1. Tipicidade conglobante.
Zafaroni e Pierangeli, em seu livro manual de direito penal, trabalharam uma nova forma de tipicidade. É a chamada tipicidade conglobante. Essa tipicidade, em verdade ao invés de conglobante deveria ser chamada de englobante, pois engloba outros conceitos que não apenas os típicos.
A teoria da tipicidade conglobante considera que para que o fato seja típico, deve-se analisar outros elementos, portanto a tipicidade passará a analisar outros aspectos além daqueles previstos no tipo penal.
Esta teoria se fundamenta no modelo clássico do finalismo, que separa tipicidade e ilicitude (teoria indiciária), não adotando o modelo da teoria dos elementos negativos do tipo.
O fato ser típico para o direito penal resulta na clássica tipicidade formal, mas precisa de algo mais, chamado de tipicidade conglobante.
TIPICIDADE PENAL = TIPICIDADE FORMAL + TIPICIDADE CONGLOBANTE |
TIPICIDADE CONGLOBANTE = ANTINORMATIVIDADE + TIPICIDADE MATERIAL. |
Tipicidade formal é a descrição na lei da conduta formalmente proibida. É o tipo penal clássico – verbo, elementos objetivos (descritivos e normativos – jurídicos e extrajurídicos), elemento subjetivo (dolo e elementos especiais (fim específico de agir, nem todo tipo penal tem)).
Antinormatividade seria toda conduta contrária às normas e as suas determinações. Condutas que sejam determinadas, fomentadas pela norma não são consideradas antinormativas. Antinormatividade (contrário a norma) é o fomento, desestímulo, se a norma manda fazer, e se faz, não é contrário a norma. Se se atua em estrito cumprimento do seu dever legal, isso é um dever imposto pela lei, se a lei impôs um dever ela fomentou, determinou que se agisse de acordo com a norma, não é antinormativo. Aquilo que a doutrina clássica tratou como o art. 23 – estado de necessidade, legitima defesa, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito.
Para Zafaroni, a antinormatividade não é comprovada somente com a adequação da conduta ao tipo legal, posto que requer uma investigação do alcance da norma que está anteposta, e que deu origem ao tipo legal, e uma investigação sobre a afetação do bem jurídico. Essa investigação é uma etapa posterior do juízo de tipicidade que, uma vez comprovada a tipicidade legal, obriga a indagar sobre a antinormatividade, e apenas quanto esta se comprova é que se pode concluir pela tipicidade penal da conduta.
A tipicidade legal e tipicidade penal são a mesma coisa: a tipicidade pressupõe a legal, mas não a esgota; a tipicidade penal requer, além da tipicidade legal, a antinormatividade.
A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, posto que pode excluir do âmbito do típico aquelas condutas que apenas aparentemente estão proibidas, como acontece no caso do oficial de justiça, em que sua conduta se adequa ao “ subtrair para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, mas que não é alcançada pela proibição “não furtarás”.
Quando se age por dever legal, a norma manda se agir dessa forma, por isso é normativo. Desse modo, o estrito cumprimento de dever legal não deve estar nas excludentes de ilicitude.
Portanto, diante do referido acima, as hipóteses previstas como estrito cumprimento de dever legal e alguns casos de exercício regular do direito deixam de ser consideradas como causas de exclusão de ilicitude, passando a integrar o conceito de fato típico, possuindo a natureza jurídica de causa de exclusão de tipicidade.
Zafaroni também traz algumas hipóteses de exercício regular de direito como causas de exclusão da tipicidade como o exercício do poder familiar, pois se colocar alguém de castigo é cárcere privado, mas a conduta não é antinormativa, pois permitida pelo ordenamento jurídico.
Para o mesmo autor, a antijuridicidade é diferente de antinormatividade. Para ele, antinormativo tem a ver com a lei fomentar, tem a ver com que a lei quer que você faça, por isso dever legal. Enquanto que o conceito de antijuridicidade tem a ver com a idéia de autorização, permissão e não fomentação. Por isso quando se fala de antijuridicidade se fala de estado de necessidade, legitima defesa, lhe permite atuar em situação de perigo para preservar o seu bem em detrimento de outrem. Dessa maneira, o modelo clássico de antijuridicidade ser indício de tipo permanece.
Ao diferenciar antijuridicidade (permissão) e antinormatividade (fomento) Zafaroni mantém o modelo clássico, separando tipicidade de ilicitude e mantendo legitima defesa e estado de necessidade como excludentes de ilicitude, tratando apenas do estrito cumprimento do dever legal e do exercício regular do direito como elementos excludentes do fato típico.
Já a tipicidade material serve para materializar o tipo penal, ou seja, só ocorre quando lesionar o bem jurídico, o famoso princípio da lesividade, mas para que ocorra deve violar bem jurídico alheio. Essa lesão deve ser significante, conduzindo o princípio da insignificância ou bagatela, princípio decorrente da lesividade, que precisa ser relevante, significante.
Para materializar o tipo precisa-se de uma lesão, mas se ela for muito pequena, não é suficiente para lesionar o bem jurídico, não materializa, sendo a conseqüência do principio da insignificância é retirar a tipicidade material, que retira a tipicidade conglobante, que por sua vez retira a tipicidade penal, o fato é atípico para o direito penal.
A tipicidade material vincula-se ao conceito de lesão a um bem jurídico tutelado, portanto, liga-se ao princípio da lesividade, conseqüentemente também vincula-se ao princípio da insignificância, pois lesões ínfimas, insignificantes não serão capazes de materializar o tipo penal. Diante disso, a conseqüência do princípio da insignificância será ausência de tipicidade material que gera ausência da tipicidade conglobante que faz com que o fato seja atípico para o direito penal.
Porque a lesão insignificante não materializa o tipo? A resposta a essa questão passa pelo princípio da intervenção mínima. Vejamos.
Uma lesão materializa o tipo, mas não permite que o direito penal puna, pois ele serve apenas para os bem jurídicos mais importantes.
Sendo assim, para se considerar que uma lesão insignificante não materializa o tipo penal, a teoria da tipicidade conglobante traz o princípio da intervenção mínima para o plano concreto, para as mãos do aplicador da lei (promotor e juiz), possibilitando que se considere a conduta atípica para o direito penal.
Quem tem legitimidade para aplicar o principio da insignificância? Promotor e juiz. Quanto ao delegado, apesar da divergência, tem pravalecido que não pode aplicar o princípio da insignificância.
2. Antinormatividade e antijuridicidade
O preceito permissivo dá lugar a uma causa de justificação, isto é, a um tipo permissivo. É uma permissão que a ordem jurídica outorga a certas situações conflitivas. O que se quer destacar é que a antijuridicidade surge da antinormatividade (tipicidade penal) e da falta de adequação a um tipo permissivo, ou seja, da circunstância de que a conduta antinormativa não esteja amparada por uma causa de justificação.
No que se refere a tipicidade penal ela implica a contrariedade com a ordem normativa, mas não implica a antijuridicidade (a contrariedade com a ordem jurídica), porque pode haver uma causa de justificação (um preceito permissivo) que ampare a conduta.
3. Atipicidade conglobante e justificação
A legítima defesa é uma causa de justificação, isto é, uma permissão outorgada pela ordem jurídica para a realização da conduta antinormativa. O direito nos outorga uma permissão para repelir a agressão, sem dar relevância à nossa possibilidade de fuga. Dá-nos permissão até mesmo para matar o agressor, se isto é racionalmente possível. Não nos obriga a fugir, dá-nos permissão para repelir.
Mas, esta permissão para repelir a agressão, ilegítima e não provocada, não implica que fomente e muito menos que nos ordene semelhante conduta. Simplesmente, nestas hipóteses conflitivas, a ordem jurídica limita-se a permitir a conduta, porque não se pode afirmar que incentive que um homem que pode fugir prefira matar.
É precisamente esta a mais importante diferença entre a tipicidade conglobante e a justificação: a atipicidade conglobante não surge em função de permissões que a ordem jurídica resignadamente concede, e sim em razão de mandatos ou fomentos normativos ou de indiferença (por insignificância) da lei penal. A ordem jurídica resigna-se a que um sujeito se apodere de uma jóia valiosa pertencente a seu vizinho, e que a venda para custear o tratamento de um filho gravemente enfermo, que não tem condições de pagar licitamente, mas ordena ao oficial de justiça que apreenda o quadro e lhe impõe uma pena se não o faz, fomenta as artes plásticas, enquanto que se mantém indiferente à subtração de uma folha de papel rabiscada.
4 – Conclusões
A tipicidade conglobante, diante de todo o exposto, veio a corrigir as distorções ocasionadas na análise do tipo.
O ordenamento constitui um sistema, ou seja, uma totalidade ordenada, conjunto de elementos entre os quais existe uma ordem. Essa só existirá “se os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si”. A coerência que as normas guardam entre si impede que uma proíba o que outras ordenam ou fomentam. Assim sendo, não pode o tipo proibir o que o direito fomenta ou ordena, sob pena de se transformar o sistema jurídico num caos.
Diante desse quadro, Zaffaroni conclui que “o juízo de tipicidade não é mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa. A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, posto que pode excluir no âmbito do típico aquelas condutas que aparentemente estão proibidas.”. Tipicidade penal haverá quando presentes a tipicidade legal e a tipicidade conglobante. Assim, a conduta do oficial de justiça que seqüestrar uma obra não pode ser considerada típica, mas coberta por excludente de antijuridicidade, como afirma grande parte dos doutrinadores. Nesse caso, considerando-se que há norma determinando o cumprimento de um dever, sequer haverá tipicidade.
Por fim, a teoria da tipicidade conglobante, embora tenha boa aceitação doutrinária, mistura os conceitos de tipicidade e antijuridicidade, indo de encontro à estrutura do nosso Código Penal, claro em estabelecer dois momentos distintos: o do tipicidade e o das causas de justificação.
Juiza substituta do Estado de Sergipe.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Juliana Nogueira Galvão. Análise crítica sobre a tipicidade conglobante à luz da teoria de Eugenio Raul Zafaroni e José Henrique Pierangeli Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez 2008, 11:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/16166/analise-critica-sobre-a-tipicidade-conglobante-a-luz-da-teoria-de-eugenio-raul-zafaroni-e-jose-henrique-pierangeli. Acesso em: 26 dez 2024.
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