BRASIL. 23 de junho de 2020. Lei 14.016/2020. Combate ao desperdício de alimentos.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.899.304/SP. Segunda Seção. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 25 de agosto de 2021. DJe de 04/10/2021.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento 0046743-68.2020.8.19.0000. Vigésima primeira Câmara de Direito Privado. Desembargador Lúcio Durante. Julgamento em 24 de junho de 2021.
[1] Mendes, Gilmar Ferreira Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 13. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. – (Série IDP)
[2] [2] Mendes, Gilmar Ferreira Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 13. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. – (Série IDP)
[3] NAÇÕES UNIDAS. Objetivo 2: Fome Zero e Agricultura Sustentável. Brasil | Nações Unidas. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/2. Acesso em: 24 ago. 2024.
[4] Mazzuoli, Valerio de Oliveira Curso de direitos humanos / Valerio de Oliveira Mazzuoli. – 6. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019
[5] Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro / organização: Tereza Campelo, Ana Paula Bortoletto. – São Paulo: Cátedra Josué de Castro; Zabelê Comunicação; Editora Elefante, 2022. 216 p.; il.
[6] IDEM.
bacharel em direito pela faculdade Cenecista de Rio das Ostras. Assessor de Defensor Público na DPERJ .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, MARCOS ANTÔNIO DA SILVA. Segurança alimentar e nutricional: uma discussão que vai além do arroz com feijão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 set 2024, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/66392/segurana-alimentar-e-nutricional-uma-discusso-que-vai-alm-do-arroz-com-feijo. Acesso em: 21 nov 2024.
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