Sumário: 1. Introdução 2. Preservação do folclore 3. Tentativa de transplante 4. Mitologia sofisticada 5. Deuses de barro 6. Herança social 7. Premissa do crime 8. Lógica do conteúdo 9. Teoria correta 10. Dogmática ético-social.
1. Introdução
O direito, como fato concreto, é refratário às grandiloqüentes construções teóricas. Essencialmente dinâmico, acompanha em regra as transformações econômico-sociais, assim como para elas contribui, num contínuo jogo de trocas recíprocas. Foi desse modo que encerrei um dos capítulos do Curso crítico de direito penal, ora em fase de ampliação e atualização (Florianópolis: Obra Jurídica, 1998).
Aproveito a continuidade da temática ali desenvolvida para, em forma de artigo, referente à estrutura do crime, realçar mais uma vez a importância de uma visão crítico-metodológica do direito penal. Com efeito, parece evidente a relação entre crime, direito, poder, linguagem, cultura e sociedade. Nada obstante, penalistas brasileiros, à semelhança de tantos outros, entusiasmados com a pretensa evolução da doutrina germânica, continuam investigando os infindáveis mistérios da estrutura jurídica do crime. Com uma desvantagem: ausência de originalidade.
Consuma-se de todo jeito o delito maior da subserviência metodológica numa área de estudos um tanto quanto inútil, pedante e reacionária, ainda que se afirme o contrário, por motivos óbvios.
Examinemos o assunto com mais detalhes.
2. Preservação do folclore
Que os juristas alemães percam tempo com a matéria não deixa de ser compreensível, vítimas que são do ambiente cultural respirado nos últimos séculos. Dificilmente o penalista germânico se libertará da convicção de que se encontra historicamente destinado a desvendar o falso enigma da anatomia do crime e da pena. Dir-se-ia que persistem nele as ilusões de uma vocação filosófica dirigida à perquirição cada vez mais profunda dos átomos e essências do “jurídico”, temporariamente escondidos à percepção humana.
E ele então vai à luta, dissecando a seu modo a mosca azul de Machado de Assis, sem que a veja fragmentada e morta, já que trabalha com a força da fé e o vigor da clarividência introspectiva. E escreve livros, artigos, conferências, distinguindo e subdistinguindo; consertando aqui, retocando ali, dinamitando mais abaixo, sob protestos ou aplausos de colegas que retornam ao tema com novas distinções, acréscimos e adendos. E não há mal nenhum, naquelas plagas, haja vista uma organização social e política que permite e estimula esses jogos e charadas de adultos altamente intelectualizados, de quem não se espera que, de repente, comecem a plantar batata.
Não, o folclore precisa ser preservado e, depois, as coisas não ocorreriam como ocorrem se inexistisse uma camada maior de penalistas que se encarregasse, nos quatro cantos do mundo, de segurar o andor desses modernos alquimistas do direito criminal.
3. Tentativa de transplante
Como seria de esperar-se, a procissão chegou até nós, com muita pompa e muito alarde. Aí estão esses escritos bizantinos definitivamente incorporados aos hábitos antipedagógicos (inconscientes, claro) da elite jurídico-penal brasileira. Os autores, embora de boa-fé, foram buscar no estrangeiro exatamente o oposto do que se deveria procurar, ou seja, foram buscar a mentira, o engodo, a encenação, a aparência, a falsa cultura.
E querem, com avassaladora insistência, repassar o produto a todos nós, estudantes e estudiosos do direito penal, numa tentativa de uniformização dogmática fadada, no entanto, ao insucesso. É que o estômago não resiste, começa a reagir, a rejeitar, mormente quando o cérebro confirma, a cada passo, o descalabro das proposições.
4. Mitologia sofisticada
Está tudo errado, completamente errado, nessas premissas estratosféricas de explicação jurídica do delito. Age-se como se existisse, efetivamente, um conceito universal de crime, superior às contingências históricas do mundo temporal. Elimina-se a realidade vivida, reputada ilusória, para trabalhar-se com o mundo sobrenatural das revelações primeiras, conformadoras do ser ou essência do delito.
“No começo era a ação”, diriam os novos sacerdotes, “a ação intrinsecamente finalista”. Tudo o mais é conseqüência: forma-se, aos poucos, um sólido edifício lógico-estrutural, enxertado inclusive de conteúdo, a impor-se por si mesmo ao jurista e ao próprio legislador. Mas como isso levou tempo, e é preciso ser fiel à história, tem-se ainda de engolir a pesada massa de informações referentes ao caminho percorrido, através do exame das contribuições e retificações aportadas por um número infinito de zelosos construtores de labirintos.
Os labirintos estão cada vez maiores. Sóbrios, elegantes, refinados: desta feita, com a crescente participação e cumplicidade de penalistas de inúmeras nações.
Seus protótipos e modelos continuam confeccionados em linguagem natural, mas ninguém se importa com as vaguezas e ambigüidades. O importante é que eles existem, se multiplicam e, por sua etiqueta de origem, atraem fatalmente nossa atenção: finalismo, pós-finalismo, funcionalismo, teleologismo, minimalismo, imputação objetiva, constitucionalismo, política criminal, adequação social, garantismo, risco permitido, direito penal do inimigo...
Quem quiser ser penalista precisa estudar mitologia sofisticada, inconfundível com as noções de direito penal exauridas no foro ou fermentadas em praça pública. Uma coisa, então, é ser penalista, que convive com a sabedoria; outra coisa é labutar como advogado, promotor ou juiz, meros executores das instruções e descobertas dos que fingem pertencer ao Olimpo das idéias jurídicas.
5. Deuses de barro
Prefiro a insensatez da dissonância. A mais consciente imprudência me induz a repelir esse distanciamento funcional que alcança as raias do absurdo. Recuso-me a lecionar o mito, nas universidades, quando os tribunais me prendem ao solo, de onde nasce afinal o direito.
O delito se define por ele mesmo, sempre a partir de uma teoria, e a melhor teoria é aquela que se aproxima da realidade histórico-social do objeto questionado. Teoria e prática se implicam de tal forma no campo jurídico-penal que até não mais se concebe a menor tentativa de enfoque parcelado, à guisa de análise. É o todo que carece de ser analisado, para que não se perca de vista aquele momento crítico de intercomunicação recíproca de fatores e elementos, em perpétua dinamicidade unitária e autotransformadora.
Os fatos sociais, com sua enorme carga valorativa, participam do delito como o Sol participa do movimento dos planetas. A propósito, elimine-se o Sol da vida dos planetas e se verá que não serão apenas estes que sentirão os efeitos de um repentino e previsível cataclismo gravitacional.
O delito não existe sem o fato social que lhe regula ciberneticamente o rumo a er alcançado, por via de alterações de sentido geradoras de novas formas e matizes. Deve ser definido por seu conteúdo, nos limites de sua própria efemeridade factual e contraditória, ao invés de ser aprisionado pelo método esquizofrênico de certas filosofias ontológicas ou essencialistas.
O delito e suas circunstâncias, historicamente condicionadas, não se amoldam a figurinos estanques desenhados por uma natureza intrínseca, como se nascessem de um mesmo e único ovo, idêntico a si próprio. Os milhões de anos de vida sobre a Terra atestam exatamente o contrário. Não se há de construir o presente com dispensa dos materiais que lhe servem de sustentáculo.
Sem a empiricidade dos fatos, potenciais ou consumados, não vale nenhuma teoria, se se procura uma verdade ontológica. Fora dos fatos qualquer teoria tem valor, pois se alimenta de si mesma, de seu próprio enunciado unilateral. É dolo o que for como tal predeterminado. É culpa o que se encaixa no conceito inventado de culpa. Os elementos do crime cabem no canto mágico da imaginação criadora de todo ser vivente, por menos culto que pareça. E assim por diante. Sob esse aspecto, ninguém pode ser contestado, na teoria do crime. A não ser que se queira endeusá-lo, como se procede com relação a certos juristas: deuses de barro que devem rir, às escondidas, de seus inocentes e fiéis servidores.
6. Herança social
O estudo do crime, em suma, se mostra inseparável do estudo do direito e, pois, de toda uma estrutura política, social e econômica, delimitada no tempo e no espaço. O crime em si, como simples idéia, desligado do homem e da história, afastado das leis e dos costumes, constitui, aliás, uma impossibilidade lógica. É que ele implica, por definição, um juízo negativo de valor que só pode ser emitido e vivenciado pelo próprio homem.
A propósito, religião e pecado, correlatos de direito e delito, carecem igualmente da mesma necessidade lógica. Em princípio, é o homem que se volta para Deus. Nessa busca, serve-se dos meios de que dispõe, segundo a cultura de seu tempo e as potencialidades de seu psiquismo. O pecado, como juízo negativo de valor, exige também a presença inventiva do homem, em termos de emissão e vivência. Não fora assim, aniquilaríamos todas as religiões e todos os pecados e, por extensão, todos os direitos e todos os crimes, sob os olhares compassivos de um Deus que os quis, até agora, diversificados. A idéia pura de crime, de pecado, de direito e de religião, dentre tantas outras, reclamaria nossa própria extinção física e mental, como se jamais tivéssemos existido. É sobrecarga demais para a visão empírico-racionalista de nossos dias, de que não abdico.
Em verdade, herdamos o crime como quem herda uma linguagem, ou seja, herdamos o que não pedimos. E quando nos damos conta da herança, servimo-nos dela para eventualmente repudiá-la, se for o caso.
O crime, fenômeno social por excelência, já o encontramos delineado. Configura-o quem nos antecede no Poder. Obra coletiva, supera o jurista de gabinete, assim como derrota, a seu tempo, o mais vitorioso dos déspotas. No fundo, não possui nenhuma estrutura, a menos que ela seja transferida ao próprio conteúdo, refratário no entanto à mais sofisticada de toda e qualquer teorização formal. Não há crime sem direito e este, como fato objetivamente normativo, dinamita na base as definições idealistas, alimentadas como sempre de aéreas premissas lógico-racionais. Seu valor depende então da força expansiva desses gases, em função do prestígio de quem os lança no mercado.
7. Premissa do crime
Ora, a premissa do crime é o fato social. Não é a tipicidade, nem a injuricidade, nem a culpabilidade. O crime já existia, na face do planeta, sem que essas expressões fossem inventadas. Povos cultos e civilizados, mesmo nos dias de hoje, conseguem fabricar seus delitos sem que seus mais eminentes dogmatas sequer conheçam o significado nuclear dessas mágicas palavras do moderno direito penal.
Nem mesmo nós, no Brasil, chegamos a nos entender no assunto, o que não é de causar espanto. As palavras, afinal, significam o que se espera que elas signifiquem, seja para quem fala, seja para quem escuta. Ninguém escapa à tentação (para evitar-se o termo incompetência) de acrescentar seu condimento preferido na retransmissão da receita. Um condimento que se pretende coincidente com a norma legislada ou com os princípios avançados de justiça e eqüidade.
A premissa do crime é o fato social porque é este que sintetiza a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade, sem que a recíproca se mostre verdadeira. É o fato social que controla e catalisa a punibilidade, marca registrada do crime ou delito. Fato social, ou seja: atitude, comportamento ou realidade intrinsecamente coativos ou persuasivos na vida de relação dos indivíduos. Com palavras muito simples podemos então afirmar que delito ou crime é o fato ou conduta humana suscetível, em tese, de pena, segundo a vontade política de algum intérprete com poder decisório, no contexto das circunstâncias históricas.
Como fenômeno jurídico (ou antijurídico, pouco importa) depende o crime, para subsistir, da resistência que lhe opõe a ordem social estabelecida. Matar índios, em princípio, é crime entre os índios, mormente se pertencem à mesma tribo. Matar índios é serviço à comunidade no período de implantação e expansão de colônias européias no Novo Mundo.
Haveria seqüestro, entre nós, na confinação forçada de dissidente político em hospital psiquiátrico? Na antiga U.R.S.S., ao que parece, a resposta seria diferente, como diferentes seriam as milhares de respostas a situações que apenas variam em razão de hora, lugar, protagonista e intérprete.
Já que se falou em seqüestro, convém mencionar nossa prioridade reverencial: o delinqüente que se encantar com a beleza dos olhos de uma criança e arrancá-la dos braços e convívio dos pais. Gostamos de eufemismos: crime de subtração de incapazes (CP, art. 249), conseqüência inevitável do garantismo constitucional inerente ao nullum crimen, nulla poena sine lege. Uma subtração que, às vezes, prevalece até mesmo sobre o tipo específico do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 237).
As penas desse artigo 237, por sinal, em confronto com as penas do artigo 159 do Código Penal vigente (extorsão mediante seqüestro), também deixam transparecer nosso profundo respeito e fascínio pelo transgressor. A função pedagógica da norma consiste em neutralizar o egoísmo de pais e avós que não percebem a nobreza de caráter de quem oferece à criança um lar substituto.
Veja-se agora a lesão corporal. Vale para uns, não vale para outros. Na Itália do século 16, como lembram William Mann e James Galway, as mulheres eram proibidas de cantar no palco ou até mesmo em coros. Era rigidamente seguida a máxima de São Paulo 'Que as vossas mulheres guardem silêncio nas igrejas'. E acrescentam: “A voz castrato desenvolveu-se gradualmente para resolver esse problema e provou ser tão poderosa e flexível que os infortunados possuidores de tais vozes eram procurados em grande parte na Europa. A prática cruel da castração foi usada desde 1565, na Capela Sixtina de Roma, e era comum desde 1574 em Munique, no tempo em que Lassus lá viveu”. E foi somente no século 20, em 1922, que teria morrido o último dos castrati. (A música no tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 71).
O que acabou de ser dito já se encontra consignado no capítulo introdutório de um compêndio (inédito) sobre os crimes de perigo individual (Florianópolis: 2007).
Vejam-se ainda outras situações, igualmente extraídas, por sua pertinência, desse capítulo introdutório. O tema nos leva, ao longo da história, a outra espécie de mutilados, os eunucos dos haréns e palácios; às deformações “estéticas” dos pés femininos e de outras partes do corpo humano; às mutilações no aparelho genital (clitóris e grandes lábios); aos duelos tolerados ou permitidos; à instituição da tortura; ao trabalho exaustivo e perigoso de adultos e crianças. Em suma, às práticas sociais – inclusive no âmbito penal e processual – irremediavelmente lesivas ao corpo e à dignidade do homem.
Ironias à parte, e voltando à realidade, a estrutura jurídica do crime se prende à interação dialética entre lei, ideologia e intérprete. E as contradições que emergem dessa interação tornam ridículas as inúmeras tentativas de aprisionamento dogmático do crime em sua forma e conteúdo.
Entretanto, verdades tão banais se relegam a segundo plano nos livros de direito penal ou se reputam reservadas à pesquisa histórico-sociológica. Descobre-se que ao penalista cabe penetrar na estrutura ou essência jurídica do crime, auxiliado ou não pelo legislador. É assim que figuras como o estado de necessidade, legítima defesa, exercício de direito e cumprimento do dever ganham ares de autonomia ontológica perante os fatos do homem, os mesmos fatos que lhes fornecem, nada obstante, a mais concreta e tangível juridicidade ocasional. No arranha-céu dos dogmatas até o vazio das paredes se transforma em estrutura. E como ele é invisível, resiste com altivez camaleônica às mais disparatadas transformações da sociedade e do indivíduo, desde tempos imemoriais.
8. Lógica do conteúdo
Ao lado de tantas outras, a teoria finalista da ação, ainda em moda na dogmática jurídico-penal, não passa de mais um engodo metafísico ofertado e aceito por quem parece desconhecer que ela se aplica em qualquer época e sob qualquer regime político, por mais despótico e cruel, porquanto destituída de conteúdo e desvinculada de fundamento ético transcendental. Nos tempos do Império, por exemplo, ao invés de combater a escravidão, justificaria dogmaticamente a condenação de quem prestasse fuga a um escravo. O auxílio à fuga, voluntário e finalista, esgotaria os limites de sua piedosa formulação.
Impressiona também notar que penalistas de formação democrática, obcecados no entanto com a lógica da teoria, advoguem a exigência, no Código Penal, da consciência do exercício de direito para o reconhecimento da respectiva excludente de crime (art. 23, III). Não basta, por exemplo, o uso moderado da violência física na imediata recuperação da posse turbada ou esbulhada (Código Civil, art. 1210). O refinamento ético de nossa dogmática penal chegou ao ponto de distinguir entre acusados cultos e incultos, entre letrados e analfabetos. O sujeito não se livraria de uma condenação se confessasse, em juízo, que agiu no pressuposto de praticar um ilícito (vias de fato ou lesões corporais leves, por exemplo).
O viés subjetivo é reputado comum às demais excludentes de crime ou causas de justificação: estado de necessidade, legítima defesa e estrito cumprimento de dever legal. E isso ocorre até entre os que se dizem adeptos da moderna teoria da imputação objetiva, notoriamente ancorada à inocorrência de crime na hipótese de risco permitido. Onde a coerência?
Pois bem – conforme consignado em texto mais antigo – embora se saiba que, na vida prática, no mundo forense, quase não se discute a matéria em pauta, há de convir-se que a exigência da consciência de agir em estado de necessidade, legítima defesa e, de modo muito particular, no cumprimento do dever legal ou no exercício de direito, atende a preconceitos religiosos e, não, aos interesses práticos da comunidade. O jogo democrático não pode permitir riscos dessa natureza. Quando se autoriza o Estado a punir o simples pensamento, independentemente do saldo positivo do gesto cometido; ou, sob outro aspecto, quando se aumenta, com a severa ameaça da lei, o grau de tensão psicológica dos que enfrentam as situações atinentes às figuras em pauta, força é concluir que já não mais se legisla com prudência, mas, ao contrário, apesar das boas intenções, com a mentalidade de ultrapassadas épocas. O aperfeiçoamento do direito penal tem pouco a ver com a proliferação de medidas legislativas dosimétricas que se façam acompanhar de perigosíssimos efeitos colaterais em relação ao grupo. As excludentes da criminalidade são sérias demais para permitirem, com ou sem presunções jurídicas, o congestionamento ou desvio dos debates no foro. A lei deve simplificar e, não, complicar (Le raisonnment du juriste: contribution à l'étude critique de la dogmatique pénale. Bruxelas, ed. do autor, 1982, p. 152).
De passagem, e apenas como registro, lembro que eminente penalista, Raúl Zaffaroni, sustenta agora que as causas de justificação são meramente objetivas, não importando que o sujeito ignore o que estava ocorrendo no momento de agir. E continua: “Ainda que seja por mera causalidade, se o conflito for resolvido, o poder punitivo nada tem a fazer no caso; toda intervenção sob este pressuposto parece não ter outro objetivo que o de um direito penal moralizante e, por fim, não liberal” (Prefácio de Teoria do injusto penal, de Juarez Tavares. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 14).
Se bem que por outras vias, Raúl Zaffaroni se alinha a Roberto Lyra Filho e Luiz Vicente Cernicchiaro (Compêndio de direito penal. São Paulo: José Bushatsky, 1973, p. 128); Edgard Magalhães Noronha (Direito penal, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 202 e 207); José Frederico Marques (Tratado de direito penal, v. 2. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 102-105 e 110); Nélson Hungria (Comentários ao código penal, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 431; 452-453; 458).
De seu turno, pelo menos em relação à legítima defesa, René Ariel Dotti parece contentar-se com sua faceta objetiva. Dentre vários autores estrangeiros, transcreve o exemplo de Antolisei: não comete crime quem acredita estar praticando uma ação ilícita, mas, em verdade, exercita um direito (Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 387). Lembra também que a controvérsia não está encerrada. Há os que invocam o princípio constitucional da legalidade exatamente para ver assegurado, sem cortes e restrições, o texto do Código Penal, art. 25, atinente à legítima defesa (p.388).
Eis o desabafo de José Cirilo de Vargas: “O animus deffendendi é absolutamente estranho ao Direito brasileiro. É simplesmente o resultado do nefasto colonialismo cultural” (Instituições de direito penal: parte geral, t. 1. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 339).
9. Teoria correta.
Qual a teoria correta?
Ora, toda teoria jurídica vale por si mesma, na razão direta de seu egocentrismo, de sua autocontemplação, de sua estéril fecundidade, sempre igual a si própria, repetitiva e cansativa no eco monótono de seu enunciado unilateral. O que conta, no direito, não é a forma nem a idéia, e sim, a forma e a idéia que se fizeram acompanhar de atitudes efetivamente tomadas pelo homem e pela sociedade, na senda e ao longo da história.
A história do direito penal, de sua parte, em sua facticidade normativa, tem dispensado a teoria finalista da ação (e muitas outras) e pode, ainda, continuar sem ela. Os homens que constroem o direito – os homens e os grupos sociais, as sociedades e as nações – necessitam igualmente de espírito crítico para perceber a importância e a preponderância de valores mais elevados, inteiramente libertos, nessa autoconsciência, de um simples “fazer de conta” manipulador de vontades frágeis e inteligências imaturas. Não é com mentiras ou enganos, destruidores, justamente, desse espírito crítico, que se reconstruirá para melhor a correta visão do direito penal, camuflada em nossos dias pela busca de maior “tecnicidade” na conformação estrutural do crime e da pena.
Na lógica do direito o conteúdo prevalece, altaneiro, sobre a forma, ou deveria prevalecer, quando equacionado com retidão. Os apelos da sociedade estão aí, para quem quiser ouvi-los; o homem do povo continua por perto, mostrando pelo avesso os desacertos de legislações arbitrárias e auto-suficientes; fervilham ainda os fermentos da incompreensão, da indiferença e do comodismo.
Por outro lado, a pluralidade do fenômeno jurídico-penal requer um posicionamento realista que nos convide a refletir sobre nossas próprias potencialidades, no que tange à mudança. Também o penalista precisa conscientizar-se da necessidade de um enfoque crítico-sociológico do direito, capaz de redespertá-lo do marasmo do idealismo jusnaturalista e do positivismo legal, hauridos que são em fontes ilusórias. E a constatação empírica e realista de um direito penal essencialmente contraditório está a implicar uma correspondente revisão metodológica em termos de apreensão, estudo e retransmissão acadêmica, inclusive no que concerne à essência do delito e finalidade da pena.
Alguns exemplos? Pois bem, aqui se tratou do sentido e alcance das causas de justificação. Limitemo-nos então às hipóteses de embriaguez e legítima defesa, constantes de Código Penal e sua interpretação judicial, 7ª ed., sob a coordenação de Alberto Silva Franco e Rui Stoco. São Paulo: RT, 2001, p. 413/414:
“O estado de embriaguez, subtraindo do agente a plena integridade de suas faculdades psíquicas, é incompatível com a legítima defesa, que pressupõe a consciência do exercício de um direito” (TJSP – AC – Rel. Antônio Chaves – RT 375/79).
“Não há falar em legítima defesa da honra em relação a ébrio que, ante expressões desabonadoras, desfere pontapé contra ofensor. Na embriaguez não há condições para conscientização do ultraje e seu relacionamento com a honra, a justificar repulsa. O que prevalece é o instinto agressivo liberado pelo álcool” (TACRIM – SP – AC – Rel. Manoel P. Pimentel – JUTACRIM 18/170).
Em sentido contrário:
“O ébrio, como outrem, tem todo o direito de se defender. O fato de ser ébrio ou de encontrar-se alguém alcoolizado não obsta a esse direito, nem (torna) ilegítima sua ação, se exercitada dentro dos limites legais” (TJSP – Rec. – Rel. Silva Leme – RT 599/327 e RJTSP 89/359).
“Não há incompatibilidade entre a legítima defesa e a embriaguez. O fato de achar-se o réu embriagado não o impede de legitimamente defender-se” (TJSP – AC – Rel. Tomaz Carvalhal – RT 396/113).
Nota-se que nem sempre os nossos magistrados se alinham às revoluções conceituais ou programações de sistema de caráter universal. Todos e cada um, aliás, se supõe que julguem de acordo com sua própria consciência e maneira pessoal de apreensão do direito. Em outras palavras, constroem esse direito em estilo e conteúdo possivelmente contraditórios. É que a lógica jurídica, especialmente a judiciária, não se apresenta como uma lógica formal – ensina Chaïm Perelman – mas como “uma argumentação que depende do modo como os legisladores e os juízes concebem sua missão e da idéia que têm do direito e de seu funcionamento na sociedade” (Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 243).
10. Dogmática ético-social
Na lição de Norberto Bobbio, a ciência consiste na descrição avaliatória da realidade. Fora desse esquema, no âmbito jurídico, “não se fará ciência, mas filosofia ou ideologia do direito” (O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 238).
Que ninguém fuja da realidade. O penalista que se preocupa ainda, quase que exclusivamente, com os segredos e mistérios de uma duvidosa estrutura universal do crime, presta um desserviço a seu País na medida em que afasta os mais jovens de importantes questões convergentes de natureza ético-social. Assume ao contrário postura relevante ao advogar a preeminência destas últimas, em que se inclui, se possível, a dogmática do consenso, postulada no entrechoque das idéias e praticada efetivamente no interminável processo de busca e procura de uma verdade inatingível no seu todo.
Sim, teorias despontam por aí, e até com alguma virtude, quando procuram aproximar o direito penal e processual às conquistas culturais de respeito à dignidade e liberdade do homem. Merecem por isso uma certa consideração. O problema é acreditar que se apresentem com eficiente clareza terminológica que iniba ou dispense o desdobramento do tema em novas distinções e questionamentos.
Na prática, o intérprete é que assume o comando; e o fará, como sempre, a partir de si mesmo, de seu modo pessoal e insubstituível de percepção dos fatos e do direito que repute aplicável.
Não há teoria suficientemente translúcida em seus cânones e proposições a ponto de superar a vagueza e ambigüidade inerente a qualquer sistema normativo. Não há teoria capaz de elidir a subjetividade interpretativa de cada operador jurídico. Não há teoria em condições de revogar a dinâmica social das estruturas políticas e econômicas. Não há teoria que possa desfazer as raízes ou categorias históricas de efetiva construção do direito: força, poder, vontade, liberdade.
O crime ultrapassa o penalista. Reconhecer essa evidência somente incomoda a quem se habituou às próprias ilusões e teme enfrentar a dispersão de uma platéia convencida, enfim, da reversão dos papéis, no verdadeiro e único espetáculo da vida.
Florianópolis (SC), 11 de novembro de 2007.
Referências bibliográficas:
BASTOS, João José Caldeira. Crimes de perigo individual: interpretação do código penal e anotações crítico-metodológicas. Inédito. Florianópolis: 2007.
Curso crítico de direito penal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998.
Le raisonnement du juriste: contribution à l’étude critique de la dogmatique pénale. Bruxelas: ed. do autor, 1982.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito (trad.). São Paulo: Ícone, 1995.
DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (coords.). Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, 7ª ed. São Paulo: RT, 2001.
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1958.
LYRA FILHO, Roberto; CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Compêndio de direito penal. São Paulo: José Bushatsky, 1973.
MANN, William; GALWAY, James. A música no tempo (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1987.
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. 2. São Paulo: Saraiva, 1965.
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1978.
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
VARGAS, José Cirilo de. Instituições de direito penal: parte geral, t. 1. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. In: Teoria do injusto penal (prefácio), de Juarez Tavares. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
Professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BASTOS, João José Caldeiras. Estrutura jurídica do crime: forma e conteúdo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jan 2009, 10:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/16237/estrutura-juridica-do-crime-forma-e-conteudo. Acesso em: 23 dez 2024.
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