Neste ensaio exploramos a criminologia de desastres ambientais, buscando compreender as causas que levam ao aumento dos crimes após o rescaldo inicial destes eventos extremos. O tema ganhou relevância com o crescimento em número e magnitude dos desastres naturais, devendo ser abordado nos planos governamentais que visam mitigar suas consequências para as populações diretamente atingidas.
A maior inundação já documentada ocorreu na China em 1931, com o transbordamento do Rio Amarelo. A cidade de Porto Alegre também passou por uma grande inundação em 1941. E o Acre em 1971. Mas essas inundações catastróficas estão se tornando cada vez mais comuns. Em 2020, o Registro de Ameaças Ecológicas constatou um aumento de 10 vezes na quantidade anual de desastres naturais desde 1960. Atualmente, em torno de 400 desastres ambientais atingem diversas partes do planeta a cada ano, com tendência de aumento nas próximas décadas.
No Brasil, o Rio Grande do Sul e o Acre sofreram danos severos com as recentes catástrofes da inundação. Esse novo padrão é atribuído às alterações climáticas decorrentes do excesso artificial de gases do efeito estufa na atmosfera, que desregula o ciclo natural de mudança do clima.
Para compreender essa desregulação, é preciso entender uma peculiaridade da Terra que a difere dos demais corpos celestes, e que está na raiz da sua habitabilidade. Os astrofísicos consideram que Vênus já foi um planeta ameno, mas se tornou hostil à vida por falta de um mecanismo de controle do clima. Por sua vez, a Terra possui um termostato que controla o clima, mantendo a temperatura sempre dentro de uma faixa propícia à vida.
Estudos recentes avançaram na compreensão desse mecanismo, que relaciona o dióxido de carbono com o intemperismo das rochas, oceanos e vulcões, por meio da subducção e reações químicas, que atua como um feedback climático na escala de milhões de anos. Esse controle climático, juntamente com o surgimento da carnivoria pela evolução, propiciou a explosão de Avalon, dando origem às vidas complexas que habitaram o planeta na sua história recente. Mas esse mecanismo passa atualmente por um desajuste, que tem proliferado eventos extremos.
As mudanças climáticas são um processo natural e importante à vida, desde que esteja dentro de uma escala adequada. Sem o termostato do intemperismo, a mudança climática é um caminho sem volta, tal como ocorreu em Vênus. Ele funciona por meio de um ciclo, com emissão de CO2 pelos vulcões e retirada pelas intempéries. O controle desse mecanismo foi explorado por um novo estudo publicado em 2023 por Brantley e coautores, que explorou a sensibilidade do intemperismo das rochas silicáticas à temperatura do planeta.
Inicialmente, é preciso expor um paradoxo. A elevação das cadeias de montanhas pode ter estimulado o consumo de CO2 pelo desgaste dos silicatos. Mas as reconstruções das expansões do fundo do mar não indicam um aumento correspondente nas entradas de CO2 provenientes da desgaseificação vulcânica. O desequilíbrio resultante teria esgotado todo o CO2 da atmosfera dentro de alguns milhões de anos. Essa contradição é conhecida como Paradoxo do Intemperismo-isótopo do Cenozóico
O estudo de Brantley utilizou dados acumulados por geoquímicos de todo o mundo. De fato, os vulcões emitiram grande quantidade de CO2 ao longo da história, mas em vez de transformar a Terra numa estufa, o gás foi removido lentamente por meio do intemperismo das rochas. O estudo desse mecanismo adentra um área complexa, chamada ciência da zona crítica, que examina áreas desde a vegetação mais alta até as águas subterrâneas mais profundas, tratando-se de uma área de pesquisa desafiadora.
Na escala de milhões de anos, o equilíbrio entre a erosão das rochas de silicato e a desgaseificação vulcânica controlou a concentração atmosférica de CO2, que mantém o clima propício à vida. O intemperismo do silicato, mineral que forma 90% da crosta terrestre, acelera com o aumento da temperatura, atuando como um feedback negativo que amortece o clima e mantém a habitabilidade do planeta. O grande enigma é descobrir como ocorre essa sensibilidade à variação da temperatura.
O CO2 é formado pela oxidação do monóxido de carbono, e é retirado pela reação com silicatos, como o SiO2 e CaSiO2. Esse processo absorve o CO2 nas rochas sedimentares, convertendo-o em material sólido. Existem propostas para acelerar esse processo, visando a neutralização do carbono, um método conhecido como intemperismo melhorado, uma vez que não há risco de vazamento do gás das reservas geológicas, como nos métodos CCS.
Em um termostato tradicional bimetálico, esse controle é feito por meio das distintas expansões térmicas de duas chapas fundidas de metais com diferentes coeficientes de dilatação, como ferro e latão. Na alegoria do termostato terrestre, esse controle é influenciado por diversos fatores, como escoamento superficial, precipitação, litologia, porosidade, permeabilidade, tipo de vegetação, distribuição da massa de terra, dentre outros, que podem influenciar na dissolução. A influência da cinética da reação química é a chave para resolver o enigma deste mecanismo.
O estudo em comento combinou observações de laboratório, solos, bacias hidrográficas e do globo para elucidar o mistério entre intemperismo e temperatura. Os autores usaram a equação de Arrhenius para expressar essa sensibilidade. A dissolução química foi isolada de outros fatores, como a erosão. Essa equação permite calcular a velocidade da reação química, que é diretamente proporcional à energia de ativação e inversamente proporcional à temperatura absoluta. A energia de ativação advém da energia cinética das moléculas que colidem, e ultrapassam um limiar que ativa a reação química. Cada reação possui uma energia de ativação específica. Apesar de não ser essencial, é comum o uso do logaritmo natural nesta equação para facilitar os cálculos. Esses estudos são essenciais para compreender a proliferação de desastres naturais.
É necessário deixar claro que o método científico deve ter premissas objetivas, e suas conclusões são imparciais. Contudo, o debate ambiental foi apropriado por distintas correntes políticas e ideológicas, reverberando na própria pesquisa científica. Na década de 1990, vertentes anticapitalistas fizeram uso desse ideário para reforçar suas críticas. Por seu turno, atualmente os defensores do capitalismo também incorporaram o conceito de preservação, que hoje está mais atrelado aos grandes fundos de investimento do que aos movimentos ambientalistas, tendo condicionado a alocação de recursos em países mediante compromissos específicos de sustentabilidade.
Já existiam previsões de ocorrência dos desastres naturais recentes. Em 2023, os estados de SC e RS já haviam enfrentado tanto a estiagem quanto tempestades causadas por ciclones extratropicais. No mesmo ano, a região Norte passou por uma das maiores estiagens, afetando o nível dos rios e prejudicando o transporte hidroviário de mercadorias, afetando a alimentação e a hidratação da população atingida.
De fato, o Plano Nacional de Gestão de Risco e Desastres Naturais de 2012-2014 elencou as áreas prioritárias de atuação, dentre as quais a bacia do Guaíba, no RS. No entanto, não indicou nenhuma área no Acre, que também sofreu uma inundação histórica no começo de 2024. O plano previu um Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais, composto por 160 técnicos e uma Força Nacional de Emergência, formada por comitês regionais compostos por geólogos, hidrólogos, engenheiros, agentes de defesa Civil e assistentes sociais.
Já o PNPDC foi aprovado em 2024 após o desastre do RS, e prevê diagnósticos situacionais. Ele já estava previsto na Lei 12.608/2012, mas só agora saiu do papel, trazendo a “identificação de riscos e cenários prováveis de atuação” para os anos de 2030, 2034 e 2040, considerando diversos tipos de desastres, tais como chuvas intensas, inundações, enxurradas, alagamentos, vendavais, estiagem e seca, formando um “Mapa de Risco” nacional, com base em dados do Atlas Digital de Desastres do Brasil.
Entre fevereiro e março de 2024, o Acre também sofreu o maior desastre ambiental da história do estado. Na capital Rio Branco ocorreu a maior cheia desde 1971. O nível de alguns rios se mantiveram acima de 17 metros. Já em Porto Alegre, a cheia foi a maior desde 1941.
Nos dois casos, houve o aparecimento de animais silvestres, que buscaram refúgio nas zonas urbanas. No Acre, predomina o bioma de floresta tropical, enquanto no RS predomina os biomas de pampa e mata atlântica. Após o desastre, foram avistados em Porto Alegre jacarés e ninhadas de aranhas. Também há relatos de cobras, gambás e graxains-do-campo, conhecidos como cachorros-do-mato, um canino semelhante à raposa.
Outras regiões do globo passaram por inundações destruidoras nesta mesma época, como Afeganistão e China. Geograficamente, o RS está abaixo do trópico de Capricórnio, a cerca de -30° de latitude. Por sua vez, o Acre está próximo ao Equador, enquanto o Afeganistão e a China estão mais próximos ao trópico de Câncer. No extremo sul da China, na próspera província de Guangdong, que abriga 127 milhões de pessoas, ocorreram em abril de 2024 chuvas torrenciais na delta do Rio das Pérolas, que foram constatadas pelas quatro estações meteorológicas, causando danos gigantescos que lembraram a grande inundação do Rio Amarelo em 1931.
Quase um ano desde o início da edição atual do El Niño, decorrente do aquecimento natural do oceano Pacífico, constata-se atualmente um enfraquecimento deste fenômeno climático. Mas após uma fase neutra, costuma-se seguir o extremo oposto, com o arrefecimento da temperatura do Pacífico, conhecido como La Niña, que está previsto para o segundo semestre de 2024, e que trará novas alterações no padrão climático, com Brasil e Colômbia já mostrando alterações nas estações chuvosas.
Na América Central, a tempestade tropical Amanda atingiu recentemente Salvador, causando 20 grandes inundações no país, atingindo a capital San Salvador, e afetando as vastas áreas cafeeiras. De seu turno, a Nigéria é um país habituado a inundações sazonais, mas passou pela maior inundação de sua história no final de 2022, que causou mais de 600 mortes e quase um milhão e meio de deslocados.
Para enfrentar essa nova realidade, muitos países têm adotado as chamadas cidades esponja, com a criação de espaços verdes para combater inundações. Esse modelo está sendo aplicado por diversas cidades, desde Berlim a Wuhan. Trata-se de uma adaptação baseada nos ecossistemas. Por sua vez, Tóquio construiu gigantescos canais subterrâneos para conter inundações históricas. Países ricos, como Reino Unido, também sofreram grandes prejuízos com inundações recentes, como as que ocorreram em Yorkshire e Lincolnshire, que causaram danos e mortes.
Apesar das previsões, é importante pontuar que as inundações são eventos estocásticos, difíceis de antever com precisão, mesmo utilizando modernos supercomputadores para calcular a probabilidade das inúmeras variáveis envolvidas. Essas máquinas possuem milhares de processadores e uma enorme quantidade de memória ram, com uma potência de até cem quatrilhões de FLOPS (operações de ponto flutuante por segundo). Ainda assim, as previsões são falhas, por conta do comportamento caótico das variáveis climáticas.
Por definição, uma tempestade é um sistema complexo, onde a convecção do ar que a influencia é imprevisível por natureza, atuando como um fluido turbulento, mudando rapidamente de direção e energia. Ainda assim houve avanços. A previsão atual para 3 dias é tão precisa como era a previsão de 24 horas em 1990, uma melhora significativa, ainda que imperfeita.
No caso de inundações, a incerteza da previsão meteorológica é multiplicada pela complexidade da modelagem do caminho da água que a forma. É preciso considerar muitas variáveis, como a umidade do solo e os dados do registro histórico da região afetada. Por isso, os estudos mais recentes buscam incorporar métodos de inteligência artificial e dados de satélites para fornecer avisos de grandes inundações de forma mais confiável, criando um mapa probabilístico.
No RS, seguindo a lógica dos eventos extremos, diferentes fatores meteorológicos combinaram-se para criar a tempestade perfeita, que causou prejuízos da ordem de 6 bilhões de reais.
Com a melhora da previsão, é necessário discutir a aplicação do princípio da precaução também nos desastres naturais. A esse respeito, é importante pontuar que o Direito Ambiental ganhou contornos de autonomia na ciência jurídica, uma vez que a área em que atua, o meio ambiente, está bem sedimentada após décadas de debates. Contudo, há novos ramos que lutam por autonomia, como o Direito dos Animais e o Direito Climático, que estão vinculados a uma visão ecocêntrica. O princípio da precaução nos desastres naturais a partir das previsões climáticas se enquadraria neste último ramo.
Em um artigo bastante citado sobre o princípio da precaução, Cass Sunstein diferencia as duas visões sobre o princípio, a forte e a fraca. No Brasil, Paulo Bessa Antunes alerta que a consideração da precaução como um superprincípio, que estaria implícito no art. 225 da CF, pode entrar em conflito com os objetivos fundamentais de desenvolvimento nacional e erradicação da pobreza previstos no art. 3° da CF. Para Bessa, o STF adotou a versão fraca do princípio da precaução, entendendo-o como um método de gestão de riscos, sopesando-o com outros direitos, como o direito à energia e o direito à saúde, conforme decidido respectivamente no RE 627.189/SP e no voto médio da ADI 5592, cujo acórdão foi publicado em 10/03/2020. É preciso lembrar também que a Suprema Corte afastou o princípio do não retrocesso ambiental no julgamento das ADIs contra o novo Código Florestal.
De fato, as medidas de precaução podem ser aplicadas tanto a danos ambientais quanto aos desastres naturais, que possuem uma magnitude maior. Mas a lei penal se refere apenas a danos ambientais, já que o art. 54, §3º, da Lei nº 9.605/1998 prevê um crime omissivo próprio, quando o agente deixa de adotar medidas de precaução em caso de dano ambiental grave ou irreversível.
No caso do Rio Grande do Sul, junto à destruição causada pelas chuvas, a população também teve que lidar com o fenômeno da pilhagem, que costuma suceder a esses eventos dramáticos. As forças de segurança detiveram mais de 60 pessoas por saques e roubos. As autoridades reforçaram a ronda noturna com o uso de barcos, contando com o apoio da população para pilotá-los, já que não havia policiais treinados. Na cidade de Eldorado do Sul, uma das mais atingidas pelas inundações, a polícia desencadeou a operação Aharadak, que resultou na prisão de dezenas de saqueadores. O nome da operação remete ao Lorde da Tormenta. De fato, após serem desalojados pelas chuvas, é tormentoso ter que lidar com uma onda de roubos e furtos nas casas e lojas.
Essa tendência de aumento de saques em desastres naturais é objeto de estudo há muitos anos. Nos Estados Unidos, a imprensa costuma destacar as pilhagens que ocorrem após a destruição causada pela passagem de furacões. Menos divulgado nestes eventos, mas igualmente importante, é o crescimento da solidariedade social, com a ajuda mútua.
Estudos de campo da sociologia dos desastres há muito destacam que as vulnerabilidades causadas pelo evento extremo possuem ligação tanto com a solidariedade social quanto com o conflito social.
A solidariedade social implica a cooperação entre a população, com doações e ajuda mútua. Já o conflito social resulta em pilhagens e crimes violentos, como estupros e violência doméstica.
Acerca da solidariedade social em desastres, “Rising Tide”, de John Barry, é uma obra de referência. O livro narra a inundação do Rio Mississipi em 1927, o maior desastre natural dos Estados Unidos, com um milhão de pessoas atingidas e milhares de mortos. O autor analisa o grande impacto cultural e político que esse desastre causou em todo o país.
Por sua vez, Philip Fradkin publicou em 2005 “O Grande Terremoto e as Tempestades de Fogo de 1906”, outro clássico da sociologia dos desastres. Nele, o autor narra o desastre causado por um terremoto no começo do século XX em São Francisco, que deixou um cenário de ruas destruídas e campos de refugiados. Ele descreve os esforços heroicos de cidadãos comuns, a negligência das autoridades e os efeitos psicológicos duradouros na população. O livro aborda como as pessoas e as instituições reagem em situações de catástrofe, como terremotos, incêndios, furacões, inundações, guerras, secas e atos de terrorismo.
Em 2003, Henry Fischer e coautores publicaram um estudo atualizando o debate sobre a sociologia dos desastres pós-11 de setembro. No artigo, eles conceberam uma escala de desastres de seis tipos, conforme sua magnitude e a população atingida.
De fato, na tragédia recente que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, foram vistos inúmeros atos heroicos de salvamento e uma enorme rede de solidariedade social.
Por outro lado, a criminologia do conflito social procura explicar os crimes que ocorreram após a inundação, que também foram extensivamente explorados pela imprensa. A esse respeito, estudiosos costumam relacionar o conflito social que desencadeia práticas criminosas à desigualdade de renda, pobreza, desemprego e educação.
De uma maneira geral, a literatura de sociologia discorre sobre as práticas criminosas quando trata sobre conformidade, desvio e controle social. No geral, a sociologia trata do crime nas seguintes vertentes: positivista, funcionalista, interacionista, do conflito e do controle social. Nesta perspectiva, o conceito de desvio é mais vasto que o de crime, que é tido como uma conduta inconformista que viola uma lei. A tradição sociológica interacionista entende o desvio como um comportamento socialmente construído, a partir da noção de Poder Social.
Já a literatura criminológica foca nas escolas sociológicas tradicionais para explicar o comportamento criminoso, a exemplo da ecologia criminal da escola de Chicago, a associação diferencial para os crimes do colarinho braco, a anomia de Durkheim e Merton, a subcultura delinquente, a teoria do rótulo e a teoria crítica, além das teorias mais recentes, como as teorias minimalista, ambiental e neorrealista.
Especificamente quanto à vinculação entre desigualdade social e criminalidade, três correntes da teoria ecológica predominam: a teoria econômica de Becker; a teoria da desorganização social de Shaw e Mckay; e a teoria da tensão de Robert Merton. Essa última é bastante citada, elaborada por um prêmio Nobel de economia em 1992. Ela propugna que a criminalidade decorre de uma lacuna entre o objetivo de riqueza material e as oportunidades disponíveis para alcançar esse objetivo por meios legítimos.
Já pela Teoria Geral da Tensão - GST, emoções diferentes têm impactos distintos na criminalidade. Assim, é mais provável que a raiva conduza a crimes violentos, enquanto a inveja conduza a crimes contra a propriedade.
A esse respeito, o sociólogo e antropólogo Helmut Schoeck publicou em 2010 o livro “Inveja: Uma Teoria do Comportamento Social”, atrelando esse sentimento tanto a um ímpeto para um regime totalitário quanto ao impulso igualitário nas sociedades democráticas. Nesse sentido, ele diferencia a inveja maliciosa, que se manifesta como um desejo de derrubar os outros, da emulação, que é um desejo de se elevar sem rebaixar os demais.
Por fim, o criminologista Robert Agnew publicou o livro “Rumo a uma Criminologia Unificada” em 2014, onde expande as suposições limitadas das teorias criminológicas tradicionais, visando explicar uma gama mais ampla de crimes.
No colapso que se segue aos desastres ambientais, também é possível vislumbrar um terreno fértil para a Teoria das Janelas Quebradas, que leva ao extremo a noção de desorganização social. Além disso, o desastre desfaz a ideia tradicional de vinculação dos bens materiais aos seus titulares, própria da noção jurídica de posse e propriedade, transmudando-se em “res nullius” no imaginário popular, atiçando o desejo dos oportunistas.
Para os levantamentos que relacionam a classe social à criminalidade, a desigualdade conduz ao aumento de crimes e reduz a confiança social, diminuindo a cooperação para benefícios mútuos, resultando na exploração do outro por meio de práticas criminosas. Esses estudos buscam um coeficiente de correlação significativo e evidências convincentes para uma associação positiva entre as duas variáveis.
Contudo, outros levantamentos, utilizando os mesmos métodos estatísticos, encontraram uma relação inversa entre a criminalidade e os níveis de desigualdade e pobreza. A conclusão varia conforme o corte amostral, com a seleção de cidades e países específicos, quando o correto seria a seleção aleatória da amostra. Também é possível que determinadas regiões possuam uma correlação positiva, em decorrência de aspectos culturais, e outras não.
Em termos relativos, a desigualdade mundial aumentou nas últimas décadas. Esse aumento é atribuído à revolução tecnológica e à concorrência no comércio internacional. Por outro lado, a pobreza teve redução no mesmo período. Desde 1990, a população mundial abaixo da linha da pobreza caiu de 36% para 10%. Em 1990, a população era de 5,3 bilhões de pessoas, o que resultava em 1,9 bilhão de pessoas nesta situação. Atualmente, a população é de 8,1 bilhões de pessoas, o que resulta em 0,8 bilhão. Assim, a quantidade de pessoas abaixo da linha da pobreza reduziu mais da metade nesse período, em números absolutos.
Por outro lado, o PIB mundial atual é da ordem de 101 trilhões de dólares. Com uma população de 8,1 bilhões de pessoas, resulta num PIB per capita em torno de 12 mil dólares. Em 1990, o PIB mundial era de 22,9 trilhões de dólares. Com uma população de 5,3 bilhões de pessoas, resulta num PIB per capita de 4,3 mil dólares. Desta forma, houve um forte aumento no PIB per capita no mesmo período. De fato, o gráfico do crescimento econômico mundial passou por uma expansão exponencial a partir de meados da década de 2000, em paralelo a um crescimento proporcionalmente menor da população no mesmo período.
Neste período também ocorreu um enorme êxodo rural na China, e uma consequente expansão urbana no país, com reflexos em sua economia. Em termos comparativos, tanto em 1990 quanto hoje, a economia dos Estados Unidos representa um quarto da economia mundial. De seu turno, a economia chinesa teve um salto nesse período, passando de 400 bilhões de dólares em 1990 para os atuais 18 trilhões de dólares.
Com base nesses números, é possível perceber que, mesmo com uma redução na quantidade de pessoas abaixo da linha da pobreza, tanto em termos relativos quanto absolutos, houve um incremento na desigualdade, que é um conceito naturalmente relativo. De fato, há diversos levantamentos recentes que constataram que o 1% do topo da pirâmide econômica concentra metade da riqueza mundial. Outros levantamentos indicam que 10% da população mundial mais rica possui a mesma riqueza dos outros 90%.
Os levantamentos entre as variáveis criminalidade e desigualdade utilizam o coeficiente de Gini, desenvolvido pelo estatístico italiano Corrado Gini em 1912. Também lançam mão da Curva de Lorenz, que mostra como a proporção da renda aumenta em função da proporção da população. Quanto mais distante essa curva estiver da linha diagonal mais desigual é a distribuição de renda.
Mas esses estudos se deparam com dilemas estatísticos difíceis de contornar, como a autocorrelação espacial e temporal positiva e o coeficiente de correlação linear de Pearson. Por conta destes fatores, a significância da correlação entre uma variável de crime e uma variável socioeconômica não pode ser calculada com base nos métodos usuais. É preciso alcançar um valor-p e R que sustentem a hipótese de vinculação, descartando uma ocorrência ocasional, tais como 0,05 e 0,4, respectivamente.
Esses estudos buscam apontar características sociais como preditores da violência, para além das tradicionais características individuais de perfis criminosos. Mas as conclusões são ambivalentes. Sabe-se que a iluminação pública traz efetivamente redução da criminalidade, já que inibe o fator surpresa do agente, dificulta a fuga e facilita sua identificação. Também foram investidos muitos recursos na implantação de sistemas de videomonitoramento nas ruas.
Há que se perquirir as condições contextuais que favorecem a incidência de crimes. Décadas atrás, em situações de carência de alimento, eram comuns saques às cidades interioranas, enquadrando-se em furto famélico. Contudo, o que se vê nos desastres ambientais atuais são pilhagens de televisores e eletrodomésticos.
Outros levantamentos buscam uma vinculação com o desemprego, que são contestados por estudos que indicam uma diminuição da criminalidade com o aumento do desemprego, em decorrência do aumento de guardiães e de vigilância nas ruas e casas. Levantamentos que procuram vincular os crimes com a falta de moradias e de esgotamento sanitário também são inconclusivos. Essas questões são mais pertinentes ao nascente Direito à Cidade do que propriamente à criminologia.
Analisando programas de redistribuição de renda, Edison Luiz Leismann, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, publicou em 2016 o estudo “Teoria econômica do crime: uma abordagem a partir do programa bolsa família no estado do Rio Grande do Sul”. O levantamento utilizou para a inferência o método da regressão linear múltipla, concluindo que, ao contrário do que se esperava, o programa não representou uma variável que auxilie na diminuição dos índices de criminalidade nos municípios do estado. Esse estudo entra em conflito com outros levantamentos que chegaram a conclusões opostas.
O debate sobre desigualdade ganhou corpo após a transição de fase que se seguiu à dissolução da União Soviética. A economia das ex-repúblicas soviéticas passaram pela chamada Terapia de Choque, o que resultou numa diminuição dramática da redistribuição da riqueza pelos seus governos e um salto concomitante na vantagem obtida em termos de riqueza, por conta dos efeitos combinados da súbita privatização e desregulamentação. Com isso, a maioria delas virou oligarquias.
Por outro lado, países outrora símbolos de igualdade, passam atualmente por grandes ondas de violência. A Holanda teve quase 800 mil crimes em 2022, em grande parte vinculados ao mercado ilegal de drogas. Já a Suécia teve um grande salto na violência nos últimos anos, por conta da disputa entre gangues rivais.
Do ponto de vista econômico, a desigualdade no crescimento econômico é explicada por fatores mercadológicos. Em geral, os ricos desfrutam de vantagens econômicas sistêmicas, como taxas de juros mais baixas e melhor aconselhamento financeiro, enquanto os pobres passam por desvantagens no mercado, como prazo menor para cobrança pelos credores e menos tempo para comprar com os melhores preços. Com o tempo, o volume de transações no mercado se multiplica e essa assimetria leva à ampliação da desigualdade econômica. Sob uma visão sociológica, este fenômeno também é analisado sob uma perspectiva de gênero, com as mulheres ocupando apenas 10% dos cargos de CEO nas empresas listadas na Fortune 500.
Em suma, o crescimento econômico num ambiente de livre mercado implicará maior desigualdade, bastando para isso que uma parcela menor da população cresça mais que o restante. A riqueza negativa também começa a despontar como objeto de estudo, como o alto endividamento em empréstimos hipotecários e estudantis. No Brasil, uma grande parcela da população é endividada e negativada. No entanto, não há levantamentos vinculando as taxas de criminalidade ao endividamento da população.
Outros levantamentos buscam associar a criminalidade com os anos de estudo. No entanto, os níveis de educação formal não se confundem com a educação moral, geralmente adquirida no ambiente familiar.
De fato, o foco da maioria dos estudos recai sobre a variável desigualdade. Sorin Krammer e coautores publicaram um estudo em 2022 sobre a vinculação entre a desigualdade e crimes contra empresas, analisando uma base de dados de 122 países (Revista de Estudos de Negócios Internacionais - Volume 54, págs. 385-400, 2023). Além dos crimes contra empresas, os autores apontaram que a desigualdade traz outros efeitos adversos, como redução do crescimento econômico, diminuição do bem-estar e polarização política. De uma maneira geral, o estudo buscou associar o coeficiente de Gini ao risco de criminalidade contra empresas. Na África do Sul, por exemplo, o país mais desigual do mundo, com um Gini de 0,63, a probabilidade de uma empresa ser vítima de crime num determinado ano foi calculada em 43,3%.
O estudo fez uma análise empírica, visando um termo de interação significativo com o coeficiente de Gini de cada país da amostra de dados. Em seguida, submeteu o resultado a um teste de robustez. Para explicar esse fenômeno, os autores recorreram às teorias criminológicas econômicas, sociológicas e institucional. A primeira representada pela teoria de Gary Becker; a segunda pela teoria da tensão social de Merton; e a terceira sugere que a desigualdade tende a desgastar o tecido social que une as comunidades, enfraquecendo as instituições.
Uma medida para contornar esse problema, segundo os autores do estudo, seria fomentar a coesão social, estimulando a confiança e a honestidade na população, e não necessariamente redução da desigualdade.
De seu turno, dentre os levantamentos com foco em países emergentes, destaca-se o estudo da doutora Lilik Sugiharti e coautores, da Universidade Airlangga, acerca do “nexo entre as taxas de criminalidade, pobreza e desigualdade social na Indonésia”, publicado em 2023. No geral, os autores avaliam que a literatura e os estudos científicos sobre o tema são inconclusivos, citando diversos levantamentos anteriores feitos em diferentes países que chegaram a conclusões opostas. Segundo o estudo, as evidências empíricas mostram que a desigualdade tem efeito positivo na criminalidade de motivação econômica e impacto negativo na criminalidade de motivação não econômica, citando levantamentos feitos na Índia e na China. De igual modo, a desigualdade não teria ligação com a criminalidade violenta, que estaria mais vinculada a condições psicológicas, médicas e culturais do que a fatores socioeconômicos. Apesar dessa ambivalência no plano mais amplo, o estudo concluiu, com base em dados da 34 províncias, pela correlação positiva entre as taxas de criminalidade na Indonésia e a desigualdade e a pobreza no país.
Importante pontuar que a economia da Indonésia passa atualmente por uma ampla incorporação tecnológica. Além disso, o governo planeja construir uma nova capital. A atual capital do país, Jacarta, na Ilha de Java, possui uma população de 10 milhões de habitantes, e sofre com problemas geológicos, correndo risco de afundamento, além de elevados níveis de poluição. A nova capital, Nusantara, será transferida para a Ilha de Bornéu, ao custo de 32 bilhões de dólares, e foi planejada para contornar os problemas de poluição, trânsito e elevação do nível do mar.
Já no Brasil, um estudo feito em 2020 por professores da FEA-RP, ligada à USP, constatou uma correlação positiva dos dados Gini com indicadores de segurança pública em municípios paulistas.
Por seu turno, o levantamento de Cláudio Beato e Ilka Afonso Reis, da UFMG, aponta um paradoxo entre o crescimento da criminalidade e a melhoria dos índices sociais, com base em dados de 4 capitais brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Segundo os autores, desde as décadas de 70 e 80, o brasileiro vive mais, em habitações com melhores condições sanitárias, com queda na mortalidade infantil e no número de analfabetos, e aumento no número médio de anos de estudo. Além disso, houve controle da inflação, redução do desemprego e estabilidade política. Apesar desse quadro, o mesmo período foi acompanhado por um aumento gigantesco nas taxas de homicídios e nos crimes contra o patrimônio.
De fato, a estabilidade política e econômica está historicamente vinculada aos índices de criminalidade. Como exemplo recente, o presidente do Sri Lanka fugiu do país em um jato militar em meados de 2022, em meio a distúrbios causados por uma crise econômica. A população invadiu a residência oficial após a fuga. Poucos dias depois, um novo presidente foi empossado por meio de uma votação secreta. No entanto, a crise gerou um efeito desestabilizador em todo o país, que possui 22 milhões de habitantes, desencadeando uma explosão nos índices de criminalidade. Um levantamento da Universidade de Peradeniya mostrou que as convulsões sociais e a repressão governamental em decorrência do estresse econômico levaram ao ímpeto criminoso, em sintonia com a Teoria da Motivação Criminal. Além disso, os cartéis de drogas ocuparam muitos vácuos de poder, criando um grande mercado de heroína no país.
A instabilidade política também assolou recentemente os países da África Ocidental, como Mali, Burkina Faso, Senegal, Serra Leoa, Nigéria, Togo, Benim e Guiné. Em muitos casos, houve tentativas de perpetuação no poder e sucessivos golpes militares, desencadeando violência extrema. Para exemplificar, o presidente da Guiné, Dadis Camara, da minoria étnica Foresters, sofreu uma tentativa de assassinato em 2009 ao tentar se perpetuar no poder. Neste mesmo ano, houve um protesto no estádio da capital, Conacri, resultando no massacre de 150 pessoas, a maioria da etnia majoritária Fula, que nunca esteve no poder. Essa instabilidade na Guiné se seguiu a três guerras civis durante uma década, e permanece até hoje, com conflitos entre as etnias Fula e Malinke. Junto a esse conflito, uma onda de crimes varreu o país, com agências de turismo alertando para assaltos a mão armada, roubos de automóveis, sequestros, extorsão e arrombamentos, praticados por homens trajando uniformes militares. A população da Guiné anseia pela volta à via democrática. O país é atualmente governado por um presidente interino desde setembro de 2021 e tem eleições previstas para dezembro de 2024. A crise dos demais países da África Ocidental segue essa mesma lógica. Essa instabilidade política e a perseguição étnica estão na raiz de crises migratórias, com deslocamentos internos e transfronteiriços de milhões de pessoas, além da explosão nos índices de criminalidade.
Os conflitos citados acima decorrem de instabilidade política, e não se confundem com as guerras tribais. Como exemplo, a onda de violência por que passou Papua Nova Guiné no início de 2024 tem como origem conflitos étnicos, que deixaram dezenas de mortos. De igual modo, militares brasileiros flagraram recentemente guerras tribais entre grupos de Yanomamis na Amazônia. Em geral, esses conflitos tribais são impulsionados pela competição reprodutiva, vingança e busca de status. Como ingrediente novo, há a difusão de armas de fogo entre os yanomamis fornecidas por garimpeiros e a disputa entre gerações numa mesma comunidade tribal, alimentada pelo desejo dos mais jovens por bens de consumo, como bebidas e aparelhos celulares. Nestes casos, a análise é mais afeta à antropologia do que propriamente à ciência política e à criminologia.
Já o estudo de José Maria Nóbrega Jr e Jorge Zaverucha publicado em 2010 refuta a correlação entre desigualdade e pobreza com a violência homicida na região nordeste. De uma maneira geral, os levantamentos sobre o tema são feitos por departamentos de economia. Outros estudos levam em conta aspectos da sociologia, antropologia e ciências sociais. Neste último artigo, os autores consideraram uma visão da ciência política, chegando a uma conclusão oposta à convencional.
Essa busca por uma correlação entre criminalidade e desigualdade, pobreza, desemprego ou educação pode utilizar como parâmetro uma comparação entre diferentes cidades ou países, ou o mesmo país e cidades, mas usando dados de épocas diferentes. Ou seja, pode ter um recorte espacial ou temporal. Além disso, pode ter uma abordagem quantitativa ou qualitativa, já que diferentes levantamentos chegam a conclusões opostas manejando os mesmos dados estatísticos, por meio das mesmas técnicas, mudando apenas a perspectiva adotada a priori.
Posto isso, não se descarta a possível influência de vieses e ideologias políticas e econômicas em alguns estudos, o que pode estar na raiz de tanta variação. Afinal, a desigualdade é tema de acirrada disputa entre diferentes correntes econômicas e políticas, que gera reações distintas a depender do modelo adotado, como o capitalismo de mercado (EUA), o estado de bem-estar social (União Europeia), o capitalismo de Estado (China, Rússia, Arábia Saudita) ou o socialismo (Cuba, Coreia do Norte).
De fato, correntes durkheimianas afirmam que o crescimento econômico implica uma maior taxa de criminalidade. Para Durkheim, o crime é um fato normal, em contraposição ao fato patológico, sendo benéfico à sociedade quando se mantém em níveis baixos, com a punição gerando maior integração social. Ele desenvolveu a teoria funcionalista do crime.
Muitos sociólogos comparativos, inspirados em Durkheim, apontaram que a industrialização e a urbanização estão na raiz do aumento da criminalidade. No decorrer do século XX, esta vertente acreditou que as sociedades em desenvolvimento, à medida que se industrializaram rapidamente, se urbanizaram e se modernizaram, passaram pelos mesmos processos sociais que ocorreram na Europa e nos EUA nos anos 1900. Assim, como as pessoas em países em desenvolvimento migraram para os centros industrializados, elas quebraram os tradicionais laços pessoais, familiares e comunitários das populações rurais. Os controles sociais, especialmente os controles informais, enfraqueceram, ou mesmo desapareceram, aumentando o comportamento desviante e criminoso.
Tradicionalmente, a literatura econômica aponta alguns efeitos adversos do crescimento do PIB, como o aumento da inflação. Contudo, estudos recentes têm apontado outro efeito pouco conhecido. Levantamentos feitos nos estados norte-americanos da Geórgia e Dakota do Norte, por exemplo, mostram que tempos econômicos melhores levam a taxas de criminalidade mais elevadas.
Esta perspectiva difere substancialmente da produção criminológica latino-americana, que aponta a desigualdade e a pobreza como causas preponderantes da criminalidade. A região tem uma taxa de homicídios dez vezes maior que em outras regiões emergentes e duas vezes maior que a da África subsariana, com maior concentração na sub-região centro-americana, com exclusão de El Salvador, que reduziu drasticamente sua taxa de crimes após uma ampla política de encarceramento.
Essa associação se baseia nas correntes interacionistas e na teoria dos rótulos, apontando para uma profecia auto-cumprida: à crença no potencial criminoso das populações marginalizadas corresponderá uma maior vigilância sobre elas, que se refletirá numa maior taxa de indiciamento e criminalidade.
Nessa perspectiva, é preciso considerar que o próprio registro de ocorrências e indiciamentos, que inflam as estatísticas criminais, possuem um peso diferente para as diferentes classes sociais. Disso decorre que o efetivo registro da ocorrência em sede policial em algumas ocasiões pode depender mais da classe social dos envolvidos do que do fato praticado. Desta forma, o mesmo fato envolvendo classes sociais mais abastadas, como desinteligência entre vizinhos e familiares, possuem uma chance menor de serem incluídas nas estatísticas criminais do que quando envolvem classes marginalizadas.
A maioria dos criminologistas, apoiados nos estudos sociológicos, definem os atos criminosos como uma agressão ao consenso moral e normativo da sociedade. Assim, o baixo grau de integração moral produzirá o fenômeno do crime. O conjunto de ideais universalmente distribuídos e a desigualdade nos meios socialmente aceitáveis para sua realização produz a anomia moral que está na origem do comportamento delinquente. Daí que a taxa de criminalidade seria proporcionalmente maior em grandes centros urbanos, onde a integração social é menor.
No caso dos desastres ambientais, a baixa integração social é rompida por completo, levando à motivação para os atos criminosos. Neste caso, é preciso diferenciar os crimes praticados por agentes efetivamente primários, dos cometidos por agentes tecnicamente primários.
O termo “passagem policial” é de uso corrente na imprensa, mas sem definição jurídica. O próprio indiciamento, apesar de baseado em evidências, ainda não foi submetido à contraprova do contraditório.
Contudo, não é preciso chegar-se ao trânsito em julgado nas cortes superiores em todos os casos a que o agente responde para indicar que ele é dado à prática de crimes. Para os fins dos levantamentos criminológicos, um agente que figura em diversos procedimentos em sede policial e processos criminais não é considerado efetivamente primário, apesar de o ser tecnicamente. Essa premissa é verdadeira, desde que se faça um recorte qualitativo das ocorrências.
Como exemplo, a prática da violência doméstica e feminicídio tem um perfil bem definido de perpetrador. De igual modo, não se descarta a ação de furtadores e roubadores “profissionais” nos saques e pilhagens nos desastres ambientais, que figuram em diversos inquéritos policiais ou estão soltos em decorrência de benefícios da execução penal. Seguindo esse raciocínio, vimos também que os casos de abuso sexual nos abrigos no RS após a inundação foram praticados pelos próprios familiares das vítimas, que reproduziram a prática já realizada no ambiente doméstico no ambiente dos abrigos.
Desta forma, é necessário uma abordagem ampla, visando dissuadir os saqueadores “profissionais” e, principalmente, a parcela da população efetivamente primária que seja tentada a realizar saques em massa, em sintonia com a vertente sociológica do conflito social e da criminologia da tensão social. O reforço do patrulhamento é uma medida essencial nestas circunstâncias. No caso do RS, os próprios moradores realizaram essa vigilância em suas casas, recusando-se a irem para os abrigos e instalando-se nos telhados. Durante as noites que se seguiram ao desastre, intensos tiroteios foram registrados em diversas áreas das cidades atingidas, que visavam afugentar os saqueadores.
Para que essa situação de “terra de ninguém” não se repita em novas situações de desastres ambientais no Brasil, é necessário investir em treinamento para o patrulhamento aquático diurno e noturno. Nestas situações, prevalece a visão sociológica da prevenção situacional do crime, buscando dificultar o acesso aos alvos, de modo a gerir adequadamente o risco de crimes. Esse planejamento deve ser incorporado aos planos nacionais de desastres, prevendo o uso de aparatos tecnológicos, como visão noturna, infravermelho, drones e megafones, que atualmente estão acessíveis às forças de segurança, conferindo amplitude e escala à vigilância e dissuasão.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. A criminologia nos desastres ambientais e prevenção de pilhagens no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 ago 2024, 04:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3729/a-criminologia-nos-desastres-ambientais-e-preveno-de-pilhagens-no-brasil. Acesso em: 26 dez 2024.
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