Ao tratar do crime continuado, o Código Penal brasileiro, de forma não muito clara, dispõe, no caput do art 71, que “quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços”.
A propósito, o legislador adotou, para fins de aplicação da pena, a teoria da ficção jurídica, almejando atenuar a reprimenda penal, intenção corroborada pelo Supremo Tribunal Federal no que toca à aplicação do instituto da suspensão condicional do processo, nos termos do verbete 723 da Súmula de jurisprudência daquela corte (“não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano.”)
Sobre a teleologia da indigitada teoria, esclarecedor o magistério de Paulo Queiroz (in Direito Penal, parte geral, 4ª edição, Editora Lumen Juris, 2008, p. 304/305):
“Semelhante equiparação tem por objetivo assegurar a efetividade do princípio da proporcionalidade, pois, reconhecido o concurso material puramente, o agente poderia sofrer em muitos casos pena absolutamente incompatível com a lesividade dos crimes praticados. Assim, por exemplo, a empregada doméstica que praticasse, em dias distintos, furtos sucessivos, poderia ser castigada com penas altíssimas, se se mantivesse a autonomia de cada crime. É para evitar tais excessos que o Código consagra o instituto da continuidade delitiva.”
De se salientar, por oportuno, que, no que toca à incidência da prescrição ou da decadência, por exemplo, os crimes são considerados isoladamente.
Saliente-se, ainda, que, malgrado tenha o legislador adotado determinado enfoque para a finalidade de aplicação da pena, qual seja, a teoria da ficção jurídica dantes mencionada, para a identificação e conceituação do instituto, adotou a teoria objetiva.
Conforme tal construção teórica, para a caracterização do crime continuado, basta a apuração objetiva dos elementos integrantes da continuidade delitiva, desvinculada, de qualquer modo, de elemento subjetivo, do escopo do agente. Não se leva em consideração a existência ou não de desígnios únicos pelo agente. É o que se infere, aliás, da leitura do art.71, caput, quando da menção a “mais de uma ação ou omissão”, “dois ou mais crimes da mesma espécie” e “condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes”.
O presente trabalho busca demonstrar a alteração do enfoque que a jurisprudência vem conferindo ao tratamento da continuidade delitiva nos crimes contra os costumes, motivo pelo qual, ainda com amparo na teoria objetiva, observa, com maior atenção, a alusão feita pelo legislador a “crimes da mesma espécie”.
Parte da doutrina e da jurisprudência vinha entendendo que a referência a “crimes da mesma espécie” somente teria o condão de abranger aqueles delitos encartados no mesmo tipo penal, de sorte que o instituto apenas teria aplicação caso o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, praticasse, v.g., dois estupros (art.213 do CP).
Entendendo da forma acima mencionada, Damásio Evangelista de Jesus sustenta que são crimes da mesma espécie “os previstos no mesmo tipo penal, isto é, aqueles que possuam os mesmos elementos descritivos, abrangendo as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas ou consumadas”. (in Direito Penal, v.1, 2005, p.605/606)
Em que pese a autoridade do posicionamento esposado, entendemos que não se coaduna sequer com a letra do dispositivo insculpido no multireportado caput do art.71, do Código Penal, especialmente na parte final, quando dispõe que “aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços”.
Ora, se o próprio legislador anteviu a possibilidade de aplicação do instituto quando presentes delitos com penas diversas, por certo que não se referiu, naquela norma, apenas a crimes constantes do mesmo tipo penal, pois, como sabido, para um mesmo tipo se prevê a uma mesma pena.
Destarte, preferimos a doutrina segundo a qual crimes de mesma espécie seriam aqueles que tutelam um mesmo bem jurídico, estejam ou não num mesmo dispositivo penal. Por todos, Cezar Roberto Bitencourt:
“(...) b) pluralidade de crimes da mesma espécie – são da mesma espécie os crimes que lesam o mesmo bem jurídico, embora tipificados em dispositivos diferentes;(...)” (in Código Penal Comentado, 5ª edição, Editora Saraiva, 2008, p.208)
Felizmente, a jurisprudência mais hodierna, especialmente no âmbito do Excelso Pretório, tem demonstrado sensibilidade ao entendimento referido e, assim, entendido pela aplicação da continuidade delitiva quando praticados os delitos de estupro e atentado violento ao pudor, previstos, respectivamente, nos arts. 213 e 214, do Código Penal.
Frise, todavia, que o enfoque adotado pelo STF se dá de maneira bastante restrita, na medida em que a jurisprudência daquela corte exige que os aludidos crimes, para serem considerados em continuidade delitiva, devem ser praticados de forma autônoma e contra vítimas diferentes, vejamos:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. SUSPENSÃO DO PRAZO RECURSAL PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSO ESPECIAL. FÉRIAS FORENSES. RÉU PRESO. PRECEDENTES DESTA CORTE. CRIMES DE ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR, PRATICADOS DE FORMA INDEPENDENTE. RECONHECIMENTO DE CONTINUIDADE DELITIVA. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ART. 2º DA LEI Nº 8.072/90, QUE VEDA A PROGRESSÃO DE REGIME NA EXECUÇÃO DAS PENAS DOS CONDENADOS POR CRIMES HEDIONDOS. PRECEDENTE PLENÁRIO. RECONHECIMENTO DA INCONSTITUCIONALIDADE. 1. Esta Corte já assentou o entendimento de que as férias forenses suspendem a contagem dos prazos recursais, a teor do artigo 66 da LOMAN. O fato de o réu encontrar-se preso não altera tal entendimento, pois o aparato judiciário em funcionamento em tais períodos tem como escopo evitar abusos e ilegalidades irreparáveis. 2. A turma entendeu pelo reconhecimento de continuidade delitiva entre os delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados de forma independente. Vencido, neste ponto, o Relator, que afirmava a configuração de concurso material. 3. Reconhecida a inconstitucionalidade do impedimento da progressão de regime na execução das penas pelo cometimento de crime hediondo, impõe-se a concessão da ordem para afastar a vedação que se impôs ao paciente. Ressalve-se que pretendida progressão dependerá do preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos que a lei prevê; tudo a ser aferido pelo Juízo da execução. Writ parcialmente deferido. HC 89827 / SP - SÃO PAULO
HABEAS CORPUS HC89827 / SP - SÃO PAULO
Relator(a): Min. CARLOS BRITTO
Julgamento: 27/02/2007 Órgão Julgador: Primeira Turma.” (sem grifos no original)
“EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIMES DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR E DE ESTUPRO, PRATICADOS DE FORMA INDEPENDENTE. CONFIGURAÇÃO DE CONCURSO MATERIAL DE CRIMES, E NÃO DE CONTINUIDADE DELITIVA. Os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, ainda que praticados contra a mesma vítima, não caracterizam a hipótese de crime continuado, mas encerram concurso material de crimes. Precedentes. Caso em que o crime de atentado violento ao pudor não foi praticado como "prelúdio do coito" ou como meio necessário para a consumação do estupro, a evidenciar a absoluta independência das duas condutas incriminadas. Ordem denegada. HC 88466 / SP - SÃO PAULO
HABEAS CORPUS HC88466 / SP - SÃO PAULO
Relator(a): Min. CARLOS BRITTO
Julgamento: 18/12/2006 Órgão Julgador: Primeira Turma”
Infere-se, pois, dos julgados acima colacionados, que o Supremo elegeu como requisitos à configuração da continuidade delitiva nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor a autonomia das condutas, a diversidade de vítimas e/ou ter sido o atentado violento ao pudor praticado como “prelúdio ao coito”.
Entendemos que, apesar de louvável e mais coadunante com os novos escopos da política criminal moderna – despenalizadora e ressocializadora – o entendimento que vem sendo adotado pelo STF ainda é bastante tímido, principalmente quando decide pela existência de crime continuado quando o atentado violento ao pudor é meio necessário à consumação do estupro.
Mais acertada seria a utilização do princípio da consunção, na medida em que, em tais hipóteses, as condutas caracterizadoras de atentado ao pudor nada mais seria do que “crime meio” e, portanto, deveriam ser absorvidas pelo crime fim.
À guisa de conclusão, entendemos que a evolução galgada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, posto que louvável, ainda é extremamente tímida e deve evoluir mais para que esteja de acordo com a dogmática penal e as tendências atuais da política criminal.
Juiz de Direito do Estado do Piauí, pós graduado em Direito Público pela Universidade Potiguar e versado em MMA. E-mail: [email protected] .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Ulysses Gonçalves da Silva. Uma nova visão do crime continuado nos delitos contra os costumes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2008, 12:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/16147/uma-nova-visao-do-crime-continuado-nos-delitos-contra-os-costumes. Acesso em: 26 dez 2024.
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