RESUMO: o presente artigo possui como objetivo analisar o instituto da revisão judicial exercido a partir do controle de constitucionalidade como elemento essencial aos regimes democráticos, explorando a sua supressão no Estado Novo de Getúlio Vargas e durante a vigência da Constituição Federal de 1937, a “Constituição Polaca”, notadamente inspirada em regimes fascistas europeus. Dessa forma, a pesquisa busca estudar os aspectos fascistas de tal regime, em especial a supressão da separação de poderes, a fim de concluir pela importância da revisão judicial em um contexto democrático, no qual se preza pelo sistema de freios e contrapesos, diálogos institucionais entre os três poderes e participação plena da população. Ao final, tece-se uma comparação crítica entre o contexto fascista da época e as manifestações contrárias à atuação do Supremo Tribunal Federal ocorridas em desde 2020, concluindo pela importância da reaproximação do Poder Judiciário ao povo.
PALAVRAS-CHAVE: Controle de Constitucionalidade. Constituição Federal de 1937. Fascismo. Separação de Poderes. Supremo Tribunal Federal.
1. INTRODUÇÃO
O instituto da revisão judicial exercido através do controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal representa e reafirma um dos princípios basilares do regime democrático: a separação dos poderes, os quais devem com liberdade e autonomia, mas respeitando os limites e restrições impostos por um sistema de freios e contrapesos destinado a evitar abusos e reprimir condutas contrárias ao ordenamento nacional.
A configuração desse sistema garante que o poder não seja exercido de forma autoritária e arbitrária, emanando excessivamente do Executivo, Legislativo ou Judiciário, devendo estes atuar de forma independente e harmônica, em um sistema de freios e contrapesos. A essencialidade de tal modelo é atestada pela própria Constituição Federal de 1988, que contém, entre suas cláusulas pétreas, a separação de poderes.
Nesse sentido, o papel exercido pelo Poder Judiciário, especialmente no controle de constitucionalidade, é atuar de forma a garantir o respeito ao ordenamento constitucional, seus direitos e garantias. Assim, atuando de forma apropriada, os magistrados, na revisão judicial da atuação dos demais poderes, realizam duas principais funções: a primeira é de policiar o processo político e prevenir que aqueles que possuem o poder para obstruir tal processo em favor de seus interesses não o façam; já a segunda função é de evitar o risco da tirania, ou seja, impedir que os demais poderes, representando os interesses majoritários do jogo político, dificulte a proteção dos interesses minoritários (COX, 1981).
Contudo, em regimes fascistas, a revisão judicial é usualmente suprimida, para a manutenção do poder nas mãos de uma única pessoa ou órgão. Desse modo, o fascismo reinterpreta e invalida tal instituto como estratégia de estruturação do poder, instrumentalizando o direito e a racionalidade jurídica para a obtenção de seus fins a fim de legitimidade e coerência ao regime. De acordo com a definição de Robert Paxton:
O fascismo tem que ser definido como uma forma de comportamento político marcada por uma preocupação obsessiva com a decadência e a humilhação da comunidade, vista como vítima, e por cultos compensatórios da unidade, da energia e da pureza, nas quais um partido de base popular formado por militantes nacionalistas engajados, operando em cooperação desconfortável, mas eficaz com as elites tradicionais, repudia as liberdades democráticas e passa a perseguir objetivos de limpeza étnica e expansão externa por meio de uma violência redentora e sem estar submetido a restrições éticas ou legais de qualquer natureza (PAXTON, 2007).
O autor complementa a definição ao listar uma série de ações e ideias próprias de regimes fascistas, como a crença de que o grupo requer proteção, justificando quaisquer ações, desprovidas de quaisquer limites, contra seus “inimigos” e a necessidade de uma autoridade central cuja liderança natural e instinto são superiores (PAXTON, 2007).
O cenário europeu, em que vários regimes fascistas triunfaram concomitantemente no contexto pós Primeira Guerra Mundial e especialmente nas décadas de 30 e 40, teve seu reflexo no contexto político brasileiro, através do Estado Novo de Getúlio Vargas entre os anos de 1937 e 1945 (CHAMBÔ, 2013). É possível atestar algumas semelhanças entre as principais características dos regimes fascistas europeus e alguns aspectos do governo Vargas durante a referida época, especialmente no que tange o nacionalismo, o estatismo, e o anticomunismo.
A reação ao documento do Plano Cohen – falsificado por militares brasileiros com o objetivo de estender o mandato de Vargas ao “revelar” uma ameaça comunista à estabilidade do governo – colocou os opositores na posição de “inimigos” e permitiu a decretação do estado de guerra, criando a situação propícia para o cancelamento das eleições e instauração de um regime autoritário (CHAMBÔ, 2013), no qual inúmeros direitos, garantias e institutos democráticos foram excluídos, suprimidos e reinterpretados.
Percebe-se, de antemão, que a questão da figura central autoritária e o inimigo comum de quem a comunidade precisa se proteger se encontram na formação do Estado Novo ditatorial, em muitos aspectos inspirado nos governos fascistas europeus.
A Constituição de 1937, outorgada por Vargas, justificava desde seu preâmbulo a “necessidade de se introduzir no país um governo forte e nacionalista como uma resposta às legítimas aspirações do povo brasileiro e ao estado de apreensão criado no país pela infiltração comunista” (ABREU, 2016).
A ditadura de Vargas embora conhecida também por suas características progressistas (por exemplo, a criação da CLT), criou e aplicou uma multiplicidade de atos autoritários (PAXTON, 2007), que definharam a democracia brasileira. Embora o texto constitucional de 1937 previsse a existência de um controle de constitucionalidade a ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal, este era mitigado e sem eficácia, uma vez que a própria Constituição previa que o Presidente da República poderia editar e sancionar a mesma lei anteriormente declarada como inconstitucional. Dessa forma, conforme o artigo 96 da CF/1937:
Art. 96 - Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presidente da República.
Parágrafo único - No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.
Assim, verifica-se que o ataque à tripartição dos poderes e a censura ao STF culminaram em um verdadeiro retrocesso para o controle de constitucionalidade, instrumento fundamental para a garantia dos direitos resguardados pela Constituição (VAINER, 2010).
2. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1937: CONTEXTO POLÍTICO, ASPIRAÇÕES FASCISTAS E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
A Constituição Federal de 1937, outorgada pelo presidente Getúlio Vargas em 10 de novembro daquele ano, inaugurou no Brasil o período que ficou conhecido como Estado Novo - nome inspirado no Salazarismo, regime político português de cunho fascista - e correspondeu à primeira ditadura implantada no país. O novo texto constitucional foi influenciado pela Constituição fascista da Polônia (1935) e, em razão disso, ela também foi chamada de “Constituição Polaca”.
Consoante o historiador Edgar Carone, a adoção da aludida Carta Constitucional foi uma clara reação à suposta infiltração comunista no país, sendo “toda ela, com pequeníssimas exceções, baseada em Constituições estrangeiras, de países onde imperam preferentemente regimes de força: Polônia, Alemanha, Itália, Portugal, Lituânia e Áustria” (CARONE, 1976, p. 156), vale dizer, os regimes totalitários europeus em ascensão na época.
A multicitada Carta política, ao determinar, em seu artigo 96, que todas as cortes, e não apenas o Supremo Tribunal Federal, possuíam o direito de revisão judicial sobre leis e atos do Presidente da República, seguiu uma tradição legal solidamente estabelecida no ordenamento jurídico brasileiro. Dessa forma, sempre que um ato ou lei do Presidente fosse declarado inconstitucional por um dos Tribunais, com a maioria absoluta dos votos, o Presidente poderia submetê-lo novamente ao exame do Parlamento, caso considerasse que a lei seria necessária ao bem-estar da população ou à defesa de um interesse nacional. No caso de o Parlamento reafirmar a lei pelo voto de dois terços de cada uma das câmaras, a decisão do Tribunal seria anulada (LOEWENSTEIN, 1942, p. 114-115).
Contudo, tendo em vista que, logo no início do regime, Vargas havia organizado o fechamento das instâncias legislativas, extinguindo o Senado, o Congresso, as assembleias legislativas e câmaras municipais – atuando, novamente, com base no bem-estar do Estado e da população brasileira e se utilizando das prerrogativas conferidas pela declaração do estado de guerra – o Chefe do Poder Executivo acabou por usurpar as competências e funções do Poder Legislativo, inclusive a prerrogativa de assinar decretos-leis.
O dispositivo que permitia a subversão do controle de constitucionalidade, segundo Loewestein, foi utilizado pela primeira vez em 1939, quando o STF, em conformidade com o poder de revisão judicial assegurado pela Constituição, declarou inconstitucional parte de um decreto-lei do Presidente Vargas. A provisão em questão submetia os vencimentos de todos os magistrados ao imposto de renda; a provisão, no entanto, conforme o STF, seria inconsistente com o artigo 32, c, da Constituição de 37, o qual estabelecia a imunidade recíproca entre a União e os Estados. O Presidente, contudo, rejeitou a decisão do Supremo Tribunal Federal, e apenas alguns dias depois restaurou o encargo através do Decreto-Lei n. 1.564, de 1939 (LOEWESNTEIN, 1942, p. 116-117).
Referido decreto, tanto em seu preâmbulo como em seu artigo único, desconsiderou a decisão do STF e declarou que as decisões do Tribunal ficariam sem efeito diante do decreto presidencial, uma vez que seriam contrárias ao interesse nacional:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição, e para os efeitos do artigo 96, parágrafo, CONSIDERANDO que o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da incidência do imposto de renda, decretado pela União no uso de sua competência privativa, sobre os vencimentos pagos pelos cofres públicos estaduais e municipais; CONSIDERANDO que essa decisão judiciária não consulta o interesse nacional e o princípio da divisão equitativa do ônus do imposto, DECRETA:
Artigo único. São confirmados os textos de lei, decretados pela União, que sujeitaram ao imposto de renda os vencimentos pagos pelos cofres públicos estaduais e municipais; ficando sem efeito as decisões do Supremo Tribunal Federal e de quaisquer outros tribunais e juízes que tenham declarado a inconstitucionalidade desses mesmos textos.
A decisão de Vargas, entretanto, gerou uma indignação generalizada, e, em 14 de setembro de 1939, os ministros do Supremo Tribunal Federal protestaram contra o aviltamento por parte do Poder Executivo, reforçando sua independência para utilizar o instituto da revisão judicial. Assim, em texto publicado pela imprensa, o STF defendeu que o Poder Executivo não detém exclusivamente o poder de concentrar em suas mãos a função judicial, uma vez que a interpretação da Constituição é atribuição dos Tribunais, não podendo os juízes serem privados de suas funções constitucionalmente estabelecidas (LOEWENSTEIN, 1942, p. 11).
O então Ministro da Justiça, por sua vez, argumentou que desde que o Congresso não tenha sido restabelecido, o Presidente detém o poder constituinte. Tal argumento também foi utilizado para justificar o poder de emenda detido pelo Presidente da República, assim, se o Presidente possui a atribuição de emendar a CF, possuiria também a competência de rejeitar uma decisão judicial de inconstitucionalidade (LOEWENSTEIN, 1942).
A visão de Almeida Moura, ao engrandecer o aludido instituto jurídico consagrado na Constituição “Polaca” de 1937, é indicativa das aspirações fascistas do regime varguista. Em várias de suas descrições, o culto à figura do líder e a defesa da centralização do poder em suas mãos, enquanto representação da vontade popular, são explícitos. Note-se:
Carl Schmitt foi mesmo entusiasta do Chefe de Estado, como guarda da Constituição. E é notável que o eminente escritor haja desenterrado do pó dos arquivos, para elogiá-lo calorosamente, como cousa digna de ser revivida, o pouvoir neutre, intermédiaire ou modérateur, preconizado por Constant e acolhido pela Constituição brasileira de 1824 e pela Carta portuguesa de 1826. Que muito é, portanto, que o Brasil haja instituído uma guarda constitucional tríplice, por parte do Judiciário, do Executivo e do Legislativo? (MOURA, 1942).
Em defesa do texto constitucional de 1937 e, mais especificamente, da controversa disposição constitucional, Francisco Campos, seu redator, figura emblemática e conveniente aos intentos autoritários de Vargas, afirmava que “o poder de interpretar a Constituição envolvia, em muitos casos, o poder de formulá-la” (GODOY, 2019). Segundo o autor, os tribunais possuíam poder constituinte permanente, vez que guardiões da Constituição. Todavia, argumentava que, pela dubiedade e gravidade de determinadas questões, era razoável que a palavra final fosse do Legislativo, por iniciativa do Poder Executivo.
O arranjo supracitado dizia respeito ao intitulado controle colaborativo de constitucionalidade, exercido pelo Judiciário, pelo Executivo e pelo Legislativo. Ocorre que, consoante já sugerido, em virtude da minguada institucionalização da própria “lei maior”, o preceito constitucional sequer foi aplicado pelo Parlamento, tendo o sido por meio dos tradicionais decretos presidenciais (CASTRO, 2003).
Com efeito, o Poder Legislativo, durante o Estado Novo, não teve papel nenhum, já que a tripartição dos poderes era ilusória e quem detinha o poder decisório era, afinal de contas, o Chefe do Governo. A propósito, conforme mencionado, houve a dissolução da Câmara dos Deputados e do Senado, criados na Constituição anterior, e o Legislativo passou a ser exercido pelo Parlamento Nacional, com a colaboração do Conselho de Economia e do Presidente da República (ANDRADE; BONAVIDES, 2002). Acontece que as eleições para o novo Parlamento, as quais seriam marcadas pelo Presidente da República, após um plebiscito que nunca ocorreu, ficaram apenas na expectativa (LOPES; SANTOS, 2012).
Muito embora o Estado Novo não possa ser considerado, consoante o entendimento de uma série de autores, um regime totalitarista fascista, como o foram vários arranjos políticos europeus que ascenderam a partir do ano de 1922, não se pode olvidar que ele consistiu em um período permeado por inclinações fascistas, sobretudo em razão de seu viés autoritário, corporativista e centralizado, antagônico à separação de poderes fundada na teoria tripartite. Assim, em razão de sua notória influência fascista, consolidada na Constituição de 1937, é possível perceber muito dos instrumentos utilizados para avultar as prerrogativas do Chefe do Executivo e, por conseguinte, suprimir os demais poderes – a exemplo da ausência de revisão judicial –, enquanto essencialmente fascistas.
Por derradeiro, resta evidente que o instituto do artigo 96 da CF/37 serviu como uma forma de justificar o regime de tendências fascistas instaurado por Vargas, uma vez que a possibilidade de rejeição das decisões dos Tribunais e do controle de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal reforçou o caráter ditatorial do Poder Executivo, bem como evidenciou a ausência de separação entre os três poderes.
3. CONCLUSÃO: O ESVAZIAMENTO DA REVISÃO JUDICIAL COMO ESTRATÉGIA FASCISTA E SUA IMPORTÂNCIA PARA A DEMOCRACIA BRASILEIRA A PARTIR DE UMA VISÃO DIALÓGICA
Face o exposto, ainda que o modelo de controle de constitucionalidade imposto pela Constituição Federal de 1937 possuísse justificativa democrática – de acordo com a exposição de motivos de Francisco Campos (BRANCO, 2010), este seria o método democrático de preservar o poder popular, uma vez que o Parlamento, democraticamente eleito, seria, em tese, mais legitimado para declarar a (in)constitucionalidade das normas – é perceptível que tal sistema contribuiu aos interesses do regime fascista liderado por Getúlio Vargas, tolhendo os poderes conferidos ao Supremo Tribunal Federal.
Isso se deu principalmente devido ao fato de que, durante a vigência da Constituição de 1937, o Congresso Nacional não se reuniu e, em consequência, suas atribuições foram somadas às prerrogativas do Poder Executivo (BRANCO, 2010, p. 64). Dessa forma, por ato monocrático do Presidente era possível superar qualquer decisão de inconstitucionalidade proferida pelo STF, reforçando a supressão dos três poderes e a ausência de um sistema de freios e contrapesos em um cenário ditatorial no qual não se cogitava o diálogo ou equilíbrio entre os poderes constitucionalmente estabelecidos. Tal panorama constitui uma característica própria dos regimes fascistas, qual seja, a instrumentalização do Direito e da racionalidade jurídica para a obtenção dos fins visados pelo sistema, dando legitimidade e coerência ao regime.
Assim, embora estivesse disposta na CF/37, a separação de poderes possuía caráter dissimulatório, visto que, na prática, ocorreu o fechamento das instituições ligadas ao Poder Legislativo – Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais – e a centralização de suas funções no Poder Executivo, instância que, por sua vez, teve suas prerrogativas alargadas pela ordem constitucional, dando respaldo a um Estado autoritário, nacionalista e interventor, o qual baseava sua atuação na justificativa da manutenção da ordem social, bem-estar e interesse nacional para atingir os fins almejados pelo regime vigente.
Tal panorama de inegável repressão à atuação do Supremo Tribunal Federal pode ser comparado às manifestações contrárias à atuação do tribunal superior ocorridas desde 2020. Nestes atos, a população de ala mais conservadora e aliada às políticas do presidente Bolsonaro criticam a atuação do STF, muitos dos indivíduos inclusive protestam contra a suposta “ditadura do STF”, clamando que “supremo é o povo”, além de requisitarem a volta da intervenção militar no Brasil.
Ao que se percebe, a maioria das reivindicações de tais atos se demonstram contrárias à atuação eminentemente política do STF ao se imiscuir nas políticas públicas relacionadas, por exemplo, ao combate da pandemia do COVID-19 e investigar a atuação dos governantes no Inquérito 4.781, popularizado como “inquérito das fake news”. De acordo com os manifestantes, que se dizem defensores da democracia, os Ministros do STF não seriam legitimados para tais atuações, uma vez que não passaram pelo processo eleitoral.
O cenário dos protestos, contudo, demonstra não apenas a falta de conhecimento histórico e político dos manifestantes, mas também expõe uma das principais falhas atuais da atuação do Supremo Tribunal Federal: a falta de permeabilidade e abertura efetiva do debate envolvendo o povo, tendo em vista que a grande maioria das decisões – mesmo em processos que envolvem audiências públicas e amicus curiae – são tomadas pelos Ministros dentro de seus gabinetes e apresentadas em Plenário para debate interno, o que aumenta o afastamento da população em relação à atividade jurisdicional e coloca os Ministros em posição de superioridade, prejudicando, portanto, a legitimidade democrática de suas decisões.
Dessa maneira, os argumentos utilizados pelos protestantes contrários à atividade do tribunal superior muito se assemelham aos motivos apresentados pelos governantes para justificar a repressão dos poderes do STF trazida pela CF/37, tendo em vista que estes também se baseavam na suposta ilegitimidade democrática dos Ministros para se apropriarem da última palavra acerca da Constituição.
Assim, torna-se essencial o resgate da importância de um sistema adequado e democrático de controle de constitucionalidade feito pelo Poder Judiciário como fator que, aliado ao sistema de freios e contrapesos em um diálogo harmônico entre os três poderes, as instituições representativas e o povo, contribui para a estruturação de um Estado Democrático de Direito que se baseia na participação popular, possibilitando a oxigenação das interpretações acerca da Constituição e afastando as possibilidades de instrumentalização do discurso jurídico para fins autoritários e fascistas.
A participação efetiva da população nas deliberações e na tomada das decisões pelo Poder Judiciário possibilitaria, além da reaproximação do povo e da atividade jurisdicional, a concretização do principal fundamento democrático, isto é, a de que “todo poder emana do povo e por ele também deve ser exercido diretamente” (GODOY, 2017, p. 180).
Nesse sentido, é possível afirmar que a redemocratização e a Constituição Federal de 1988 trouxe essa perspectiva à realidade brasileira pós-ditadura, alargando os deveres e as garantias da magistratura - de modo que o Judiciário deixou de ser apenas um órgão técnico para se constituir como instituição fundamental ao Estado Democrático de Direito, capaz de fazer valer a Constituição e todos os direitos dispostos no ordenamento vigente, inclusive frente aos demais poderes – e prevendo as formas de participação popular na atividade jurisdicional, em especial a realização de audiências públicas e a inclusão de amicus curiae.
Dentro dessa estrutura, o Poder Judiciário, e especialmente o Supremo Tribunal Federal, fica incumbido de realizar, a partir de uma postura dialógica, o controle da constitucionalidade, prezando para que a CF/88 seja seguida em sua eficácia completa e impedindo que leis e atos normativos incondizentes com a Constituição surtam efeitos, em uma defesa robusta da democracia e dos direitos fundamentais, fazendo com que os demais poderes também sejam compelidos a aperfeiçoarem suas ações (GODOY, 2017, p. 173).
Segundo Kim Lane Scheppele, a existência da revisão judicial dos atos e normas faz com que o Poder Legislativo se force a pensar além do jogo de interesses políticos imediato em sua frente, de modo que este se torna “obrigado” a editar e publicar leis condizentes com a ordem constitucional contemporânea, sob pena de ter sua ação invalidada por uma decisão judicial posterior (SCHEPPELE, 2009, p. 812). Assim, a existência de atores judiciais, e não políticos, responsáveis pela revisão dos atos normativos é capaz de gerar uma maior garantia de que os poderes Legislativo e Executivo irão atuar conforme os valores democráticos e constitucionais.
Instituir, portanto, um sistema no qual a conservação e promoção dos direitos constitucionais possa ser feita mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição de funcionamento para a democracia. Ainda assim, os tribunais devem ser deferentes para com as deliberações do Legislativo e Executivo no que tange às matérias de sua expertise técnica, em exceção ao que seja essencial para preservar a democracia, os direitos fundamentais e a ordem constitucional, em respeito a um sistema equilibrado de freios e contrapesos, o qual deve ser, acima de tudo, baseado na legitimidade democrática das decisões e atos dos três poderes.
No entanto, ainda que o desenho constitucional preveja as formas de participação e diálogo envolvendo a população brasileira, tais instrumentos têm sido utilizados até os dias de hoje em uma perspectiva prioritariamente técnica, isto é, para a apresentação de argumentos científicos pelos experts relacionados às matérias que substanciam os casos discutidos pelos tribunais, de modo que é necessário construir, dentro dessas práticas, a de promoção de diálogo efetivo – e não meramente técnico – entre o povo, os órgãos e instituições e os poderes constituídos, a fim de que os argumentos apresentados pela população sejam enfrentados e levados em conta no processo deliberativo.
Nesse sentido, é essencial que o Poder Judiciário, ao exercer a revisão judicial, não atue de maneira impositiva e autoritária, em posição de superioridade, pois isso criaria um ambiente de “governo de juízes”, no qual a supremacia judicial se tornaria disfuncional ao regime democrático. Pelo contrário, os magistrados devem prezar pela participação da sociedade – retomando o povo como principal intérprete da Constituição - e a obtenção de consensos a partir do diálogo aberto, horizontal, constante e efetivo entre os poderes, instituições e a população brasileira (GODOY, 2017, p. 170).
Destarte, apesar de a última palavra sobre a Constituição ser sempre temporária ou precária, uma vez que as interpretações são sempre mutáveis de acordo com o contexto social e ainda há a possibilidade, mesmo que limitada, de revisão das decisões do Supremo Tribunal Federal publicadas no âmbito do controle de constitucionalidade, a ordem normativa promovida pela CF/88, além de dotá-la de força normativa plena, promove a expansão da jurisdição constitucional, impondo ao Judiciário o poder-dever de concretizar os direitos fundamentais nela previstos.
No entanto, é estabelecido que os magistrados devem atuar de acordo com os limites por ela propostos, tais como o devido processo legal, a necessidade de motivação e justificação das decisões e a ampla defesa e contraditório. O ordenamento constitucional inclui, ainda, maneiras de participação do povo na tomada das decisões – notadamente a realização de audiências públicas e a presença de amicus curiae – as quais, ainda que limitadas, devem ser valorizadas e amplamente utilizadas, pois permitem a oxigenação da Constituição e a reaproximação entre o povo e a atividade jurisdicional, tornando a sua interpretação um movimento dialógico e plural e atribuindo às decisões plena legitimidade democrática.
REFERÊNCIAS
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Advogada, assessora na Defensoria Pública da União em Curitiba. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVEIRA, MARIA LUIZA MARTINS. A supressão da separação dos poderes e o esvaziamento do controle de constitucionalidade na era Vargas: as aspirações fascistas da Constituição Federal de 1937 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 mar 2025, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/68087/a-supresso-da-separao-dos-poderes-e-o-esvaziamento-do-controle-de-constitucionalidade-na-era-vargas-as-aspiraes-fascistas-da-constituio-federal-de-1937. Acesso em: 24 mar 2025.
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