Resumo: O presente trabalho abordará algumas incongruências, ou até mesmo injustiças, que a aplicação da Lei dissociada da realidade social podem gerar, trazendo o entendimento doutrinário e jurisprudencial mais recente dos Tribunais Superiores acerca da questão etária no estupro de vulneráveis e uma análise crítica, embasada em uma posição jurisprudencial mais consentânea com a realidade fática.
Palavras – chave: Estupro de vulnerável. Vulnerabilidade etária. Relações de afeto. Semelhante grau de maturidade. Intervenção mínima.
Sumário: Introdução. 1. Estupro de Vulnerável: análise legal, doutrinária e jurisprudencial 2. Princípio da intervenção mínima e exceção de Romeu e Julieta: uma análise crítica. Conclusão.
Introdução
A doutrina e jurisprudência majoritárias interpretam o critério etário previsto no artigo 217-A do Código Penal como hipótese de vulnerabilidade absoluta, o que se busca com o presente trabalho é demonstrar algumas incongruências que essa presunção absoluta gera, fazendo uma reflexão crítica acerca do tema.
Consoante disposto no mencionado artigo 217-A, do Código Penal, aquele que tiver conjunção carnal ou praticar qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos, comete o crime denominado estupro de vulnerável.
Em razão disso e tendo em vista o princípio da intervenção mínima do direito penal, busca-se defender que essa vulnerabilidade deve ser relativizada, em situações específicas, mormente quando há relação de afeto entre as partes e pequena diferença de idade e assim de grau de maturidade, sobretudo sexual, o que é feito na exceção de Romeu e Julieta, afastando, dessa forma, a própria ocorrência do delito.
1. Estupro de Vulnerável: análise legal, doutrinária e jurisprudencial.
Criado pela Lei n° 12.015/09, o delito insculpido no artigo 217-A do Código Penal, com a rubrica de estupro de vulnerável, consiste em ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos, prevendo o legislador, no preceito secundário, a pena de reclusão de 08 (oito) a 15 (quinze) anos.
Consta, ainda, em seu §1°, que “Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”, ficando insculpida, portanto, outras hipóteses de vulnerabilidade, além da etária, as quais sujeita o agente à idêntica sanção penal.
Depreende-se da análise dos dispositivos mencionados, que a ratio legis foi tutelar a “dignidade e o desenvolvimento sexual da pessoa vulnerável”[i], além de proteger “a liberdade sexual” daqueles que não possuem a capacidade de consentir validamente.
No caso da vulnerabilidade etária, previu o legislador que essa incapacidade de discernir é afeita aos menores de 14 anos, prevendo hipótese, na visão majoritária, de vulnerabilidade absoluta, de caráter extremamente objetivo.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores está sedimentada pela presunção absoluta da violência em casos da prática de conjunção carnal ou ato libidinoso diverso com pessoa menor de 14 anos, senão vejamos:
HABEAS CORPUS. AUTORIZAÇÃO PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ. ABORTO NECESSÁRIO. NÃO COMPROVAÇÃO DE RISCO DE MORTE À GESTANTE. ABORTO HUMANITÁRIO. ATO INFRACIONAL ANÁLOGO A ESTUPRO DE VULNERÁVEL. OCORRÊNCIA. VÍTIMA MENOR DE QUATORZE ANOS. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. VULNERABILIDADE. TEMPO DE GESTAÇÃO AVANÇADO. ORDEM DENEGADA.
1. O pedido de interrupção da gravidez está alicerçado nas complicações geradas à saúde da jovem e na configuração do ato infracional análogo ao estupro de vulnerável, dada a presunção absoluta de violência.
2. Conquanto haja a defesa comprovado a existência de determinados fatores acidentais na gravidez da jovem, não há documento assinado por profissional da saúde que demonstre o seu iminente risco de morte. Infirmar a conclusão alcançada pela Corte de origem demandaria necessária dilação probatória, iniciativa inviável no âmbito desta ação constitucional.
3. Em que pese o caráter limítrofe da situação apresentada - um casal de namorados, ela com 13 e ele com 14 anos de idade, que, em decorrência de ato sexual consentido, enfrenta o peso de uma gravidez não desejada -, a rigor, se trata de caso de ato análogo a estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal).
4. Acerca da configuração do delito em situações como a dos autos (na espécie, ato infracional análogo), por força do recente julgamento do REsp repetitivo n. 1.480.881/PI, de minha relatoria, a Terceira Seção desta Corte Superior sedimentou a jurisprudência, então já dominante, pela presunção absoluta da violência em casos da prática de conjunção carnal ou ato libidinoso diverso com pessoa menor de 14 anos.
5. A vulnerabilidade da vítima é o elemento definidor para a caracterização do delito, de modo que o fato de ser o agente ainda um adolescente não exclui a ocorrência do ato infracional. Configurada a presunção de violência, houve ato infracional análogo ao caso de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal), circunstância que, por si só, permitiria a autorização do procedimento.
6. A gravidez encontra-se, aproximadamente, na trigésima primeira semana, de modo que, a esta altura, uma intervenção médica destinada à retirada do feto do útero materno pode representar riscos ainda maiores tanto à vida da paciente quanto à da criança em gestação.
7. Habeas corpus não conhecido.
(HC 359.733/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 23/08/2016, DJe 19/09/2016) (Grifei)
Por meio desse recente julgado, evidencia-se que para o Superior Tribunal de Justiça as peculiaridades do caso concreto não são aptas a relativizar a presunção de vulnerabilidade, entendendo a questão etária como um critério objetivo e absoluto.
Na visão do aludido Tribunal, o consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do delito de estupro de vulnerável.
Assevera o STJ, em especial quando do julgamento do citado REsp 1.480.881-PI[ii], que a expressão vulnerável não é elementar do delito de estupro de vulnerável, prevendo o legislador 3 espécies de situações em que a vítima pode se enquadrar na vulnerabilidade, e entre elas, o fato de possuir menos de 14 (catorze) anos, dado este objetivo, que encerra as discursões acerca de vulnerabilidade absoluta ou relativa, não cabendo ao aplicador do direito a relativização de um dado objetivo, com o escopo de tornar atípica a conduta.
O Supremo Tribunal Federal, em julgados extremamente recentes, de maneira similar se posiciona acerca do tema:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL E DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. ARTIGOS 213 e 224, ALÍNEA A (NA REDAÇÃO ANTERIOR À LEI 12.015/2009). HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO. INADMISSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA JULGAR HABEAS CORPUS: CRFB/88, ART. 102, I, D E I. HIPÓTESE QUE NÃO SE AMOLDA AO ROL TAXATIVO DE COMPETÊNCIA DESTA SUPREMA CORTE. ATIPICIDADE. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. MENOR DE 14 ANOS. VULNERÁVEL. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INADMISSIBILIDADE NA VIA ELEITA. INEXISTÊNCIA DE TERATOLOGIA, ABUSO DE PODER OU FLAGRANTE ILEGALIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A presunção de violência no crime de vulnerável, menor de 14 anos, não é elidida pelo consentimento da vítima ou experiência anterior e a revisão dos fatos considerados pelo juízo natural é inadmita da via eleita, porquanto enseja revolvimento fático-probatório dos autos. Precedentes: ARE 940.701-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 12/04/2016, e HC 119.091, Segunda Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 18/12/2013. 2. In casu, o recorrente foi condenado à pena de 8 (oito) anos de reclusão, em regime fechado, como incurso no art. 217-A do Código Penal, pelo fato de haver cometido ato sexual com um menino menor de 13 anos de idade em troca de um amortecedor de bicicleta e filmado todo ato em seu celular. 3. A competência originária do Supremo Tribunal Federal para conhecer e julgar habeas corpus está definida, exaustivamente, no artigo 102, inciso I, alíneas d e i, da Constituição da República, sendo certo que o paciente não está arrolado em qualquer das hipóteses sujeitas à jurisdição desta Corte. 4. Agravo regimental desprovido. (HC 124830 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 20/04/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-104 DIVULG 18-05-2017 PUBLIC 19-05-2017) (grifei)
Penal. Habeas Corpus originário. Estupro de vulnerável. Consentimento da vítima menor de 14 anos. Irrelevância. Ausência de ilegalidade ou abuso de poder. 1. O Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que, para a configuração do estupro de vulnerável, é irrelevante o consentimento da vítima menor de 14 anos. 2. Habeas Corpus indeferido, revogada a liminar.
(HC 122945, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 21/03/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-091 DIVULG 03-05-2017 PUBLIC 04-05-2017) (grifei)
Na doutrina, muitos, a exemplo do ilustre Penalista Rogério Greco, defendem, de igual forma, tratar-se de presunção iuris et de iure, salientando que a determinação da faixa etária foi uma escolha legislativa, sendo um critério objetivo.
Greco enfatiza que “O mundo globalizado vive e presencia a atuação de pedófilos, que se valem de inúmeros e vis artifícios, a fim de praticarem algum ato sexual com crianças e adolescentes, não escapando de suas taras doentias até mesmo os recém-nascidos”.[iii]
Os atos de pedofilia, causa de tamanha repulsa social, sem nenhuma dúvida, merecem a severa reprimenda do Estado e estão entre os mais graves crimes insculpidos na legislação, podendo gerar danos sequer imagináveis em suas vítimas, aproveitando-se os autores da vulnerabilidade juvenil, na maioria das ocasiões.
No que concerne à realização de atos sexuais com menores de 14 anos de forma violenta ou não consentida, ou ainda, com o consentimento viciado, considerando a idade do autor e da vítima, a reprimenda penal é imperiosa e inconteste, sendo as posições doutrinárias e jurisprudenciais, nesse sentido, extremamente consentâneas com a necessária atuação do direito penal, devendo, de fato, este ramo seletivo atuar e se preocupar com fatos causados por uma conduta humana voluntária, que causa reprovação social e é apta a ferir os importantíssimos bens jurídicos tutelados pela norma.
É indiscutível que atos sexuais violentos contra crianças ou adolescentes causam danos incalculáveis, são de uma repulsa social inigualáveis e merecem a rápida e efetiva atuação estatal. Outrossim, relações sexuais com menores, ainda que consentidas, justificadas em tradições locais de relacionamentos de menores com adultos maduros, comprometendo, sem dúvidas, o crescimento saudável, em todas as esferas, de crianças e adolescentes, devem ser rechaçadas, não justificando, a existência de experiências anteriores ou consentimento destes, uma vez que a vulnerabilidade das crianças e adolescentes, in casu, é patente e os danos posteriores incontestes.
O que se analisa neste trabalho são hipóteses de relacionamento amorosos entre pessoas de idades próximas, que em nada se identificam com as citadas situações e, em razão de suas peculiaridades, podem gerar contrassensos e injustiças, ante a aplicação de um critério de forma absoluta, sem analisar a realidade fática que o circunda.
3. Princípio da intervenção mínima e exceção de Romeu e Julieta: uma análise crítica
O legislador, por uma questão de política social e criminal, analisando os casos de uma maneira macro, criou o delito de estupro de vulnerável, fixando um critério etário para aferição da vulnerabilidade da vítima, visando coibir e punir, uma conduta totalmente reprovada pela sociedade e merecedora da atenção seletiva do direito penal, que é a ação dos chamados pedófilos.
Todavia, analisando a questão da vulnerabilidade de forma absoluta, diversos contrassensos são gerados:
Imagine-se, primeiramente, um namoro entre dois adolescentes, uma menina de 13 anos e um menino de 15 anos de idade, namoro este, consentido pelos pais de ambos, e que apaixonados e no afã da juventude, esses jovens, de forma consensual e afetiva, praticaram, qualquer ato libidinoso, sendo desnecessária até a ocorrência da conjunção carnal, a título de exemplo: o menino toca nos seios da menina durante o namoro, ainda que, por cima da roupa e de forma consentida, podendo a menina oferecer resistência caso desejasse, a qualquer tempo.
Nesse caso, por todo o já exposto, não resta dúvidas, do ponto de vista da subsunção do fato à norma penal, de que o adolescente praticou ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável, estando sujeito às medidas socioeducativas elencadas no Estatuto da Criança e do Adolescente, dentre elas e desde que obedecidos os requisitos do art. 122 do Estatuto, poderia vir até a sofrer a medida de internação.
Diante do suposto caráter absoluto, a que majoritariamente se defende que tenha a norma, para a configuração do citado ato infracional, independe o fato de este ser o primeiro relacionamento amoroso dos adolescentes, o fato de que estão apaixonados, que estão descobrindo juntos a sexualidade, que até pela diferença mínima de idade, o grau de maturidade dos adolescentes ser extremamente semelhante e que essa conduta, com essas peculiaridades, via de regra, não tem o condão de afetar o crescimento saudável deles, ao revés, a atuação do direito penal causaria consequências muito mais graves na vida desses adolescentes, do que a própria conduta e sua repercussão.
Some-se a este fato, ainda, a hipótese em que a mãe dessa menina, antes de tudo amiga e confidente de sua filha, aprova o relacionamento de ambos, reconhece o amor entre eles e sabe pormenorizadamente do que se passa no namoro da filha e até aconselha para que, quando eles venham a ter conjunção carnal, que esta seja saudável e segura, e que não seja precipitada.
Essa genitora também, diante da subsunção do fato a norma, considerando que está na condição de garante e que sabia que esses citados atos libidinosos vinham acontecendo, e nada faz para impedí-los, deverá responder nos termos do artigo 13, §2°, do CP, pelo crime de estupro de vulnerável, sujeita a pena de reclusão de 08 a 15 anos.
Diante das hipóteses narradas, surgem diversos questionamentos e necessárias reflexões. De qual vulnerabilidade etária, de fato, estamos a tratar? Qual o bem jurídico efetivamente tutelado nesses casos? Será que a dignidade e o desenvolvimento sexual dessa adolescente de 13 anos foi concretamente violado? Será que sob um alegado manto de proteção, o direito penal não estaria interferindo intimamente nos núcleos familiares, sendo a primeira e não a ultima ratio?
E se pensarmos, agora, no caso de dois adolescentes menores de 14 anos, estaríamos diante de dois atos infracionais recíprocos análogos ao crime de estupro de vulnerável? Devem os dois adolescentes que, de forma consensual e até, muitas vezes, imatura, praticaram reciprocamente atos libidinosos ou conjunção carnal com o outro, responder pelo citado ato infracional? Qual bem jurídico estaria sendo protegido numa situação como essa?
Imagine-se, ainda, a situação de uma adolescente que tem pouco menos de 14 anos e está em um relacionamento amoroso com um menino de 18 anos, o qual se iniciou há mais de um ano com o consentimento dos pais e que já havia evoluído para a prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal, como passar a mão nas partes íntimas, por ambos e de forma consentida. Um certo dia, o pai fica sabendo da evolução do namoro e desaprovando, vai à Delegacia e os namorados são surpreendidos na prática dos aludidos atos, os quais já estavam fazendo há alguns meses e era, inclusive, de conhecimento da genitora da adolescente. Nesse caso, por uma questão de legalidade estrita, deve o rapaz ser preso em flagrante de crime de estupro de vulnerável e a mãe da adolescente deve responder de igual forma pelo mesmo delito, na condição de garante, como já enfatizado?
Os exemplos e suas incongruências são diversas e independente de análises morais, entende-se que a ratio legis do crime de estupro de vulnerável não foi coibir condutas dessa jaez.
Não se está fomentando ou rotulando de certo ou errado as condutas dos exemplos narrados, apenas analisando do ponto de vista jurídico essas situações que acontecem no nosso País, para não dizer em nível mundial, em todas as classes sociais, com alguns jovens e que não tão raro quanto possa parecer, chegam ao conhecimento das Autoridades, podendo gerar severas injustiças e incongruências.
Mais uma vez, repita-se, não se está incentivando a prática de relações sexuais entre menores de 14 anos e é inegável que a infância e adolescência devem ser protegidas e que as escolas e os pais, numa verdadeira ação conjunta e preventiva, devem educar, alertar e proteger seus filhos e alunos de experiências que possam ser excessivas para sua idade e maturidade, podendo fragilizá-los do ponto de vista físico, social e psicológico.
Todavia, há evidentes casos, como os citados, em que adolescentes entre 12 e 14 anos demonstram maturidade sexual e que independente da visão moral e do conceito de certo e errado que se possa ter, naquelas circunstâncias e em tantas outras similares, urge a relativização da vulnerabilidade, porque do contrário, estar-se-á indo de encontro à própria premissa do direito penal como ultima ratio, trazendo contrassensos e injustiças, com severas punições desproporcionais, para não dizer desnecessárias do ponto de vista jurídico.
Destarte, considerando que o critério adotado pelo legislador não contempla hipóteses em que há relacionamentos amorosos consentidos entre pessoas de idade semelhantes e até que haja uma modificação legislativa para inclusão, por exemplo, de um novo parágrafo flexibilizando a vulnerabilidade etária quando não exista diferença significativa no grau de maturidade, defende-se que deve o aplicador do direito atento a ratio legis e aos princípios que norteiam o direito penal, dentre eles a intervenção mínima, com seu caráter fragmentário e subsidiário, atento à ausência de lesividade e ofensividade na conduta, relativizar a presunção de vulnerabilidade, considerando flagrantemente atípicas as condutas citadas.
Defende-se ser papel dos operadores do direito ter uma postura ativa para evitar injustiças diante de situações fáticas não contempladas pela norma penal e que analisando a tipicidade de forma conglobante, devem ficar excluída da chancela do direito penal, salientando-se que se defende esta postura em casos de fatos excepcionais, analisando de forma detida o caso concreto e suas circunstâncias.
Nesse sentido, importante mencionar a teoria americana, inspirada nos jovens personagens Romeu e Julieta, de Willian Shakespeare, denominada de exceção de Romeu e Julieta (Romeo and Juliet Law), que em apertada síntese, preceitua que havendo relações sexuais consentidas entre duas pessoas, cuja diferença de idade não supera 05 (cinco) anos, não haverá crime, em razão de estarem com a mesma/semelhante maturidade sexual, buscando assim evitar exageros punitivos.
No Brasil, em que pese entendimento dominante pela vulnerabilidade absoluta, felizmente, tem se verificado, em alguns Tribunais, quando constatado que o agente não se aproveitou da inocência ou ingenuidade da vítima, tendo esta demonstrado maturidade em consentir, não obstante ser menor de 14 anos, a relativização da vulnerabilidade etária, vejamos alguns exemplos:
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL (ART. 217-A DO CÓDIGO PENAL). CONJUNÇÃO CARNAL COM MENOR DE 14 ANOS. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO LASTREADO NA ATIPICIDADE DA CONDUTA. POSSIBILIDADE. EXCEPCIONALIDADE DO CASO CONCRETO QUE PERMITE A RELATIVIZAÇÃO DA PRESUNÇÃO DE VULNERABILIDADE DA VÍTIMA. CIRCUNSTÂNCIAS QUE CERTIFICAM A MATURIDADE E A CAPACIDADE DE CONSENTIMENTO DA VÍTIMA, COM 13 ANOS DE IDADE QUANDO DA PRÁTICA CONSENTIDA DA RELAÇÃO SEXUAL. ADEMAIS, APELANTE E ADOLESCENTE QUE ESTABELECERAM RELACIONAMENTO AMOROSO COM O CONSENTIMENTO DE SEUS FAMILIARES. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL. ATIPICIDADE MATERIAL. PRECEDENTES DESTA CORTE. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJSC, Apelação Criminal n. 0003946-71.2013.8.24.0004, de Araranguá, rel. Des. Ernani Guetten de Almeida, j. 21-02-2017). (grifei)
APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO DE VULNERÁVEL (CP, ART. 217-A) - REEXAME EM APELAÇÃO CRIMINAL (ART. 543-C, § 7º, II, DO CPC) - APONTADA DIVERGÊNCIA COM DECISÃO DO STJ NO RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA N. 1.480.881, QUE NÃO CONSIDERA A RELATIVIZAÇÃO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E VULNERABILIDADE DE MENOR DE 14 ANOS - INVIABILIDADE NO CASO CONCRETO - PECULIARIDADES QUE DENOTAM CONSENTIMENTO VÁLIDO - PLENO DISCERNIMENTO QUANTO AO ATO - AUSÊNCIA DE LESIVIDADE AO BEM JURÍDICO - MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO REVISADO. Mostra-se cabível a relativização da responsabilidade penal em excepcionalíssimas hipóteses, quando a vítima colabora para o ocorrido e possui maturidade psicológica em se tratando de namoro e relação sexual, apesar da tenra idade. (TJSC, Apelação n. 0001054-40.2013.8.24.0086, de Otacílio Costa, rel. Des. Getúlio Corrêa, j. 08-03-2016). (grifei)
APELAÇÃO-CRIME. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. LESÕES CORPORAIS NO ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. APELOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA DEFESA. 1. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. 1º FATO. ÉDITO ABSOLUTÓRIO. APELO MINISTERIAL. MANUTENÇÃO. Prova inconteste quanto ao fato de que o réu e a ofendida mantinham relacionamento amoroso, sendo que residiram, como companheiros, por mais de 1 ano. Vítima menor de 14 anos de idade. Presunção de violência que, a partir do advento da Lei nº 12.015/2009, deve ser entendida como implícita ao tipo penal incriminador. Ofendida de 12 anos, que tinha tido já outro relacionamento amoroso também envolvendo relações sexuais, e que se envolveu emocionalmente com o réu, jovem de apenas 20/21 anos, recém saído da adolescência, sendo que eram do mesmo bairro e cresceram frequentando os mesmos lugares, como ela mesma declarou. Consentimento da ofendida com a prática sexual. Imputação que adveio unicamente por conta da idade da lesada, sem descrição de grave ameaça ou violência real. Diferença etária e características dos indivíduos envolvidos bem como a natureza da ligação que estabeleceram, que possibilita a relativização da presunção de violência e da vulnerabilidade da vítima. Atipicidade. Art. 386, III do CPP. Édito absolutório mantido. Apelo do Ministério Público improvido. 2. LESÕES CORPORAIS. 2º FATO. APELO DA DEFESA. ÉDITO CONDENATÓRIO. MANUTENÇÃO. Prova amplamente incriminatória. Relatos firmes e seguros da vítima detalhando como fora agredida pelo réu, com socos e tapas, por ciúmes, enquanto conviviam maritalmente, sob o mesmo teto. Relevância da palavra da vítima que, no caso, veio corroborada pelas narrativas de sua genitora e dos dois policiais miliatres que atenderam à ocorrência. Autos de lesão corporal sendo positivo quanto a ter havido ofensa à integridade e saúde da ofendida, atestando a presença de hematoma violáceo com sessenta milímetros por quarenta milímetros. Acusado que, durante as investigações, fez uso do direito constitucional de permanecer em silêncio e, em pretório, fez-se revel, não havendo tese de defesa pessoal a ser analisada. Prova segura à codenação, que vai mantida. APELOS IMPROVIDOS, POR MAIORIA. (Apelação Crime Nº 70068001767, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Fabianne Breton Baisch, Julgado em 28/09/2016) (grifei)
As decisões colacionadas, como se defende neste trabalho, demonstram a necessidade de o aplicador do direito em alguns casos excepcionais flexibilizar a vulnerabilidade etária, atento às peculiaridades do caso concreto, com o fito de evitar injustiças, até que haja uma efetiva alteração legislativa.
Como se buscou demonstrar nesse trabalho, a análise objetiva tão somente da idade cronológica da vítima, sem analisar as peculiaridades do caso, conduzem, em algumas hipóteses, a flagrantes ilegalidades.
Assim, até que haja uma alteração legislativa, defende-se que deve ser considerado o fato típico não apenas em seu aspecto formal, mas analisado conjuntamente o seu aspecto material, de ofensa ao bem jurídico tutelado, para então verificar se houve crime ou ato infracional.
Conclusão
O art. 217-A do Código Penal traz a hipótese da vulnerabilidade etária para a caracterização do estupro.
Não obstante os Tribunais Superiores e grande parte da Doutrina entendam tratar-se de hipótese de vulnerabilidade absoluta, sendo a idade da vítima inferior a 14 anos, critério objetivo para a caracterização do crime, analisando algumas hipóteses, percebe-se que é imperiosa a flexibilização casuística dessa vulnerabilidade, com o fito de evitar a intervenção desnecessária e desproporcional do direito penal, conduzindo a severas incongruências e injustiças.
Defende-se, dessa forma, que em situações que haja envolvimento amoroso entre as partes e pouca diferença de idade, como na hipótese da Teoria Americana chamada de Exceção de Romeu e Julieta, que a conduta seja considerada um indiferente penal.
Assim, roga-se ao aplicador do Direito, como já está sendo feito em alguns Tribunais, ante a semelhança no grau de maturidade das partes e verificando a inexpressividade da lesão jurídica provocada, que relativize a vulnerabilidade da suposta vítima, conduzindo a atipicidade material da conduta, compatibilizando-se, assim, com o princípio da intervenção mínima do direito penal.
Referências
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial. Vol. III. 8ª ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.
SALIM, Alexandre; AZEVEDO, Marcelo André. Direito Penal, parte especial, volume 2, Coleção Sinopses para Concursos, Editora JusPodivm, 2013
https://jus.com.br/artigos/40294/a-relativizacao-casuistica-da-vulnerabilidade-etaria, acesso em 21.06.2017.
https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/122309/TCC%20-%20Gabriel%20Colvara%20pfd.pdf?sequence=1&isAllowed=y, acesso em 21.06.2017.
http://www.tjgo.jus.br/index.php/home/imprensa/noticias/119-tribunal/12061-para-juiza-ato-sexual-consentido-em-relacao-de-afeto-com-menor-de-14-anos-nao-e-crime, acesso em 24.06.2017.
https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/164268648/o-estupro-de-vulneravel-e-os-atos-libidinosos-sem-violencia-entre-menores-uma-solucao-encontravel-no-direito-comparado?ref=topic_feed, acesso em 24.06.20017.
http://www.stj.jus.br/SCON/, acesso em 24.06.2017.
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp, acesso em 24.06.2017.
https://www.tjsc.jus.br/jurisprudencia, acesso em 24.06.2017.
https://www.tjrs.jus.br/site/jurisprudencia/, acesso em 24.06.2017.
NOTAS
Bacharela em Direito - UFS. Pós-graduada em Ciências Criminais pela Faculdade Social da Bahia em convênio com a CICLO. Técnica Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. Aprovada para o Cargo de Delegado de Polícia de Santa Catarina.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PESSOA, Isabella Cabral Fonseca. Estupro de vulnerável e a relação consentida de afeto: Uma tentativa de compatibilizar a vulnerabilidade etária e o princípio da intervenção mínima, base do Direito Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jul 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50437/estupro-de-vulneravel-e-a-relacao-consentida-de-afeto-uma-tentativa-de-compatibilizar-a-vulnerabilidade-etaria-e-o-principio-da-intervencao-minima-base-do-direito-penal. Acesso em: 13 nov 2024.
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