A pretensão judicial, a fim de que o Poder Público implemente ações efetivas em proteção à criança e ao adolescente, como, por exemplo, a construção de uma casa de abrigo em Município que não possua nenhuma, não ofende o Princípio da Separação dos Poderes. Na verdade, não se trata de o Poder Judiciário determinar a realização de uma política pública, mas sim de determinar que o Poder Executivo cumpra as normas legais existentes no Ordenamento Jurídico.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) prevê o Princípio da Proteção Integral à Criança, em seu art. 1º; sendo dever do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade a efetivação de seus direitos (art. 4º), entendendo-se como prioridade, além de outras situações, a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas à sua proteção (art. 4º, parágrafo único, d). As entidades de abrigo estão previstas nos arts. 90, IV; 92 e 93, ECA. A Carta Magna também tem por seus princípios a Proteção à Criança e Adolescente, sendo dever do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, a proteção de seus direitos (art. 227, CF).
O Ministério Público, como defensor dos interesses sociais e disponíveis (art. 127, CF), deve velar pela proteção dos direitos das crianças e adolescentes e o instrumento apto a tanto é realmente a Ação Civil Pública, prevista na Lei nº 7.913/89. Além do Ministério Público, possui legitimidade para tal fim, as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por esta Lei, dispensada a autorização da assembléia, se houver prévia autorização estatutária (art. 210, III, ECA).
Sabe-se que não é possível ao Judiciário rever o mérito, o conteúdo de um ato administrativo, no que diz respeito à conveniência e oportunidade, a não ser, como admite a doutrina moderna, quando haja afronta aos Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade, observada ainda a regra da Reserva do Possível. A avaliação do mérito do ato administrativo é privativa do administrador público. Entretanto, o Poder Judiciário pode examinar o ato administrativo quanto ao seu aspecto de legalidade e se há obediências às normas e princípios constitucionais (como as observadas acima, as quais determinam a realização de políticas públicas em favor de crianças), sem que com isto, esteja o juiz exercendo função administrativa, que é de competência apenas do Poder Executivo.
Entretanto, temos de considerar o forte entendimento da doutrina e jurisprudência, de autores como, por exemplo, JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, de que a procedência de tal pedido daria ao Judiciário a execução de funções que são atribuídas ao Poder Executivo, sendo “a gestão de interesse público, a fixação de prioridades, a execução dos orçamentos de competência privativa da Administração”.¹
Nessa linha de raciocínio foi o acórdão do STJ no julgamento do RESP 208.893-PR, que decidiu que o Município não é obrigado a instalar abrigos para crianças e adolescentes, entendendo que o Município (não sendo essa escolha do Judiciário) possui liberdade de decidir onde as verbas orçamentárias serão aplicadas e qual a prioridade. Veja-se o julgado:
“RECURSO ESPECIAL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PRECEITOS COMINATÓRIOS DE OBRIGAÇÃO DE FAZER - DISCRICIONARIEDADE DA MUNICIPALIDADE – NÃO CABIMENTO DE INTERFERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO NAS PRIORIDADES ORÇAMENTÁRIAS DO MUNICÍPIO - CONCLUSÃO DA CORTE DE ORIGEM DE AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES ORÇAMENTÁRIAS DE REALIZAÇÃO DA OBRA - INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 07/STJ - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL AFASTADA - AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DE DISPOSITIVOS DO ECA APONTADOS COMO VIOLADOS.
Requer o Ministério Público do Estado do Paraná, autor da ação civil pública, seja determinado ao Município de Cambará/PR que destine um imóvel para a instalação de um abrigo para menores carentes, com recursos materiais e humanos essenciais, e elabore programas de proteção às crianças e aos adolescentes em regime de abrigo.Na lição de Hely Lopes Meirelles, "só o administrador, em contato com a realidade, está em condições de bem apreciar os motivos ocorrentes de oportunidade e conveniência na prática de certos atos, que seria impossível ao legislador, dispondo na regra jurídica - lei
- de maneira geral e abstrata, prover com justiça e acerto. Só os órgãos executivos é que estão, em muitos casos, em condições de sentir e decidir administrativamente o que convém e o que não convém ao interesse coletivo" .
Dessa forma, com fulcro no princípio da discricionariedade, a Municipalidade tem liberdade para, com a finalidade de assegurar o interesse público, escolher onde devem ser aplicadas as verbas orçamentárias e em quais obras deve investir. Não cabe, assim, ao Poder Judiciário interferir nas prioridades orçamentárias do Município e determinar a construção de obra especificada. Ainda que assim não fosse, entendeu a Corte de origem que o Município recorrido "demonstrou não ter, no momento, condições para efetivar a obra pretendida, sem prejudicar as demais atividades do Município". No mesmo sentido, o r. Juízo de primeiro grau asseverou que "a Prefeitura já destina parte considerável de sua verba
orçamentária aos menores carentes, não tendo condições de ampliar essa ajuda, que, diga-se de passagem, é sua atribuição e está sendo cumprida". Adotar entendimento diverso do esposado pelo Tribunal de origem, bem como pelo Juízo a quo, envolveria, necessariamente, reexame de provas, o que é vedado em recurso especial pelo comando da Súmula n. 07/STJ (...)”.
Mais recentemente, com amparo na doutrina mais atualizada, a jurisprudência também vem se modificando, como se percebe neste julgado de data mais recente, amparado por muitos outros neste sentido, nos tempos atuais:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO. MENOR. CRECHE.
Trata-se de ação civil pública proposta pelo MP com objetivo de garantir a menores de família sem recursos o direito de matrícula e freqüência na rede municipal de creches. O Min. Relator destacou que a CF/1988, no art. 208, o ECA (Lei n. 8.069/1990) e a Lei de Diretrizes e Base da Educação (Lei n. 9.394/1996, art 4º, IV) asseguram o atendimento em creches e pré-escolas da rede pública às crianças de zero a seis anos. Compete à Administração Pública propiciar e assegurar esse atendimento - mas não cabe ao administrador público escolher entre prestá-lo ou não, pois constitui um dever administrativo estabelecido em lei de um lado e, do outro, o direito assegurado ao menor de ver-se assistido pelo Estado. Assim, não há que se questionar a intervenção do Judiciário porquanto se trata de aferição do cumprimento da exigência da lei. Para o Min. Relator, na espécie, não restou provada a falta de disponibilidade orçamentária alegada pela municipalidade. A divergência inaugurada pela Min. Eliana Calmon entendia que o MP autor não demonstrou as condições necessárias à obrigação de fazer postulada na inicial. Isso posto, a Turma, por maioria, ao prosseguir o julgamento, deu provimento ao recurso. Precedente citado: REsp 575.280-SP, DJ 25/10/2004. REsp 510.598-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 17/4/2007.” (Informativo nº 317, STJ)
Tem-se consagrado que se o Estado tem um dever é porque a criança tem um direito subjetivo e não há forma de ver efetivado o seu direito, senão por meio de acesso ao Poder Judiciário, em atenção ao Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional. O Estado tem o dever de tornar efetivos direitos fundamentais, constitucionalmente previstos, por sua vez, o titular desses direitos têm o dever de exigir políticas públicas do Estado, para que possam tais direitos exercidos na prática.
De toda forma, há de se registrar que para afastar a implementação de políticas públicas, decorrente de determinação judicial, por falta de verbas, o Poder Público disso deve fazer prova, porque não ficam superados os deveres que tem o Estado com a simples alegação de falta de possibilidade financeira.
Caso concedida a ordem judicial, o art. 12, § 3º, da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), prevê a imposição de multa para a hipótese de não cumprimento da decisão preferida pelo Judiciário que impõe obrigação de fazer. O art. 11 da norma supracitada admite que o juiz condene à obrigação de fazer, sob pena de execução específica ou de cominação de pena diária.
A idéia é de aplicação do Princípio da Efetividade que prevê a astreinte, que tem finalidade coercitiva, como forma de compelir o devedor a cumprir o fato devido. Merecendo também previsão no Código de Processo Civil, arts. 287, 461, § 4º e 431-A, além de previsão no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, in verbis:
“Art. 213. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
(...)
§ 2º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito”.
Além de bastante útil à parte que contará com mais um meio para ver a prestação de que é credora sendo cumprida, é um meio de resguardar a Efetividade da Jurisdição e a Dignidade da Justiça.
A princípio, a pena de multa por unidade de tempo, imposta em caso de não cumprimento da prestação no prazo determinado pelo juiz, daria efetividade à decisão judicial, “forçando” o condenado a prestar a atividade ao qual foi condenado.
Entretanto, há casos em que a multa (que pode ser diária, quinzenal, mensal etc.) é ineficaz. RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO², parafraseando Carlos Alberto de Salles, aponta que essa falta de eficácia costuma se verificar nas obrigações em que os devedores são entes públicos, uma vez que a despesa pelo descumprimento da obrigação não atingirá o agente responsável.
Nesses casos, o juiz pode utilizar as “medidas necessárias”, mencionadas no § 5º, do art. 431, CPC. Concluindo ainda o autor que o juiz pode utilizar outras sanções, embora não tratadas expressamente pela legislação (por exemplo: restrição de direitos ou imposição de medida executiva ainda mais gravosa), mas que sejam inatas ao poder jurisdicional, em razão de ser apenas exemplificativo o rol da lei processual.
Notas:
¹ CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, Editora Lumen Juris; 2005, pg. 843).
² MANCUSO, Rodolfo de Camargo (Ação Civil Pública, 9ª edição; 2004, Editora RT, pg. 361).
Servidora Pública do Poder Judiciário do Estado de Pernambuco, pós graduada pela UNISUL-Universidade do Sul de Santa Catarina, ex-advogada e professora do Acta-Curso preparatório para concursos<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACIEL, Anna Paula de Freitas. Ação civil pública para garantir a execução de medidas em favor da criança e do adolescente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2008, 10:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/16168/acao-civil-publica-para-garantir-a-execucao-de-medidas-em-favor-da-crianca-e-do-adolescente. Acesso em: 26 dez 2024.
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