Resumo: O presente artigo debaterá, através da visão da doutrina e dos tribunais superiores, a possibilidade da utilização do habeas corpus para desconstituir a coisa julgada. Inicialmente, serão abordadas, de forma sucinta, ambas as ações autônomas de impugnação – revisão criminal e habeas corpus - trazendo suas principais características e hipóteses de cabimento, para posteriormente serem debatidos os possíveis casos de descontituição da coisa julgada através do remédio constitucional garantidor da liberdade.
Palavras chave: habeas corpus, revisão criminal, coisa julgada.
1. Introdução:
Tanto o habeas corpus como a revisão criminal são classificados como ações autônomas de impugnação. Todavia, possuem finalidades precipuamente diversas, ou seja, este é utilizado para desconstituir a coisa julgada penal e aquela tutela a liberdade do indivíduo.
Visto isso, será analisado neste artigo a posibilidade do habeas corpus desconstituir a coisa julgada, fazendo as vezes da revisão criminal.
2. Revisão Criminal: aspectos gerais
Ação de revisão criminal é uma ação autônoma de impugnação que estabelece uma nova relação jurídica processual, tendo aptidão para impugnar decisões com trânsito em julgado, desfavoráveis à defesa, e sendo de competência originária dos tribunais, ou das Turmas Recursais em julgados dos juizados especiais. Assim, possui como principal objetivo a desconstituição da coisa julgada, assemelhando-se finalisticamente à ação rescisória cível, apesar de não possuir prazo algum para a sua interposição.
“A ação de revisão criminal tem o objetivo de reexaminar sentença condenatória ou decisão condenatória proferida por tribunal, que tenha transitado em julgado. Tal demanda tem o condão de excepcionar a coisa julgada em matéria criminal, pelo que só se permite seu ajuizamento quando em favor de sentenciado. Não há, assim, revisão criminal pro societate, mas tão somento quando seu manejo é permeado pelos princípios do favor rei e da verdade real (verdade processual), caracterizando-se como demanda para o resgate do status dignitatis do acusado.”[1]
Tourinho Filho leciona sobre a importância da revisão criminal para a sociedade, aduz o autor:
“Uma condenação injusta é prejudicial ao réu e à sociedade, que, com razão, passa a desconfiar da Justiça. Por isso, desde épocas remotas se admitem providências para jugular a injustiça de uma decisão condenatória. A indulgentia principis era a válvula de segurança para as condenações iníquas, mas não era um direito do réu, e sim simples providência de natureza administrativa, que muito dependia da boa vontade do soberano.
Hoje, em todas as legilações do mundo civilizado, a coisa julgada penal, a despeito de necessária à ordem pública, deixa-se violentar quando um interesse mais alto a sobrepuja: uma sentença condenatória manifestamente injusta. E o remédio jurídico-processual que permite a reabrir o processo, em que se cometeu a injustiça, rasgando-lhe o selo da intangibilidade, é a revisão criminal”.[2]
Outrossim, como uma de suas principáis características, tem-se o não cabimento em face de decisões absolutórias próprias com trânsito em julgado, nem mesmo para modificar o fundamento da absolvição, pois elas estão protegidas pela coisa soberanamente julgada.
Quando uma decisão absolutória própria transita em julgado, estamos diante da chamada coisa soberanamente julgada. A coisa soberanamente julgada é aquela imodificável, que não pode ser modificada nem mesmo por ação revisional. Assim, percebe-se só ser possível a desconstituição da coisa julgada em benefício do réu.
Importante trazer à baila que havendo requerimento do interessado, a revisão criminal culminará no reconhecimento da justa indenização, que tem como fato gerador o erro judiciário. Esta indenização engloba, inclusive, eventuais custos com valores indenizatórios já pagos à vítima pelo réu em eventual ação civil.
Suas hipóteses de cabimento estão previstas nos incisos do art. 621 do CPP, sendo considerado um rol exaustivo. Transcreve-se abaixo o referido artigo para que se perceba como o seu cabimento diverge em essência da garantia constituicional do habeas corpus.
Art. 621 do CPP: A revisão dos processos findos será admitida:
I - quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos;
II - quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;
III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.
Contudo, como será demonstrado no tópico seguinte, em algumas hipóteses o remédio constitucional de habeas corpus poderá rescindir a coisa julgada, hipóteses em que o cabimento de ambas ações acabam por coincidir.
3.Habeas Corpus: aspectos gerais e rescisão da coisa julgada
O Habeas corpus é uma garantia fundamental expressa na Constituição Federal, art. 5º, LXVIII, também previsto no Código de Processo Penal, art. 647 e seguintes, que tem como escopo proteger o direito de ir e vir da pessoa física.
Nesse norte, segundo Dirley da Cunha Jr, o habeas corpus “é uma ação constituicional de natureza penal destinada especificamente à proteção da liberdade de locomoção quando ameaçada ou violada por ilegalidade ou abuso do poder (...) A Origem do instituto do habeas corpus remonta ao direito inglês, notadamente a partir da Magna Carta de 1215, outorgada pelo Rei João Sem-Terra, por pressão dos barões ingleses (...). No Brasil, o Habeas Corpus foi instituído pela primeira vez no código de processo criminal de 1832 (art. 340), vindo a ter assento constitcional com a Constituição de 1891, cujo §22 o previra em termos amplos, circunstância que originou a famosa e sempre lembrada Doutrina Brasileira do Habeas Corpus liderada por Ruy Barbosa, que o entendia como ação destinada a proteger qualquer direito. (...) Todavia, com a reforma constitucional de 1926, o habeas corpus foi limitado à proteção da liberdade de locomoção, com enunciado que se manteve nas constituições seguintes até na atual.”[3]
Qualquer pessoa possui legitimidade ativa para impetrar esta ação constitucional. Admite-se que o menor, o analfabeto e até mesmo a pessoa jurídica o impetre. Apenas não se tolera habeas corpus apócrifo (anônimo). O legitimado poderá inclusive interpor eventuais recursos no desdobramento da relação processual, em virtude do julgamento da ação, mas as razões necessitam ser subscritas por pessoa que detenha capacidade postulatória.
A legitimidade passiva é do autor da arbitrariedade (abuso de poder) ou da ilegalidade. Em regra, é um funcionário público, mas nada impede que seja um particular, como por exemplo nas relações médico-hospitalares. O legitimado passivo é denominado de coator e a vítima de paciente.
A competência para esta ação é determinada em decorrência da autoridade coatora. Nesse caso, se o agente que restringiu a liberdade de ir e vir de outrem possuir prerrogativa de foro, esta será considerada para fins de determinação da competência.
Existem várias modalidades de habeas corpus, boa parte delas previstas nos incisos do art. 648 do CPP, como o repressivo, preventivo, supensivo etc. Dentre eles, destaca-se o nulificador previsto no inciso VI, isto é, o habeas corpus que tem como fito declarar a nulidade do processo, e o previsto no inciso III, sendo ambos cabíveis, segundo alguns doutrinadores e decisões de tribunais superiores, inclusive após o trânsito em julgado.
Art. 648. A coação considerar-se-á ilegal:
I - quando não houver justa causa;
II - quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei;
III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo;
IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação;
V - quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza;
VI - quando o processo for manifestamente nulo;
VII - quando extinta a punibilidade.
Eugênio Pacelli de Oliveira afirma não haver dúvida acerca da possibilidade do habeas corpus rescindir a coisa julgada, especificamente nas hipóteses supracitadas previstas nos incisos III e VI do art. 648 do CPP. Exemplifica inclusive com jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no AI nº 544607 QO/SP, Rel. Min Sepúlveda Pertence, em 24.5.2005 – Informativo STF nº 389, 1.6.2005, em que o STF teve a oportunidade de decidir que, mesmo já transitada em julgado, nada impede o reconhecimento da prescrição punitiva pela vida do habeas corpus.[4]
Entende ainda o referido autor ser cabível habeas corpus, após o trânsito em julgado, para que seja reconhecida a manifesta atipicidade da conduta. Defende que o tema seja analisado sob a ótica da Constituição Federal e não apenas sob os ditames do Código de Processo Penal.
Apesar do exposto, tanto o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça vedam, de modo genérico, a utilização de habeas corpus como sucedâneo da revisão criminal.
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. SUBSTITUTIVO DE REVISÃO CRIMINAL. TRÁFICO DE DROGAS. DOSIMETRIA DA PENA. DECISÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. 1. A orientação do Supremo Tribunal Federal fixou-se no sentido de que é inviável a utilização do habeas corpus como substitutivo de revisão criminal. 2. É possível que o juiz fixe o regime inicial fechado e afaste a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos com base na quantidade e na natureza do entorpecente apreendido. (HC 119515, Rel.ª Min.ª Cármen Lúcia). 3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STF - RHC: 125077 MS, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 10/02/2015, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-041 DIVULG 03-03-2015 PUBLIC 04-03-2015)
"HABEAS CORPUS" SUBSTITUTIVO DE REVISÃO CRIMINAL. DESCABIMENTO. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. PRESENÇA DE TRÊS MAJORANTES. FIXAÇÃO DA FRAÇÃO DE AUMENTO ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. ARGUMENTOS CONCRETOS. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. 1. Os Tribunais Superiores restringiram o uso do "habeas corpus" e não mais o admitem como substitutivo de outros recursos e nem sequer para as revisões criminais. 2. As instâncias ordinárias destacaram circunstâncias concretas que justificam a necessidade do acréscimo da sanção, na terceira fase de aplicação da pena, em patamar superior ao mínimo - delito cometido com emprego de várias armas de fogo, concurso de quatro agentes e restrição de liberdade da vítima -, em total consonância, portanto, ao verbete nº 443, da Súmula desta Corte. 3. "Habeas corpus" não conhecido por ser substitutivo da medida cabível.
(STJ - HC: 263233 RJ 2013/0006985-0, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 21/11/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/11/2013)
Essa vedação não pode ser absoluta. O princípio da impugnação específica deve ser aplicado às ações autônomas de impugnação, todavia, principalmente no que tange a hipóteses de nulidade absoluta, vislumbra-se uma interseção de cabimento, ou ao menos um claro caso de aplicação do princípio da fungibilidade.
Ademais, hipóteses de nulidade absoluta são casos de erros graves que devem ser sanados da forma mais célere possível, sendo o habeas corpus meio adequado, não havendo sequer vedação expressa no ordenamento jurídico para esse fim. A vedação que há para o remédio constitucional é a impossibilidade de instrução probatória, o que não se faz necessária na grande maioria dos casos de nulidade absoluta.
4.Conclusão:
Isso posto, estudados ambos os institutos, conclui-se que o habeas corpus não pode ser utilizado como revisão criminal de forma genérica, como afirma a jurisprudência dos tribunais superiores. Contudo, em determinadas hipóteses, em especial nos casos em que envolvem nulidade absoluta, deve ser aceita a utilização do remédio constitucional para desconstituir a coisa julgada, em homenagem à celeridade, fungibilidade e principalmente ao sistema penal garantista.
Referências:
FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. Salvador: JusPODIVM, 2010.
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 19ed. São Paulo: Atlas, 2015.
TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 5ed. Salvador: Jus PODIVM, 2011.
[1] TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 5ed. Salvador: Jus PODIVM, 2011, p. 1077.
[2] FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 979.
[3] JÚNIOR, DIRLEY DA CUNHA. Curso de Direito Constitucional. Salvador: JusPODIVM, 2010, p. 782-783
[4] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 19ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 1023.
Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado da Paraíba - FESMIP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Paulo Sergio Oliveira de Carvalho. Habeas Corpus como meio de desconstituição da coisa julgada: sucedâneo de Revisão Criminal? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jan 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/48621/habeas-corpus-como-meio-de-desconstituicao-da-coisa-julgada-sucedaneo-de-revisao-criminal. Acesso em: 06 nov 2024.
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