1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A relação existente entre Direito e Política é palco dos grandes debates desde a mais tenra idade. Adentrando ao tema, cabe ressaltar o entendimento de duas vertentes doutrinárias que tentam esclarecer o vínculo existente entre tais conceitos, bem como demonstrar as consequências principais dessa interação.
A primeira vertente a ser citada consiste no decisionismo, que defende a existência de um conjunto organizado de poder no qual encontra-se o poder soberano de onde emanam as normas. Tal corrente acredita ser o Estado um sistema de poderes responsáveis por tomar as decisões coletivas e, em certa medida, estabelecer o direito para regrar o convívio social. Em última instância, tal corrente acredita que a relação estabelecida entre o conceito de direito e política baseia-se no entendimento de que a validade do direito depende do poder, que cria e estabelece as normas e, ainda, se sobrepõe em relação ao direito.
A segunda vertente é a denominada normativista, que defende a existência de uma norma superior como fundamento de legitimidade de qualquer forma de poder. Nessa esteira, o poder político deriva do direito e a ele se subordina, sendo o Estado compreendido como um sistema de normas hierarquicamente ordenadas e subordinadas à uma norma superior.
A forma mais radical de demonstrar o confronto existente entre as vertentes supracitadas consiste na análise das teorias propostas por Carl Schmitt e Hans Kelsen, dois notáveis juristas do desenvolvimento da Teoria Constitucional tal como é hoje. Os dois autores pronunciaram-se acerca da jurisdição constitucional em debate travado na Europa durante o início do século XX, e o antagonismo presente em seus entendimentos decorre das ideias conflitantes da identidade do guardião da constituição, que características o fariam mais adequado para a salvaguardar a Carta Magna.
2. DOS PONTOS RELEVANTES DO DEBATE KELSEN VS. SCHMITT
A atualidade do debate decorre da noção de que a jurisdição constitucional é a todo momento colocada a prova. Hodiernamente, faz-se mister a compreensão acerca da existência de limites ao Poder Judiciário no tocante às decisões políticas que afetem a coletividade. Nesse sentido, ganha espaço a discussão sobre a legitimidade democrática para o controle de constitucionalidade face o conceito de democracia.
No século XX, Carl Schmitt já questionava a aptidão do Poder Judiciário para tomar decisões fundamentais. O autor defendia que o povo deve ser o responsável por tomar decisões políticas que afetem a coletividade. Assim, seria descabido tal função ser posta às mãos do Poder Judiciário, uma vez que o Guardião da Constituição deve ser um membro que atue como representante do povo e tenha legitimidade para tal.
A questão da representatividade do povo ganha espaço na teoria de Schmitt, posto que sua principal divergência em relação à Kelsen é a defesa de que o Presidente do Império deve ser o Guardião da Constituição. Para Schmitt, a função de salvaguardar a Carta Magna em nome do povo deveria ser responsabilidade de seu representante máximo.
As ideias de Schmitt de um guardião único da constituição, um único ser humano dotado de uma inteligência diferenciada e um senso de justiça inquestionável, podem ser comparadas as ideias de um regime autoridade, baseando-se na personalidade de um líder. Seria, portanto, um único responsável pela supremacia constitucional, com a missão de manter sobre sua égide a própria eficiência desse controle.
Seus argumentos eram claramente baseados na legitimidade democrática. Um líder eleito, que fizesse parte do imaginário do povo, respaldado em ampla legitimidade, poderia gozar de muito mais liberdade para guardar a Constituição, pois fora eleito pelo povo, e a Constituição é feita para o povo. Somente um líder eleito poderia, de maneira legítima, ser o guardião correto para a Carta Magna.
Em sentido contrário às alegações de Schmitt, Kelsen defendia um corpo judicial, um Supremo Tribunal, que poderia, de maneira mais eficiente e completa, chegar à decisões que no final fossem as corretas. Seu tribunal não poderia pertencer ao Poder Judiciário, deveria, portanto, ser um poder a parte, livre de responsabilidade sobre suas decisões (pois somente desta forma os juízes poderiam tomar as decisões corretas sem o receio da represália).
Sua principal crítica à Schmitt era que este, em última instância, estava defendendo um regime autoritário, pois o poder concentrado na mão de apenas um indivíduo poderia ser interpretado como uma ditadura. De outro modo, Schmitt acreditava que Kelsen havia criado uma ferramenta absolutamente anti democrática para lidar com a questão da jurisdição constitucional, pois o que seria menos democrático do que um corpo de pessoas não eleitas decidindo as questões concernentes à constituição?
Para o último autor, a garantia ao mandato, à inamovibilidade, à irresponsabilidade perante as decisões, e o dever de prestar contas são extremamente relevantes para o desempenho profissional e eficaz dos juízes. Assim, o Tribunal de Justiça Constitucional, além de contar com tais garantias, seria uma instituição eminentemente política, pois teria como função única e primordial aferir a compatibilidade de uma norma em relação à Constituição, um documento político.
Para Schmitt, a Constituição é algo feito pelo povo, e tem que ser a todo momento porosa. Ela deve ser conceituada por meio de uma visão política, ou seja, a Constituição efetiva é a decisão política fundamental de um povo. Por conseguinte, o povo, que é o titular do poder constituinte, ao elaborar uma Constituição, faz opções, diretamente ou por meio de representantes, sobre qual será a forma de governo, a forma de Estado, o sistema de governo. Desta forma, tais decisões políticas fundamentais é que são responsáveis por formar a Constituição, segundo o conceito político adotado por Carl Schmitt.
Carl Schmitt, assim como Lassalle, não acredita na força e poder da Constituição escrita; para ele, mais valem as decisões políticas tomadas pelo povo. Por isso sua teoria é chamada de decisionismo. Vale ressaltar que a principal crítica que é feita à teoria de Schmitt ocorre no sentido de que tal teoria incorre em um grande risco, qual seja a possibilidade de uma “ditadura da maioria”, como aconteceu no nazismo.
Mas, ainda sobre o autor, a principal consequência da teoria adotada por Schmitt é a distinção entre a Constituição propriamente dita, que deve ser entendida como as decisões fundamentais do povo, e as meras leis constitucionais, que, de modo distinto, devem ser as decisões secundárias, ainda que estejam contidas na Constituição escrita.
Por fim, conforme dito anteriormente, Kelsen é um dos teóricos do positivismo jurídico, corrente segundo a qual todas as normas jurídicas são postas pelo Estado. De acordo com ele, a Constituição, conceituada em sua obra Teoria Pura do Direito, deve ser compreendida como uma norma jurídica fundamental e suprema de um Estado. Fundamental, em sua visão, seria porque confere o fundamento de validade das demais normas, leis e atos administrativos. E, seria suprema porque ocupa a mais alta hierarquia do ordenamento jurídico.
3. DA ATUALIDADE DO EMBATE: LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA
Tal debate foi bastante importante no cenário da década de 20 e 30 do século XX. Por que ainda é considerada discussão atual? Quais suas reais aplicações e críticas ao atual modelo de jurisdição constitucional (que, de maneira simplificada, se divide entre europeu e americano)?
A polêmica discussão entre Hans Kelsen e Schmitt é de extrema relevância para um contexto marcado por críticas e remanejamento da jurisdição constitucional. A crítica de Schmitt continua pertinente quanto ao fato de que a Corte Constitucional é um órgão extremamente anti democrático, sem qualquer tipo de compromisso celebrado com o povo.
Nesse sentido, qual seria o papel democrático de onze ministros togados tomando decisões de relevância extrema? Decisões que inclusive muitas vezes tem o poder de alterar disposições e atos do poder legislativo, teoricamente o poder que encerra em si a verdadeira legitimidade democrática.
Para Schmitt, o poder da jurisdição constitucional deveria emanar de uma identidade democrática, e não de pessoas não-eleitas democraticamente e sem compromissos formais com o povo. Para Kelsen, de modo distinto, é importante haver um corpo capaz de frear as decisões legislativas, que costumam ser guiadas por paixões momentâneas. Existe uma tentativa de politização do controle constitucional, de inserção na esfera política, de maneira a controlar as paixões legislativas e defender as minorias.
Para o Schmitt, a Constituição é algo feito pelo povo, e ela tem que ser a todo momento porosa, fluida. Ela deve ser capaz de absorver os incursos de uma sociedade, nunca pode ser um documento estático. O Schmitt diz que o povo tem que ser capaz sim de alterar a Constituição. Porém, por que o presidente, o líder? Na Alemanha tem-se o primeiro ministro. Schmitt é um grande defensor da mutação constitucional, não necessariamente um processo formal de mutação, mas sim de ser sensível aos anseios da sociedade, não pode parar no tempo, nós não podemos congelar no ano de 88. Se eventualmente uma lei é aprovada e teoricamente não está de acordo com a Constituição, ele deve aferir se essa representa ou não a vontade do povo.
4. DA NECESSIDADE DE UMA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
Não são poucos os autores que defendem um controle constitucional difuso, sem que haja necessariamente um guardião certo e determinado da Constituição. Waldron, por exemplo, acredita que a sociedade organizada em torno de um poder legislativo eficiente já tem o poder de fiscalizar a Constituição por si só, sem o auxílio de uma Suprema Corte ou de um guardião único. Waldron acreditava mais nas instituições democráticas do que nas tentativas conflituosas de nomear um guardião para a constituição.
Sunstein, assim como Waldron, acreditava que as instituições democráticas saudáveis são mais capazes de produzir decisões constitucionalmente corretas do que os próprios juízes. Segundo Sunstein, autor fortemente marcado por sua teoria do mininmalismo, quanto menos disser o Supremo Tribunal Federal, mais a sociedade civil terá espaço democrático para se expressar.
O minimalismo é uma doutrina argumentativa que defende que o juiz deve ter um escopo menor de atuação, pois ele não conhece efetivamente as condições sociais como os cidadãos conhecem. Ele é menos capacitado para produzir decisões democráticas dos que os representantes da sociedade, os membros do poder legislativo. Por isso, para ele, as instituições democráticas são sempre mais aptas e capacitadas para fazer a jurisdição constitucional do que os juízes, que possuem pouco contato com as demandas e problemas sociais, e se baseiam tão somente no texto constitucional e no conhecimento jurídico para tomar decisões. Os membros do legislativo estão em constante contato com a Constituição viva, com as demandas ativas da sociedade.
O minimalismo, portanto, é uma doutrina que mantém o juiz dentro do seu papel, porém de maneira que interfira sempre o mínimo, deixando espaço para a atuação do legislativo. O juiz tem seu papel mitigado dentro do contexto constitucional. Assim, a conclusão de Kelsen, de que o verdadeiro guardião constitucional é um tribunal recebe uma nova crítica: a de que a sociedade civil, representada pelo poder legislativo, está muito mais preparada democraticamente para fazer esse controle constitucional.
Para Waldron, a democracia saudável está mais do que apta para performar esse controle, sem a necessidade de decisões produzidas por um tribunal. O tribunal, que não sofre nenhum tipo de controle rígido para suas decisões, produz decisões que segundo ele são arbitrárias, sem real contato com as demandas sociais ou com os comandos da Constituição. A sociedade democrática, portanto, seria muito mais capaz, através do poder legislativo e das instituições democráticas, de fazer seu próprio controle constitucional.
5. DOS MODELOS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
A discussão acerca do controle judicial de constitucionalidade teve um desenvolvimento diferenciado em termos de situação geográfica. Inicialmente, teve-se um intenso debate no processo constituinte americano, mas o tema não restou pacificado. Tempos depois, com o caso Marbury vs. Madison, o assunto voltou a ser palco de grandes debates. No caso em questão, estabeleceu-se que no caso concreto o juiz poderia afastar uma lei que considerasse inconstitucional. Assim, de forma bastante singela, tem-se a viabilidade de um controle de constitucionalidade.
Na Europa, aproximadamente um século depois, o debate tomou um formato diferente, posto que discutia-se também a instituição de órgãos com perfil jurisdicional para controle de constitucionalidade e a outorga de uma competência à um órgão exclusivo, detentor do monopólio da censura. Essa primeira experiˆ´ncia ficou conhecida como o modelo Austríaco de 1920 de Corte constitucional.
Em linhas gerais, o modelo Austríaco também ficou comumente denominado de modelo Europeu de Controle de Constitucionalidade. Pode-se afirmar, sobre o tema, que este modelo é confirmador e ao mesmo tempo crítico do modelo americano de controle de constitucionalidade. Confirmador no sentido de que parte da idéia de supremacia da Constituição e reconhece que é necessário haver um controle dos atos infraconstitucionais e a Constituição, entretanto, é crítico no sentido de que qualquer juiz da causa pode ser o juiz da constitucionalidade. Esse modelo é também conhecido como o modelo kelseniano de constitucionalidade, uma vez que contou com participação decisiva de Hans Kelsen.
No debate europeu, Schmitt defende que a defesa da Constituição é uma função política e, por sua vez, deve ser exercida por quem possui legitimação democrática e política, o Presidente do Império. Kelsen, já em meados de 1920, defendia a instituição de uma Corte Constitucional, que exerceria um papel técnico, defendendo que a guarda da Constituição somente seria assegurada em um contexto de uma decisão a ser tomada por um órgão investido e capaz de sancionar eventuais desvios perpetrados pelo legislador. Do contrário, essa suposta rigidez ou supremacia do texto constitucional restaria vazia.
Percebe-se que, para Kelsen, era imprescindível que houvesse um órgão de controle. Nesse sentido, em 1928, Kelsen sustenta a necessidade do modelo de perfil concentrado e, para tanto, desenvolve inúmeras considerações em torno de que a democracia parlamentar, que era a que se instaurava na Europa naquela época, deveria ter um órgão de jurisdição constitucional.
Mas, cabe ressaltar que, ao lado do controle europeu, começou a se desenvolver também na Constituição Austríaca o chamado controle abstrato de normas, que considera a norma dissociada do caso concreto. Tal acontecimento gerou um inconforto por parte de Hans Kelsen, que especulava quem teria legitimidade para instaurar o controle abstrato, pois o poder central podia impugnar leis estaduais, e o poder regional poderia impugnar leis centrais. Percebe-se que o problema relacionado à proteção das minorias aparece de varias formas no debate.
Kelsen defendia que é missão da Corte Constitucional conhecer dos pleitos formulados pela minoria parlamentar, defendendo que no controle abstrato se reconheça também a legitimação da minoria para levar as leis aprovadas. É indubitável que a fala desse mecanismo pode levar a uma asfixia da minoria pela minoria, mas a tendência da maioria é expandir-se, eternizar-se no tempo. A democracia pressupõe também, alternância do poder, caso contrário vira ditadura.
Ante isto, se considerarmos a idéia de tensão entre minoria e maioria e entre jurisdição e democracia na formulação de Kelsen, pode-se afirmar que a jurisdição constitucional cumpre função de garantidora desse processo. Com o olhar atual, pode-se concluir que Kelsen é o grande vencedor desse embate, pois a idéia restritiva de Schmitt não ganhou adeptos em termos de institucionalização. Hoje impera a idéia de uma Corte de perfil connstitucional.
6. CONCLUSÃO
A atualidade de Schmitt se dá no sentido de que a jurisdição é sempre e a todo tempo colocada a prova. Hoje a necessidade do debate ocorre não no sentido de se perguntar quem deve ser o Guardião da Constituição, mas sim entender até que ponto o Poder Judiciário pode dar a palavra final em questões delicadas que envolvem e decidem a vida de milhões de pessoas.
Cabe portanto, em forma de dar continuidade aos estudos aqui iniciados, compreender a aptidão do Poder Judiciário para decidir tais questões. Schmitt defendia que o Tribunal Constitucional defendido por Kelsen levaria a um Estado de Justiça. Como seria sua aplicadade hoje? Se, de acordo com Schmitt, o povo é quem deve concretizar para tomar a decisão política fundamental, então porque confiar as decisões fundamentais em 11 membros não eleitos? Não há dúvidas de que as idéias de Schmitt aqui expostas não são passíveis de se encaixar no contexto do atual Estado Democrático de Direito, entretanto, como forma de encerrar o tema aqui suscitado, cabe refletir acerca destes questionamentos.
Além disso, a necessidade de se rediscutir o tema apresentado é compreender que este debate é constitutivo na formação (ou proposição) dos modelos políticos-jurídicos modernos.
Posto isto, esse debate é extremamente importante na medida em que marca a divisão acadêmica e política em torno da jurisdição constitucional. E nesse sentido, o debate se exauriu na linha de implementação de Cortes Constitucionais e, conforme aqui defendido, Kelsen deve ser considerado o grande vencedor.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SCHMITT, Carl. La Defensa de la Constitución. Madrid: Tecnos, 1998.
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992.
SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
Estudante de Direito da Universidade de Brasília (UnB), aprovada no segundo vestibular de 2010, cursando no momento o sétimo semestre (abril de 2013).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Bruna Athayde. A atualidade do debate Kelsen e Schmitt à luz da jurisdição constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 set 2013, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/36533/a-atualidade-do-debate-kelsen-e-schmitt-a-luz-da-jurisdicao-constitucional. Acesso em: 24 dez 2024.
Por: RAPHAELA NATALI CARDOSO
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