RESUMO: A Convenção sobre reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras de 2019 é uma convenção produzida no âmbito da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, pelo qual se busca criar um mecanismo que facilite o reconhecimento e a execução de sentenças estrangeiras entre os países signatários. Essa convenção tem por objetivos possibilitar uma maior circulação de decisões judiciais e efetivar uma verdade justiça transnacional, dando mais segurança e previsibilidade as relações comerciais e civis, matérias às quais se destina. Entretanto, a conclusão desse projeto foi desafiadora e tem gerado grandes debates dentro da própria Conferência da Haia, bem como no meio acadêmico. Um dos percalços que se busca superar é a questão da participação dos Estados como pares nos processos que se busca dar circulação internacional, harmonizando o interesse comercial e civil com as imunidades e prerrogativas inerentes a esses entes. Assim, busca-se fazer uma análise dos pontos de maior interesse dos Estados, em especial o brasileiro, mostrando que o debate merece um estudo mais aprofundado sobre questões de direito administrativo e intepretação das relações mercado-Estado.
Palavras-Chave: Convenção de Sentenças. Convenção da Haia de Direito Internacional Privado. Tratado. Relações Internacionais.
ABRASTRACT: The Convention of 2 July 2019 on the Recognition and Enforcement of Foreign Judgments is a convention produced at the Hague Conference on Private International Law, which seeks to create a mechanism to facilitate the recognition and enforcement of foreign judgments among the signatory countries. The objective of this convention would be to enable greater circulation of judicial decisions and to bring about a true transnational justice, giving more security and predictability to commercial and civil relations, for which it is intended. However, the conclusion of this project faced challenges and generated major debates within the Hague Conference itself, as well as in academia. One of the obstacles to overcome is the question of the participation of states as parts in the procedures that seek to give international circulation, harmonizing the commercial and civil interest with the immunities and prerogatives inherent to these entities. Thus, it is sought to make an analysis of the points of greatest interest of the States, especially the Brazilian, showing that the debate deserves a more in-depth study on issues of administrative law and interpretation of market-state relations.
Key words: Judgement’s Convention. Hague Conference on Private International Law. Convention. Treaty. International Relations.
I – Introdução.
Os atores da comunidade internacional vêm observando a ocorrência reiterada de conflitos causados pela ineficácia que provimentos jurisdicionais de um Estado nacional têm em produzir efeitos em outros Estados, o que, em um mundo altamente globalizado, tem causado diversos prejuízos de tanto de ordem econômica como social. Trata-se de uma problemática intrinsecamente ligada à própria disciplina do direito internacional privado, na qual o conflito de normas cria impasses na sociedade e limita a circulação de capital. Dessa forma, os estudiosos do direito têm sempre buscado meios para superar essa problemática por meio da harmonização de ordenamentos jurídicos, seja pela criação de instrumentos bilaterais e ou pela instituição tratados multilaterais.
A Convenção sobre reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras pode ser considerado um dos projetos mais ambiciosos desenvolvidos pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, uma das mais importantes organizações internacionais que atuam no campo da harmonização do conflito de normas. Essa convenção busca nada menos do que promover a circulação de decisões judiciais entre os Estados contratantes, com seu escopo voltado essencialmente para as questões civis e comerciais, na busca de garantir mais segurança jurídica e previsibilidade ao comércio internacional como um todo, bem como a questões civis especificas.
Entretanto, o projeto não é novo. Os Professores Nádia de Araujo e Fabrício Bertini Pasquot Polido[1], em artigo conjunto, destacam que sua origem partiu de sucessivas negociações realizadas no âmbito interno da Conferência da Haia desde o início da década de 90, sendo que no ano de 1992 foi apresentado o primeiro projeto elaborado pelo Professor Arthur von Mehren, da Universidade de Havard. Desde esse marco a busca por uma convenção que tratasse sobre jurisdição e o reconhecimento de sentenças estrangeiras vem sendo cada vez mais debatida no âmbito da Conferência da Haia.
Os autores[2] sintetizam a linha do tempo do “Judgement’s Project” em três fases. (i) A primeira se inicia com a própria proposta dos americanos à Conferência da Haia e termina a Conferência Diplomática de 2001; (ii) No segundo momento, entre os anos de 2002 e 2005, as reuniões resultaram no surgimento da Convenção Sobre Eleição de Foto, tem correlato e derivado do processo negociador relativo a pactos atributivos de jurisdição em matéria comercial. (iii) Por fim, a última fase se apresenta com a retomada das discussões sobre o tema em 2010, desde onde vem se avançado consideravelmente na elaboração de um texto mais sólido para o projeto.
É preciso destacar o objetivo central da convenção é a circulação e execução de sentenças em matéria civil e comercial, beneficiando todos os atores das relações internacionais que tenham seus interesses mitigados pela ausência de eficácias das decisões e de jurisdição. Nesse contexto, além da participação de pessoas físicas e jurídicas de direito privado, é possível que as decisões tenham como parte Estados soberanos, tema de extrema importância e diretamente ligado ao direito público.
Embora a convenção preveja, cautelarmente, restrições a abrangência do seu texto ao estabelecer que ele não se estende a questões de receita (ou arrecadação), alfandegárias e administrativas, bem como aquelas gerais encontradas nos artigos 2(1) e (3), é necessária uma análise mais profunda sobre a própria relação dos Estados como parte de ações judiciais e possibilidade de circulação de eventuais decisões, sob uma ótica da soberania e a das prerrogativas e imunidades intrínsecas a ela.
Sem dúvidas, trata-se de um importante tratado internacional e tem causados grandes debates no campo jurídico brasileiro e internacional, sua aplicação e os possíveis resultados mostram que o tema ainda não está longe de ser encerrado. Dessa forma, se mostra necessário o aprofundamento dos estudos sobre o tema a fim de que se possa contribuir com a sua construção, desenvolvimento e aplicação, antevendo os problemas e os reflexos nas relações internacionais e no próprio âmbito interno brasileiro.
Em estudo científico é necessária a utilização de instrumentos de aplicação de conhecimento e de criação do artigo. Dessa forma, na produção do presente artigo foram escolhidos os níveis de conhecimento e compreensão. No presente estudo, se buscou revisar a bibliografia nacional e internacional sobre o tema, bem como fontes governamentais e institucionais, mas em especial os materiais preparatórios para criação da Convenção objeto de estudo encontradas no próprio sítio eletrônico da organização.
Tais levantamentos serão importantes para responder a algumas questões que podem gear preocupações para a aplicação para os Estados, especificamente o brasileiro. Quais as bases históricas e jurídicas que motivaram a criação dessa convenção? Quais instrumentos e instituições colaboraram para a busca pela harmonização do direito? Qual a inserção do Brasil nesse contexto?
Assim, se tentará analisar os principais pontos da Convenção sobre reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado que se relacionem diretamente com as questões estatais, as prerrogativas soberanas e qual será a posição brasileira sobre o tema.
II – O Direito Internacional e as imunidades dos Estados Soberanos
A questão da soberania sempre foi um ponto que gerou debates acalorados no mundo político, nas relações internacionais e no próprio campo doutrinário. Essas discussões derivam antes mesmo do surgimento do conceito de Estados e remontam aos conflitos históricos entre os reis ou governantes dos povos que ocorreram ao longo dos séculos.
Buscando analisar mais a questão científico-jurídica, e menos história material, podemos vislumbrar uma divisão em duas fases ou visões da questão das imunidades dos Estados.
A chamada visão clássica se baseia numa concepção histórica de igualdade entre os soberanos, que se desenvolveu ao longo do tempo e se consolidou em um costume internacional validade por diversos Estados e nações. Essa noção de igualdade restou sintetizada por meio do brocardo em latim “par in parem non habet judicum. É a lição trazida pelo Professor Francisco Rezek[3]:
“Honrava-se em toda parte, apesar disso, uma velhíssima e notória regra costumeira sintetizada no aforismo par in parem non habet judicium: nenhum Estado soberano pode ser submetido contra sua vontade à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado.”
Ocorre que, em razão da intensificação das relações internacionais entre os países e do processo de globalização revelou a insuficiência e a superação dessa noção absoluta de imunidade, que passou a deteriorar-se nos principais centros de negócios do mundo por volta da segunda metade do século XX, local em que eram mais comuns a presença cada vez maior de Estados soberanos estrangeiros atuando no mercado, nos investimentos e também na própria especulação das bolsas de valores, afastando-se das tradicionais em funções diplomáticas ou consulares e estranhas à diplomacia estrita ou ao serviço consular.
Nesse contexto, o professor Valério Mazzuoli[4] afirma que se tem considerado o caso "The Schooner Exchange Vs. McFaddon", julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 24 de fevereiro de 1812, como o caso pioneiro de incidência da imunidade estatal. Na oportunidade, apreciou-se questão relativa a um navio de guerra francês apreendido nos Estados Unidos para o pagamento de dívidas comerciais.
Com o passar dos anos essa questão restou cada vez mais difundida e diversos instrumentos passaram a abordar a questão das imunidades dos Estados em seu texto, como a Convenção Europeia de 1972, leis internas promulgadas nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, na Austrália, no Canadá — e com precedentes judiciários de diversas nações permitiram ter como provável que a imunidade não subsistiria no que se refere a toda espécie de processo derivado de relação jurídica entre o Estado estrangeiro e o meio local — mais exatamente os particulares locais.
A concepção de que a da imunidade dos Estados em matéria jurisdicional é relativa fortaleceu-se ao longo do tempo passando. A jurisprudência de vários Estados tem seguido essa mesma trilha, no sentido de somente reconhecer imunidade de jurisdição dos Estados no que atine aos seus atos jure imperii, e não em relação aos atos estatais de natureza comercial jure gestionis, que se equiparam às atividades particulares.
Apenas como adendo[5], é preciso fazer uma pequena diferenciação sobre esses tipos de atos, em razão da sua importância para compreensão da matéria. Os atos de império (jure imperium) são aqueles que o Estado pratica no exercício de suas prerrogativas soberanas e no tocante aos quais continua a gozar de imunidade de jurisdição. Podemos ter como exemplos de atos de império: os atos praticados em ofensivas militares em período de guerra, atos de concessão ou de denegação de visto e atos de admissão de estrangeiro ao território de um Estado ou que configurem impedimento de ingresso ou deportação. Por seu turno, os atos de gestão (jure gestionis) são aqueles em que o ente estatal e virtualmente equiparado a um particular e a respeito dos quais não há imunidade de jurisdição. São exemplos de atos de gestão: aquisição de bens moveis e imóveis e contratação de serviços e de funcionários locais para missões diplomáticas e consulares, bem como atos que envolvam responsabilidade civil.
Na experiência brasileira a solução não se mostraria outra. O STF, ao apreciar à Apelação Cível 9.696, RTJ 133/159, entendeu que a regra costumeira que existia no passado não mais subsistia atualmente (a partir de 1972), por ter sido modificada com a edição da Convenção Europeia da Basileia, sobre as imunidades do Estado, bem como reafirmada com as leis dos Estados Unidos e do Reino Unido, que introduziram limites à teoria da imunidade estatal absoluta.
A CIJ, na sentença de 3 de fevereiro de 2012, também procedeu à distinção em comento, entendendo inclusive que a jurisprudência interna dos Estados já formou a necessária opinio juris sobre o tema ao ponto de afastar a tradição costumeira sobre a imunidade absoluta dos Estados.
Não obstante, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, corte que detém a palavra final em matéria constitucional no Brasil, tem dado outro tratamento à questão da imunidade de execução (matéria que não se confunde com o tema relativo à imunidade de jurisdição) na qual entende se tratar de uma prerrogativa institucional mais abrangente[6].
A imunidade de execução se relaciona com a possibilidade de constrição de bens de um Estado para o adimplemento de suas dívidas. O tema não é pacífico, embora se observe a predominância do seu caráter absoluto, há julgados que afastam a imunidade de execução quando envolvam bens que não estejam afetos às atividades diplomáticas e consulares.
Nesse campo Portela[7] elenca algumas hipóteses possíveis em que o pode haver a satisfação do débito do ente estatal derrotado num processo judicial: (i) pagamento voluntário pelo Estado estrangeiro; (ii) negociações conduzidas pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil e, correlata a esta possibilidade, a solicitação de pagamento pelas vias diplomáticas; (iii) expedição de carta rogatória ao Estado estrangeiro; (iv) execução de bens não afetos aos serviços diplomáticos e consulares do Estado estrangeiro, como recursos financeiros vinculados a atividades empresariais disponíveis em contas bancárias; (v) e, por fim, a renúncia à imunidade de execução pelo Estado estrangeiro.
Diante do que foi apresentado, depreende-se que a origem, o desenvolvimento e aplicação atual do conceito de imunidades do Estados soberanos possui relação direta com a participação dos Estados na relações comerciais e civis quando estas se enquadram como atos de gestão, mostrando que a inserção do tema na Convenção sobre reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado se revela congruente com as mais modernas construções doutrinárias, mas que ainda assim precisar ser analisada, também, do ponto de vista político e estratégico de cada estado, como veremos a seguir.
III - O escopo da convenção e as previsões do seu draft: a questão dos conceitos de “Commercial and Civil matters”
Como já anteriormente exposto, o escopo da convenção é voltado essencialmente para as questões civis e comerciais, numa pretensão garantir mais segurança jurídica e previsibilidade ao comércio internacional com a circulação de decisões judiciais entre os Estados contraentes.
Ocorre, entretanto, que os drafts da convenção e o próprio “Explanatory Report”[8], documentos resultantes das reuniões diplomáticas que tratam do projeto na Conferência da Haia, deixam de interpretar ou especificar o que seriam essas questões civis e comerciais a que a convenção se reporta. Entretanto, vemos que um dos pontos levantados no âmbito do “Explanatory Report”, aborda a questão da interpretação dos conceitos expostos no projeto de convenção e que serve como norte para o intérprete no momento de aplicação desse instrumento internacional.
Embora trate-se de uma questão não vinculante, os autores do documento defendem a existência de uma “dever” do intérprete em tomar como referências os objetivos e finalidades da própria Convenção, aplicando suas disposições sob a ótica de um instrumento internacional e não com referência a legislação interna. Assim, os conceitos de “questões civis ou comerciais”, como outros conceitos jurídicos utilizados no projeto de Convenção, devem ser interpretados autonomamente a lei nacional, assegurando uma interpretação e aplicação uniformes do objeto da Convenção, abrindo certa margem de interpretação aos órgãos jurisdicionais dos Estados contratantes. Além disso, a interpretação desses termos deve ser aplicada de forma coerente a outros instrumentos da Haia, em especial a Convenção de 2005 sobre a escolha do Tribunal.
Por seu turno, o mesmo “Explanatory Report”, discorre sobre eventuais diferenças entre os conceitos de civis e comerciais que alguns sistemas jurídicos podem considerar. É preciso lembrar que durante a produção de um texto convencional estamos lidando com uma gama heterodoxa de ordenamentos jurídicos e com as mais diferentes raízes jurídicas, dessa forma buscou-se utilizar ambos os termos como forma de não prejudicar a aplicação da convenção em sistemas nos quais os processos comerciais são enquadrados.
Destarte, assim como em outros instrumentos de direito internacional privado, a interpretação dos conceitos chave no momento de aplicação da convenção serão de competência dos órgãos jurisdicionais internos de cada Estado, o que, em tese, deverão observar o propósito do instrumento e os princípios de direito internacional relacionados ao tema. Entretanto, sabemos que na prática essa não tem sido uma postura seguida à risca pelos tribunais, em especial pelas cortes brasileiras.
IV – Os Estados soberanos e a relação entre as questões civis e comerciais no Projeto de Sentenças
O texto da Convenção da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado trazia em seus drafts previsões expressas sobre a participação dos Estados como partes nos processos judiciais que poderão circular com base nessa convenção, apontando nas primeiras propostas do seu art.4 que o um julgamento não será excluído do seu escopo pelo simples fato de um Estado ser parte, sendo incluído nesse conceito qualquer governo, agência governamental ou pessoa atuando em nome dele.
O “Explanatory Report” destacava que essa previsão tinha como objetivo deixar claro que o simples fato de um Estado se parte no processo não exclui a aplicação da Convenção, mas sim que pela natureza da disputa judicial que se apresenta no caso. Ou seja, é preciso analisar se a questão controvertida posta em juízo se relacionaria efetivamente com questões “civis ou comerciais”, o que demandaria apreciar a questão sob o ponto de vista dos atos de gestão ou atos de império.
Os atos dos Estados praticados no exercício da sua soberania não são questões civis e comerciais, e assim estão for a do escopo da convenção. Dessa forma, mesmo que o Estado renuncie a sua imunidade de jurisdição, a convenção não seria aplicável ao reconhecimento e cumprimento de eventual julgado. Solução diferente é apontada no “Explanatory Report” quando agente diplomático, exemplo dado, é acionado judicialmente por um conta de um ato ilícito derivado de uma ação jure gestionis, nesse caso, havendo renuncia à sua imunidade, o projeto de convenção seria em tese aplicável no reconhecimento e execução dessa decisão em outro Estado contratante.
A antiga previsão do artigo 2(5), do texto do projeto, não afasta a possibilidade de outras imunidades e privilégios serem cobertas pelo direito interno de cada Estado. Assim, seria plenamente válida a recusa do reconhecimento e cumprimento de um julgado com base na violação desses privilégios e imunidades previstas em normas internas de um Estado, podemos citar no caso brasileiro as imunidades parlamentares.
Toda essa questão era reforçada pela disposição do art.5 do texto preliminar que dispõe que nada no escopo da convenção deve afetar os privilégios ou imunidades dos Estados ou das organizações internacionais, em respeito a eles e a suas propriedades. Trata-se de aplicação de preceito do Direito Internacional Público e que demonstra a intersecção deste com o Direito Internacional Privado.
Nessa mesma linha de raciocínio, o “Explanatory Report” apontava que a futura convenção também se aplicaria as imunidade e privilégios dos agentes dos Estados, o que incluiria pessoas cobertas pela imunidade consular e diplomática, previstas nos tratados de Viena específicos sobre essa questão.
Por fim, o tema causou grandes debates nas reuniões diplomáticas, muito em razão da relutância de diversas delegações em incluir os Estados no escopo da Convenção, que vem antevendo a dificuldade de um Estado em determinar quando outro Estado está atuando no exercício do seu poder soberano ou não.
Havia uma inclusão do art.20 na Convenção que permite que os Estados contratantes façam uma reserva quanto da aplicação desse tratado quando forem parte no processo: (a) esse Estado, ou uma pessoa agindo em nome desse Estado, ou (b) uma agência governamental desse Estado, ou uma pessoa agindo em nome de tal órgão governamental. Na mesma linha, determinou-se que essa reserva não deve ser mais ampla do que o necessário e a exclusão do escopo devem ser definidos de forma clara e precisa.
De toda forma, essa reserva não excluía a aplicação da convenção em processos em que for parte empresa estatal, trata-se de uma previsão condizente com a própria natureza privada que possui esse tipo empresarial.
Não obstante, a bem da verdade, esses artigos não constaram do texto final, onde preferiu-se não adentrar na questão das imunidades Estatais, um tema bastante delicado e que gerava muita resistência das delegações. De toda forma, o tema ainda terá desdobramentos na interpretação do texto convencional, a cargo dos tribunais de cada país.
De toda forma, há previsão expressa no artigo 31 da Convenção terá a duração de 5 anos a partir da data da sua entrada em vigor, mesmo para os Estados que a tenham ratificado, ou a ela tenham aderido, ainda que posteriormente, mas será prorrogada tacitamente de 5 em 5 anos, salvo denúncia dos Estados. Ou seja, é ainda possível que esse artigo ou o tema seja incluído no texto final das futuras revisões.
V – Perspectiva brasileira na ratificação e aplicação na aplicação da Convenção sobre Circulação de Sentenças
Do ponto de vista do Estado brasileiro, é preciso ter muita cautela no que concerne a inclusão dos Estados no campo de abrangência da convenção. A criação esse instrumento iria padronizar a execução de sentenças nas matérias civis e comerciais, beneficiando diversos atores das relações internacionais como um todo. Entretanto, a possibilidade de execução de decisão que tramitou em ordenamento jurídico distinto poderia causar grandes prejuízos ao Estado brasileiro, primeiramente porque este não poderia contar com os préstimos da Advocacia-Geral da União[9], ante a ausência de capacidade postulatória para seus procuradores agirem no exterior, se vendo obrigada a contratar escritório estrangeiro privado.
Para além disso, toda a normativa jurídica poderia ser alienígena e completamente distinta da realidade brasileira, causando dificuldades não só operacionais, mas também de desconhecimento do direito estrangeiros, comprometendo sua interpretação e aplicação, o que poderia comprometer o próprio direito de defesa do Estado.
Por outro lado, o tratado poderia ser favorável à União no que toca a execução de títulos judiciais obtidos dentro do território nacional e que condenem pessoas físicas, empresas ou até mesmo Estados estrangeiros ao ressarcimento ao erário, levando a cobrança desses valores aos países onde os réus possuem bens que poderiam ser executados para pagamento dessa dívida.
É preciso ter em mente que toda negociação de um tratado deve sempre atender aos interesses do Estado como um todo, por isso é preciso ponderar bem sobre sua a forma como esse tratado será utilizado na realidade desse país, qual será sua eficácia e as consequências práticas nessa adesão, evitando que causem mais prejuízos do que benefícios para a sociedade como um todo.
Do ponto de vista do direito administrativo, é certo que cada Estado possui seu próprio meio de relacionar-se com o mercado, com regramentos dos mais distintos e com as mais variadas formas de comprar e vender ativos, produtos e etc.
Para fins de aplicação dessa convenção, a diversidade do tratamento dado ao direito administrativo pode causar grandes problemas no momento de definição do que é direito público e o que seria direito privado, nas relações com o Estado. Poderíamos tomar como exemplo um Estado que considere a relação de compra e venda de materiais bélicos como uma simples relação comercial, ausentes as prerrogativas soberanas, por outro lado, um segundo Estado poderia entender ser essa mesma relação de direito público e puramente resguardada pelos interesses nacionais e soberanos. A mesma confusão, em alguns casos, poderia ser feita mesmo que trocássemos o objeto do exemplo por uma simples compra e venda de lápis, caneta ou papel.
Na realidade brasileira, sabe-se que as disposições da Constituição Federal norteiam toda a atuação da administração pública, nos três níveis de governo, trazendo princípios e regras de observância obrigatória pelos gestores. Neste contexto, destacam-se dois dos mais importantes princípios do direito administrativo brasileiro: a supremacia e a indisponibilidade do interesse público.
Assim, segundo a doutrina majoritária, estariam os chamados contratos administrativos celebrados pela Administração Pública regidos pelo direito público, com as prerrogativas e vantagens inerentes à supremacia estatal, denominadas “cláusulas exorbitantes”. Nesse sentido, segundo Hely Lopes Meirelles[10], o que realmente o tipificaria e distingue os contratos administrativos do contrato privado é a participação da administração pública na relação jurídica utilizando da sua supremacia de poder para fixar as condições iniciais do ajuste, desse privilégio decorreria a faculdade de se impor as chamadas cláusulas exorbitantes do direito comum.
Por outro lado, nas hipóteses em que a administração pública assumir, em princípio, uma posição de igualdade jurídica com o particular, esses contratos serão regidos predominantemente pelo direito privado, visto que não seriam aplicadas prerrogativas de poder público, afastando a verticalidade ou supremacia. Não obstante, é preciso destacar que na sistemática administrativista brasileira, permanecem hígidas outras restrições próprias do regime jurídico administrativo, extraídas do já citado princípio da indisponibilidade do interesse público.
Professor Celso Antônio Bandeira de Mello[11] atenta, quanto ao ponto, que mesmo nos contratos da administração, em que há preponderância das normas de direito privado, há, no que couber, a necessidade de observância das formalidades dos contratos administrativos, bem como algumas prerrogativas conferidas à administração. Trata-se de previsão disposta no art. 62, §3.º, da Lei 8.666/1993, que determina a aplicação dos arts. 55 e 58 a 61, além das demais normas gerais, no que couber aos contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o Poder Público seja locatário, e aos demais cujo conteúdo seja regido, predominantemente, por norma de direito privado; e aos contratos em que a Administração for parte como usuária de serviço público.
Assim, em tese, a Lei 8.666/1993 atenuou a distinção feita pela doutrina entre os contratos administrativos e os contratos da administração, criando uma zona cinzenta, já que permite a aplicação, "no que couber'', dos principais e prerrogativas do Estado aos seus contratos regidos, predominantemente, pelo direito privado.
No mesmo norte, o citado professor destaca a competência do Tribunal de Contas da União de fiscalizar os contratos, administrativos ou não, quanto a sua legalidade e questões formais, podendo requerer ao Congresso Nacional a sua sustação, conforme dispõe o art. 71, da Constituição Federal, reforçando ainda mais o emaranhado da relação entre público e privado no direito administrativo brasileiro.
É possível que essa incerteza jurídica que tenha levado o Brasil a tomar extrema cautela na adesão à tratados e acordos que envolvam os contratos administrativos ou mesmo contratos da administração, em especial aqueles relacionados às compras governamentais. Embora se tenha conhecimento que o país assinado acordo sobre o tema em encontro do Mercosul, oportunidade em que o governo afirmou ser uma abertura ao mercado de compras governamentais no bloco, com oportunidades de ampliar a concorrência e redução de gastos, aumentar internacionalização de empresas e de mais integração a região; o mesmo Governo Federal ainda encontra-se em fase de adesão a outros acordos que tratam da mesma matéria, como por exemplo o acordo de compras governamentais no âmbito da Organização Mundial do Comércio.
Para além das questões jurídicas, é certo que os Estados devem levar em consideração também questões geopolíticas e econômicas na conclusão dos tratados e esses pontos deverá também ser levantado nas negociações diplomáticas na Conferência da Haia de Direito Internacional Privado.
VI – Conclusão
Com o presente estudo buscou-se fazer uma singela análise do texto da Convenção sobre reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado com enfoque nas questões de direito internacional público, em especial os pontos que envolvem a participação dos Estados soberanos como partes nos processos judiciais a que se buscar dar circulação extramuros.
Assim, observou-se que a Conferência tem priorizado o respeito às imunidades e prerrogativas dos Estados soberanos, seguindo também as teorias mais modernas quanto as formas de atuação destes, diferenciando os atos estatais de império e de gestão. A evolução da norma costumeira trouxe importantes avanços nos campos comerciais e empresariais, ao permitir que mais estados tenham participação no campo do comércio internacional, desde que ciente das possibilidades de serem acionados no contexto de uma judicialização de um litígio.
A adesão do Estado brasileiro à Convenção sobre reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras de 2019 da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado demanda uma avaliação complexa de diferentes fatores, como os interesses comerciais do país e a própria capacidade de defender-se perante jurisdições estrangeiras.
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[1] ARAÚJO, Nádia de; POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. Reconhecimento e Execução de Sentenças Estrangeiras: análise do projeto em andamento na Conferência da Haia de Direito Internacional Privado. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 11, n. 1, 2014 p. 19-42.
[2] Idem.
[3] (REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. São Paulo: Saraiva, 2014).
[4] (Mazzuoli, Valerio de Oliveira Curso de direito internacional público /Valeria de Oliveira Mazzuoli. -- 9. ed. rev., atual. e ampl. -- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.)
[5] Idem.
[6] CELSO D. DE ALBUQUERQUE MELLO, “Curso de Direito Internacional Público”, vol. II/1.344, item n. 513, 14ª ed., 2002, Renovar, v.g.
[7] PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves, Direito Internacional Público e Privado, 6ª edição, 2014, Editora Jus Podium, Salvador.
[8] Garcimartín, Francisco; Saumier, Geneviève. Explanatory Report. Disponível em: https://www.hcch.net/en/publications-and-studies/details4/?pid=6797 . Acesso em 15 de outubro de 2022.
[9] Órgão responsável pela representação da União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo, nos termos do artigo 131, da Constituição Federal.
[10] MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 36ª Edição, Editora Malheiros, São Paulo, 2010.
[11] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 26ª ed., São Paulo: Malheiros, 2009.
Mestrando em Direito Internacional. Advogado da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Vitor Veloso Barros e. Os Conceitos de Commercial and Civil matters e a perspectiva dos estados soberanos na Convenção sobre reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras de 2019 da Conferência da Haia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 nov 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60234/os-conceitos-de-commercial-and-civil-matters-e-a-perspectiva-dos-estados-soberanos-na-conveno-sobre-reconhecimento-e-execuo-de-sentenas-estrangeiras-de-2019-da-conferncia-da-haia. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Patricia Araujo de Brito
Por: Lucas Soares Oliveira de Melo
Por: Vitor Veloso Barros e Santos
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