A Lei n. 9.426, de 24 de dezembro de 1996, deu nova redação ao art. 180, caput e § 1.º, do Código Penal, definindo o crime de receptação:
"Art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte" (sublinhado nosso):
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1.º Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime" (sublinhado nosso):
"Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa.”
A doutrina, apreciando as diversas normas incriminadoras que empregam elementos subjetivos do tipo, é tranqüila no sentido de que a elementar sabe é indicativa de dolo direto. Quanto à expressão deve saber, existem duas posições:
1.ª – Trata-se de dolo eventual (CELSO DELMANTO e PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR);
2.ª – Significa culpa (NÉLSON HUNGRIA, MAGALHÃES NORONHA e HELENO CLÁUDIO FRAGOSO).
Consideramos que as expressões sabe e deve saber são, na verdade, elementos subjetivos do tipo distintos do dolo e da culpa. Dolo é a vontade de concretizar os elementos objetivos do tipo, inserindo-se no plano da volição. Na receptação, v. g., corresponde à vontade de adquirir, receber ou ocultar o objeto material. Algumas vezes, entretanto, para haver crime, o legislador acrescenta no tipo um especial estado anímico do autor: que saiba ou deva saber, referindo-se ao conhecimento pleno ou parcial da situação de fato (certeza e incerteza). Esses elementos típicos não estão situados no plano da vontade, pertencendo ao intelecto. Nada têm a ver, pois, com o dolo, seja direto ou eventual, ou com a culpa.
Sob o aspecto da exigência de dolo, culpa e elemento subjetivo do tipo, o crime de receptação, antes da reforma de 1996, de acordo com a nossa posição, era classificado em três formas:
1.ª – Dolosa, acrescida do elemento subjetivo do tipo sabe, que a doutrina introduzia no dolo direto (caput do art. 180). O receptador “sabia” que a coisa era produto de crime. Corresponde ao a sabiendas dos estatutos penais ibero-americanos (“com pleno conhecimento”);
2.ª – Dolosa, com o elemento subjetivo do tipo deve saber, que os doutrinadores ligavam ao dolo eventual (ou à culpa). Incluía-se na receptação culposa (§1.º da antiga redação do art. 180), de acordo com a jurisprudência prevalente, tendo em vista que inexistia descrição de figura com a elementar deve saber[1]. O receptador “devia saber” que o objeto material advinha de crime. Agia na dúvida, não tendo certeza de que a coisa tinha origem delituosa;
3.ª – Culposa (§ 1.º): o agente adquiria ou recebia coisa que, diante de certas circunstâncias, “devia presumir-se obtida por meio criminoso”. Note-se que a lei fala em devia presumir-sedevia presumir, o que conduziria a um critério psicológico, subjetivo, mais condizente com o dolo.
(critério normativo) e nãoOs três casos eram e são, para nós, bem distintos.
No primeiro (sabe), há plena certeza da origem delituosa da coisa (BENTO DE FARIA, GALDINO SIQUEIRA, NÉLSON HUNGRIA, MAGALHÃES NORONHA e HELENO CLÁUDIO FRAGOSO). Nessa hipótese, diz a jurisprudência, “entende-se não uma vaga noção que oscila entre a suspeita e a certeza, mas, sim, a plena certeza da origem ilícita das coisas receptadas. A suspeita e a dúvida não bastam”[2]. Empregando a interpretação gramatical, a expressão sabe, na literatura, leva ao pleno conhecimento: “sabe fiscalizar todo o serviço”[3], “ele sabe manejar garrucha”[4], “Augusto sabia construir corsários”[5], significando pleno conhecimento da fiscalização, do manejo de arma e da construção de navios [6].
No segundo (deve saber), a origem ilícita do objeto material passa pela mente do sujeito, porém subsistem dúvida, incerteza, insegurança. Para nós, o deve saber é interpretado em sentido estrito, como convém ao processo de adequação típica, não envolvendo pleno conhecimento e sim probabilidade. Como ensina JOÃO DE ALMEIDA, a construção com o verbo dever mais infinitivo, “quando serve à categoria modal da possibilidade, traduz essencialmente a noção da probabilidade”[7]. Ele deve saber quer dizer “é provável que ele saiba”, mas não conduz à crença de seu conhecimento, como na elementar sabe. A consciência de a coisa ser produto de crime sai do plano do dever, obrigação, para revestir-se de característica hipotética: “em face das circunstâncias, ele devia ter pleno conhecimento da proveniência ilícita do objeto material”, mas não se sabe com certeza se tinha ou não. Utilizando-se a interpretação gramatical, a literatura traduz essa probabilidade: “Prenda o primeiro que encontrar, se possível os três. Já devem estar bêbados” [8], “Achei que deviam ser ricos”[9], “Devia pois estar pronta para sair”[10], “Para vir na companhia de Augusto, que deve passar o dia conosco”[11]. Nas quatro situações, não se tem certeza de que as pessoas efetivamente estejam bêbadas, sejam ricas, estavam prontas para sair, ou de que Augusto realmente passará o dia inteiro conosco: parece que sim, tudo leva a crer que sim. Não há, porém, certeza absoluta.
No terceiro, na forma culposa, a ilicitude da proveniência da coisa não passa pela mente do receptador. Ele, entretanto, a adquire, recebe ou oculta sem o devido dever de diligência.
Nesse contexto, em face das inovações na descrição do crime de receptação introduzidas pela Lei n. 9.426/96, entendemos que:
1. o sabe do caput indica conhecimento pleno da origem ilícita da coisa;
2. o deve saber (§ l.º) indica incerteza: o receptador não sabe, não tem certeza de que o objeto material é produto de crime, agindo na dúvida. Para ele, pouco importa que a coisa tenha ou não origem ilícita. É por isso que a doutrina liga a expressão ao dolo eventual;
3. a cláusula “coisa que deve presumir-se obtida por meio criminoso” (§ 3.º) contém modalidade culposa.
Os três casos, tratando de elementos do tipo (os dois primeiros, subjetivos; o terceiro, normativo), apresentam uma graduação da censurabilidade da conduta (escala normativa), partindo da forma típica mais grave (sabe), passando pela intermediária (deve saber) e descendo à menos reprovável (culpa). Nas duas primeiras hipóteses, quando o legislador reúne em tipo único o sabe e o deve saber, o Juiz considera, para fixar a pena concreta, ter o sujeito agido com conhecimento pleno ou parcial da situação de fato ou jurídica (sabendo ou devendo saber) ou com simples culpaftn[12].
O § 1.º do art. 180 do Código Penal, com redação da lei nova, descrevendo crime próprio, pune o comerciante ou industrial que comete receptação, empregando a expressão “que deve saber ser produto de crime”. Como o caput prevê o conhecimento pleno (“coisa que sabe ser produto de crime”), que a doutrina e a jurisprudência conectam ao dolo direto, e o § 3.º descreve a forma culposa, o § 1.º só pode tratar de crime doloso com o chamado conhecimento parcial da origem ilícita da coisa (dúvida, insegurança, incerteza), que a doutrina liga ao dolo eventual (ou à culpa). Se o § 1.º definisse modalidade culposa, a figura típica nele contida não teria sentido em face do § 3.º, que enuncia o crime culposo. Dessa forma, de acordo com a lei nova, se o comerciante devia saber que a coisa era produto do crime (dúvida, incerteza, desconfiança, dolo eventual), a pena é de 3 a 8 anos de reclusão (§ 1.º). E se sabia, i. e., se tinha pleno conhecimento? O fato não se encontra especificamente descrito no caput e nem no § 1.º.
Haverá, no mínimo, cinco orientações:
1.ª – Se o comerciante ou o industrial, presentes as elementares do tipo, sabia que o objeto material era produto de crime, responde por receptação dolosa própria (caput do art. 180), levando-se em conta que o § 1.º só prevê o devia saber. Se sabia o fato é atípico diante do § 1.º, que exige o elemento subjetivo do tipo deve saber (princípio da legalidade ou de reserva legal). Se não sabia, embora devendo saber, aplica-se o § 1.º;
2.ª – O fato é absolutamente atípico, uma vez que o crime próprio de receptação de comerciante ou de industrial se encontra descrito no § 1.º, que não prevê o elemento subjetivo do tipo sabe. Assim, o fato não se enquadra no caput e nem no § 1.º;
3.ª – O fato adequa-se ao § 1.º, que abrange o sabe (dolo direto para a doutrina) e o deve saberdeve saber), não seria crível que o de maior gravidade (sabe) fosse atípico ou punido com pena menor (1 ano de reclusão). O deve saber não pode ser entendido como indicativo somente de dolo eventual, de dúvida ou incerteza, significando que a origem criminosa do objeto material ingressou na esfera de consciência do receptador, abrangendo o conhecimento pleno (sabe) e o parcial (dúvida; desconfiança);
(dolo indireto eventual): se a lei pune o fato menos grave com o mínimo de 3 anos de reclusão (4.ª – O tipo do § 1.º deve ser totalmente desconsiderado porque ofende o princípio constitucional da proporcionalidade: se aplicado, sabendo o comerciante ou o industrial que a coisa origina-se de crime (delito mais grave), a pena é de 1 a 4 anos de reclusão (caput do art. 180); devendo saber (infração de menor gravidade), de 3 a 8 anos (§ 1.º). De modo que, consciente da origem delituosa do objeto material, responde por receptação dolosa própria (caput do art. 180); se devia saber aplica-se a forma culposa (§ 3.º), conforme pacífica jurisprudência anterior à lei;
5.ª – Concorda com a posição anterior, desconsiderando, contudo, somente o preceito secundário do § 1.º do art. 180, permanecendo a definição do crime próprio do comerciante (preceito art. 180), permanecendo a definição do caput; se devia saber, adequa-se o fato ao §1.º, com a pena do caput, cortando-se o excesso. A diferenciação pessoal e subjetiva é considerada pelo Juiz na fixação da pena concreta.
A primeira orientação não pode ser aceita. Se o comerciante sabia, a pena é do 1 a 4 anos de reclusão; se devia saber, de 3 a 8 anos. O fato menos grave é apenado mais severamente.
A segunda posição carece de fundamento. A afirmação de que a conduta, consciente o comerciante ou o industrial da origem ilícita do objeto material, é absolutamente atípica, despreza o processo de atipicidade relativa: é atípica em face do § 1.º (delito próprio), porém a incriminação subsiste diante da redação prevista no caput (crime comum). A ausência da elementar desloca a adequação típica para outra figura.
O terceiro posicionamento desrespeita o princípio da tipicidade, uma vez que não distingue o sabe do deve saber. O deve saber, para essa orientação, inclui o sabe, o que é de todo improcedente, uma vez que constitui tradição de nossa doutrina, como vimos, ligar o deve saber
ao dolo eventual ou à culpa, categorias psicológico-normativas de censurabilidade menor.A quarta orientação somente peca porque desconsidera totalmente o § 1.º.
Preferimos a quinta orientação, para nós a menos pior, tendo em vista que a lei nova veio para confundir, não para esclarecer: o preceito secundário do § 1.º deve ser desconsiderado, uma vez que ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização legal da pena. Realmente, nos termos das novas redações, literalmente interpretadas, se o comerciante devia saber da proveniência ilícita do objeto material, a pena é de reclusão, de 3 a 8 anos (§ 1.º); se sabia, só pode subsistir o caput, reclusão de 1 a 4 anos. A imposição de pena maior ao fato de menor gravidade é inconstitucional, desrespeitando os princípios da harmonia e da proporcionalidade.
A Constituição Federal, no art. 5.º, XLII e XLIV, determina que a prática do racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, constituem crimes inafiançáveis e de pretensão punitiva e executória imprescritível, impondo-se reclusão. São também inafiançáveis e insuscetíveis de indulgência soberana a tortura, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo e os crimes hediondos (XLIII). No art. 227, § 4.º, a Carta Magna impõe o dever de a lei punir severamente o abuso, a violência e a exploração da criança e do adolescente. Arrolando as proibidas (XLVII), apresenta uma relação de penas criminais permitidas, das mais graves às mais leves (XLVI), determinando sua individualização legislativa, judicial e executória (XLVI). E no art. 98, I, prevê a criação dos Juizados Especiais Criminais, permitindo a transação penal nos casos de “infrações de menor potencial ofensivo”. Vigora, pois, como princípio expresso, o da individualização da resposta penal, determinando uma graduação de severidade da pena em face da prática de crime. Do contexto, extrai-se a regra da proporcionalidade: para os crimes mais graves, penas e conseqüências severas; para as infrações penais de menor potencial ofensivo, respostas mais brandas. E esse princípio conduz a outro, o da harmonia legislativa: na descrição das infrações penais e na cominação das sanções, o legislador deve guardar o sentido da concordância, da conformidade e da igualdade. “Concebida como expressão de poder”, observa JUAREZ TAVARES, “a pena deve guardar uma relação proporcional com o dano produzido pelo delito”, devendo o legislador imprimir “congruência nas cominações”[13]. Como dizia HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, “o legislador é obrigado a manter a lógica interna do sistema que ele estabelece na cominação das penas”[14]. Devem, pois, ser respeitadas a “harmonia valorativa e a racionalidade”, na palavra de RAQUEL DENIZE STUMM, obedecidos “parâmetros limitadores” que refletem “a unidade de sentido da ordem jurídica” [15].
Considera-se, na individualização legislativa ou legal da pena, princípio expresso na Carta Magna, especialmente o desvalor da ação e não do resultado. O homicídio doloso é apenado mais severamente do que o culposo não por causa do resultado, que é o mesmo nos dois tipos, mas em face do desvalor da ação: a conduta dolosa é mais censurável do que a culposa. Eleva-se a vontade como elemento norteador da cominação quantitativa das sanções penais. E não só a vontade, como também eventuais elementos subjetivos do tipo. Assim, no delito de rapto (Código Penal, art. 219) é cominada pena maior do que a imposta ao seqüestro (art. 148) em face da presença do elemento subjetivo do tipo “para fim libidinoso”, que não se insere no terreno do dolo. Assim, como diz JOSÉ CEREZO MIR, o desvalor da ação nos delitos dolosos também vem determinado pela presença de eventuais elementos subjetivos do[16]. Na verdade, como diz ALBERTO SILVA FRANCO, o princípio da reserva legal, que comanda os cânones constitucionais, encerra todos os elementos da conduta, vinculando-se à exigência da responsabilidade subjetiva[17]. Além disso, leva-se em conta a gravidade objetiva do fato, razão pela qual o estupro é delito hediondo, considerado de extrema gravidade e sujeitando o autor a acentuadas conseqüências, enquanto a importunação ofensiva ao pudor configura simples contravenção, ensejando sanções alternativas e composição penal. As duas hipóteses são dolosas. A gravidade do fato, entretanto, é diversa. Assim, como observa NICOLAS GONZALEZ-CUELLAR SERRANO, são conjugados o “conteúdo do injusto”, que corresponde “a gravidade do delito cometido”, e “a maior ou menor reprovabilidade de seu autor”[18]. E essa censurabilidade do sujeito ativo do crime é considerada não somente na fase da imposição concreta da pena. O legislador, na elaboração da descrição do delito, leva em conta, muitas vezes, a qualidade do autor, como são as hipóteses de causas de aumento de pena e circunstâncias agravantes relacionadas com a função, profissão, atividade etc. (médico, funcionário público etc.).
A elaboração da norma penal incriminadora não pode subtrair-se à obediência aos preceitos constitucionais. Cumpria, pois, à Lei n. 9.426/96 ter como parâmetro o princípio da proporcionalidade entre o fato cometido e a gravidade da resposta penal, pois é nesse momento, o da individualização legislativa da pena (Constituição Federal, art. 5.º, XLVI), que a proporcionalidade apresenta fundamentalmente a sua eficácia[19].
A legislação penal brasileira tem empregado as elementares sabe (ou sabendo) e deve saber (ou devendo saber) em várias disposições: no Código Penal, nos arts. 130, caput; 138, § 1.º;174; 245; 316, § 1.º; 324; 334, § 1.º, “c” e “d”, 339 e 340; na Lei de Imprensa, no art. 20, § 1.º; no Código de Defesa do Consumidor, nos arts. 67, 68 e 73; na Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária (art. 1.º, IV, da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e assim por diante. Qual é a conduta mais censurável: de quem sabe ou de quem deve saber? Inegavelmente, de quem sabe, uma vez que tem conhecimento perfeito da situação de fato. Na receptação, tem plena consciência do elemento normativo (produto) “de crime”. Jáquem deve saber não tem certeza a respeito da situação típica. Tanto que, para alguns, age com culpa. Na receptação, é incerto, duvidoso o seu conhecimento a respeito da origem delituosa do objeto material, ou o adquire, como entende parte da doutrina, com falta de cuidado. Em face disso, quando a norma insere as duas expressões em tipo unitário, como ocorre no art. 130, caput, do Código Penal, embora a pena abstrata seja a mesma, compete ao Juiz, em face do desvalor da ação, fixá-la concretamente considerando ter o sujeito agido “conhecendo” (sabendo) a situação de fato ou “devendo conhecê-la” (devendo saber). Se, em crimes conexos cometidos em concurso, um réu sabia e o outro devia saber, a pena concreta do primeiro deve ser maior que a do segundo.
Se a pena, abstrata ou concreta, de quem sabe, é mais censurável do que a do sujeito que devia saber, sendo comum no sistema da legislação penal brasileira descrever as duas situações subjetivas no mesmo tipo, não podia a Lei n. 9.426/96, ferindo o princípio da proporcionalidade, inserir o devia saber, de menor censurabilidade, em figura autônoma (§ 1.º), com pena de 3 a 8 anos de reclusão, subsistindo o sabia, de menor reprovabilidade, no caput, com pena de 1 a 4 anos. A proporcionalidade, que indica equilíbrio, foi ferida. Não se observou, na palavra de SUZANA DE TOLEDO BARROS, a idéia “de relação harmônica entre dois valores”[20]. Se a lei nova, fugindo do sistema, desvinculou o deve saber do sabe, colocando-os em dois tipos autônomos, a pena abstrata do deve saber não podia ser mais grave do que a do sabe. Como diz ASSIS TOLEDO, “a questão do tamanho de uma pena criminal não pode ser solucionada de modo empírico, isolado, em desacordo com o sistema de penas adotado” [21].
O dolo e a culpa, na reforma penal de 1984, passaram a integrar o tipo, retirados da culpabilidade. Por isso, o art. 59 do Código Penal, ao prever os critérios diretivos do Juiz na fixação da reprimenda, não faz referência à “intensidade do dolo” e ao “grau da culpa”[22]. Se fizesse, esses dados atuariam duas vezes na cominação da resposta penal: 1.ª – na fase da individualização legislativa da pena abstrata; 2.ª – na individualização judicial da pena concreta. O mesmo ocorre com outros elementos subjetivos do tipo. Como ensina MUÑOZ CONDE, “o que não se pode fazer é querer introduzir” um mesmo dado “em duas categorias sistemáticas distintas, pois, então, para que servem as classificações e disposições sistemáticas?”[23]. Em alguns casos, entretanto, quando o legislador insere na mesma figura típica incriminadora elementos subjetivos de valores desiguais, a solução foge à regra: é imperativo, na fixação da pena, analisar “a intenção que emerge do fato”, como recomenda o art. 46, § 2.º, do Código Penal alemão. Se a lei insere as elementares sabe e deve saber em tipo incriminador unitário, como o faz no art. 130, caput, do Código Penal, comina a mesma pena abstrata nas duas hipóteses, cumprindo ao Juiz diversificar as diferenças subjetivas na sentença. Então, embora esses elementos subjetivos estejam contidos no tipo, o Juiz não pode fugir ao dever de verificar a presença de um ou de outro para dosar a pena, noção que se aproxima da doutrina de LUIZ FLÁVIO GOMES, para quem o dolo, que também é um elemento subjetivo do tipo, cumpre dupla função: integra o tipo e atua na censura da culpabilidade[24]. Se, contudo, o legislador pretende descrever um daqueles elementos em figura típica autônoma, não pode deixar de observar o princípio da harmonia na cominação das penas, devendo impor em abstrato quantidades diferentes para situações psicológicas diversas, em função da maior ou menor censurabilidade da conduta subjetiva.
A situação mostra-se mais absurda para quem entende que a expressão deve saber indica culpa. Estaria o legislador cominando pena de 3 a 8 anos de reclusão no caso de crime culposo e de 1 a 4 na hipótese dolosa.
Dir-se-á que o tipo do § 1.º é próprio do comerciante ou do industrial: por isso a pena é maior. Sim, desde que a disposição contivesse a cláusula sabe.
Se o fato de menor gravidade subjetiva, em face da redução da censurabilidade da conduta, é apenado mais ou severamente do que o de maior reprovabilidade, cumpre ao intérprete cortar o excesso (“teoria da proibição do excesso” ou da “redução teleológica”). Como vimos, o sistema criminal, sob o comando dos princípios constitucionais da legalidade e da proporcionalidade, impõe harmonia na dosimetria abstrata e concreta da pena. E, como diz RAQUEL DENIZE STUMM, “uma lei infraconstitucional que contradiga um princípio constitucional é inválida”[25], cabendo ao exegeta e ao aplicador da lei, na lição de ALBERTO SILVA FRANCO, “tanto quanto e precedentemente ao legislador, obviar o absurdo, afastar o paradoxo”[26]. O Juiz, ensina RAÚL CERVINI, “deve prescindir da pena ou impô-la abaixo do limite legal quando ela se mostra manifestamente excessiva”. “Cabe-lhe” – prossegue – “aplicar pena inferior à estabelecida para determinado delito se do contexto geral do corpo normativo resultar o entendimento inequívoco de que a mesma conduta é castigada em outro lugar com uma penalidade menor”[27].
Sugerimos que o preceito secundário do § 1.º do art. 180 seja desconsiderado, permanecendo, entretanto, a figura do crime próprio (preceito primário). De modo que:
1.º – se o comerciante sabia da origem criminosa do objeto material, aplica-se o caput do art. 180 (preceitos primário e secundário);
2.º – se devia saber, o fato se enquadra no § 1.º (preceito primário), com a pena do caputdeve saber está descrito e contém conduta subjetiva mais grave do que a simples inobservância do cuidado objetivo necessário.
(preceito secundário). Não nos socorremos da forma culposa, uma vez que oCorta-se o excesso (de 3 a 8 anos de reclusão), reduzida a pena à cominação mais grave subsistente (de 1 a 4 anos de reclusão).
A pena abstrata é a mesma nos dois casos. Na individualização concreta, entretanto, o Juiz deve considerar a diferença subjetiva, como faz nas hipóteses dos arts. 130, 174, 334 etc. do Código Penal, e a qualificação especial do sujeito ativo (comerciante ou industrial).
Aguarda-se que o legislador, para compor a harmonia típica, altere a redação do § 1.º, inserindo a cláusula que sabe ou deve saber. Enquanto isso não ocorre, cumpre-nos a missão a que se refere RAQUEL DENIZE STUMM: “O intérprete exerce a função de esclarecedor do conteúdo da lei em conformidade com a Constituição”[28].
O TACrimSP já adotou a nossa orientação: ACrim 1.132.165, 16a. Câm., j. 13.5.99, Rel. Juiz Eduardo Pereira[29].
[6] ALMEIDA, João de. lntrodução ao estudo das perífrases verbais de infinitivo. Assis, São Paulo, Ilhpa-Hucitec, 1978, p. 176.
[12] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, coment. ao art. 130 do Código Penal.
[13] TAVARES, Juarez. “Critérios de seleção de crimes e cominação de penas”, Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1992, n. de lançamento, p. 84, n. 6.
[14] FRAGOSO, Heleno Cláudio. “A cominação das penas no novo Código Penal”, em co-autoria com Lídia Sequeira, Revista do Direito Penal, Rio de Janeiro, 1975, 17/18:24.
[15] STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no Direito Constitucional brasileiro. São Paulo, Livraria do Advogado Editora, 1995, p. 72.
[16] MIR, José Cerezo. “O finalismo, hoje”, Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995, 12:41, n. 2.
[17] FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. São Paulo, Revista dos Tribunais, 3.ª ed., 1994, p. 273, n. 1.
[18] SERRANO, Nicolas Gonzalez Cuellar. Proporcionalid y derechos fundamentales en el Proceso Penal. Madri, Colex, 1990, p. 29.
[20] BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle constitucional das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília, Brasília Editora, 1996, p. 71.
[22] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – Volume 1. São Paulo, Saraiva, 23.ª ed., 1999, pp. 291 e 301.
[23] ROXIN, Claus. Introdução da Política Criminal y sistema de Derecho Penal. p. 14.
[24] GOMES, Luiz Flávio. Erro de tipo e erro de proibição. São Paulo, Revista dos Tribunais, 3.ª ed., 1996, p. 121, n. 40.
[25] STUMM, Raquel Denize. Op. cit., p. 71.[27] CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995, p. 114.
Advogado em São Paulo. Presidente e Professor do COMPLEXO JURÍDICO DAMÁSIO DE JESUS. Membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos (CONJUR) da Federação da Indústria de São Paulo. Membro da delegação do Instituto Inter-Regional de Criminologia das Nações Unidas (UNICRI) no 12.º Período de Sessões da Comissão das Nações Unidas de Prevenção ao Crime e Justiça Penal, Viena, Áustria (13-22.5.2003). Autor de várias obras jurídicas. Home page: www.damasio.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, Damásio E. de. O sabe e o deve saber no crime de receptação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jan 2009, 10:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/16384/o-sabe-e-o-deve-saber-no-crime-de-receptacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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