Sumário: exame retrospectivo da ruptura revolucionária e das estruturas de poder surgidas com o estado soviético. Implicações jurídicas e políticas do impacto de uma nova ordem surgida em 2017 e do seu desaparecimento.
Dedico este pequeno estudo aos que não tiveram tempo e jamais souberam; aos que souberam mas lhes foi imposto o silêncio ou o sacrifício; aos que acreditaram em uma certeza que nada tinha a ver com a verdade e assim reduziram suas vidas a um esquema; aos que descobriram a verdade e a sustentaram, para que outras gerações não tivessem que cometer os mesmos erros; aos que simplificaram tudo atribuindo crimes e culpas só aos outros, pois são eles que têm de ser resgatados das grutas em que encerraram seu pensamento; por fim, dedico este ensaio também e principalmente àqueles que voltaram às fontes para buscar a raiz do entendimento, que recriaram, que expandiram, que levaram até o fim e tiveram a humildade de pensar, como está no verso de Violeta Parra: mi paso retrocedido, cuando el de ustedes avanza.
Luiz Fernando Cabeda
Magistrado de segundo grau, autor de “A Justiça Agoniza” e “A Resistência da Verdade Jurídica”
1. Há cem anos nasceu Violeta Parra, compositora chilena que levou a outros países latino-americanos e europeus os cantos de seu país, inspirados no folclore e na poesia popular. O verdadeiro arrebatamento produzido por sua obra terá tido lugar no coração de muitos, no entanto, mais pela universalidade de seus versos.
Uma das últimas e mais conhecidas canções de Violeta Parra começa assim:
“Volver a los diecisiete
Después de vivir um siglo
Es como descifrar signos
Sin ser sabio competente”.
Cem anos já passaram; um século foi vivido desde 1917. Um tempo que tem de ser reconhecido pelos que hoje ainda percebem a sutileza de seus versos.
Voltar aos 17 envolve muitos signos.
A sabedoria para entender esse retorno também pode demorar a chegar e até mesmo não chegar nunca.
Tanto há o retorno a um lado juvenil nas pessoas como ao primórdio dos acontecimentos históricos, quando estes se apresentaram como uma nova aurora.
Umberto Eco não está mais entre nós, com seu humor amoroso e percepção rutilante, para nos ajudar no segundo sentido de metalinguagem em voltar aos dezessete, que todavia existe, está latente. Tanto mais que descifrar signos é exatamente o que procura realizar a semiótica, área de conhecimento a que Eco se dedicou a estudar como acadêmico, como depois a brincar como romancista.
Viver nada tem de linear e, portanto, voltar não é simplesmente ir até o que já foi. Violeta Parra sabia que a vida se enreda como a hera sobre o muro e brota como o musgo sobre a pedra:
“Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra”.
2. Também há cem anos, Vladimir Ilyich Ulyanov, que escrevia sob o pseudônimo de Nikolai Lenin, negociou com a embaixada alemã na Suiça, onde se encontrava exilado, o retorno à Rússia em viagem de trem pelo território germânico.
A ideia primeiro lhe pareceu louca, em pleno curso da I Guerra Mundial, mas - proposta por um companheiro de exílio tomado por um insight que sepultava todas as cautelas - foi afinal encampada por ele.
Havia interesse estratégico do Kaiser e seu alto comando em firmar paz em separado com a Rússia, uma vez que a Alemanha lutava em duas frentes.
A condição estabelecida foi a de que o comboio ficaria blindado, não podendo a comitiva de Lenin desembarcar no território alemão. Por fim, depois de chegar a Hamburgo e cruzar o mar Báltico, além de percorrer áreas de estepe na Escandinávia por trenó, o grupo de exilados continuou a viagem de trem e desembarcou na acanhada Estação Finlândia, em Petrogrado.
Ali, diante de revoltosos que haviam acabado de depor o czar Nicolau II, Lenin lhes incutiu em sucessivos discursos o que ia muito além da revolta, dos seus êxitos e do orgulho por ter vencido a autocracia dos Romanov, que já durava mais de 300 anos: o que estava ocorrendo era uma revolução mundial; o modo de vida na terra mudava; as sociedades não continuariam mais a ser as mesmas; a mobilização não tinha volta e o poder popular deveria ser empolgado e fortalecido, através dos soviets (conselhos) e do partido (“Rumo à Estação Finlândia”, Edmund Wilson).
Essa que ficou reconhecida como “a revolução de fevereiro” contou com forças muito variadas e igualmente decisivas. Da parte dos bolcheviques, assim chamados porque haviam formado a maioria do Partido Social Democrata Russo, o principal comando foi exercido por Liev Davidovich Bronstein, conhecido como Leon Trotski, que articulou a formação e atuação do soviet de Petrogrado. Todavia, o próprio Trotski reconheceu: a revolução é filha da guerra. Ou seja, a devastação causada pelo confronto bélico e a hecatombe do sistema czarista deram vez à insurgência revolucionária, que já era expressiva desde o final do Século XIX.
O avô de Nicolau II, Alexandre II, havia sido morto em um atentado dos narodiniks, grupo antagonista do czarismo, cujo nome derivava da expressão Naródnaia Volia, Vontade do Povo. Alexandre III, pai de Nicolau II, também foi alvo de atentado, porém abortado. Mais de setenta pessoas foram presas por envolvimento, entre elas o irmão mais velho de Lenin, Aleksandr Ulyanov, enforcado ainda muito jovem.
Pois foi na própria gare Finlândia, e depois no palácio que havia sido tomado pelos bolcheviques da bailarina que era amante do czar, que Lenin prenunciou a próxima revolução na Alemanha e, a seguir, além, em outros países, de modo que a ordem capitalista começava a ser superada progressiva e inexoravelmente no mundo.
O governo instalado, porém, aliou liberais, sociais democratas mencheviques (ou minoritários) e socialistas e acabou chefiado por Alexander Kerensky, conterrâneo e colega de Lenin nos bancos escolares, que se havia tornado um grande tribuno, porém pouco capaz na articulação política. Esse governo proclamatório tornou-se o alvo dos bolcheviques que, na chamada “revolução de outubro” (dia 25 pelo calendário Juliano então vigente na Rússia; 7 de novembro pelo calendário Gregoriano, adotado em 1918), tomaram o poder em um assalto ao Palácio de Inverno, que havia sido transformado na sede do governo provisório.
Assim, por uma coincidência de datas – e também porque um século já foi vivido – no início de novembro deste ano, voltamos aos 17.
3. Há cinquenta anos, em 1967, Violeta Parra entendeu que já havia dado seu recado para o mundo. O quotidiano da vida estava em conflito com tanto sonho, tanta luta.
“Gracias a la Vida”, sim; mas toda vida termina.
No mesmo ano, o médico argentino Ernesto Che Guevara viu chegado ao fim seu périplo, sua bandeira de marxismo de aventura.
Che já se movia como uma legenda e essa antiga expressão de tratamento, que se propagou principalmente na região do pampa, veio a ser exata e ironicamente aquilo que a história do capitalismo consagrou como uma marca.
Desde o desfecho para a crise dos mísseis em Cuba, na forma de um compromisso de paz (que já havia custado caro a Nikita Khrushchev, secretário-geral do PCUS, derrubado em uma conspiração de outros dirigentes, em 1964), Guevara imaginou um engajamento itinerante, primeiro no Congo, depois na Bolívia.
Quando Fidel Castro se curvou à política internacional da URSS, em troca de ser subsidiado por ela, não havia mais lugar em Cuba para Che Guevara e para o voluntarismo que os russos atribuíam a ele e não aceitavam, diante dos riscos que a Guerra Fria supunha e frente aos quais se equilibrava a paz atômica. A incolumidade de Cuba dependia de tal equilíbrio. Sobre as metamorfoses da revolução cubana há um sensível e profundo testemunho, do premiado escritor Reinaldo Arenas, no filme “Antes do Anoitecer”, dirigido pelo cineasta americano Julien Schnabel. Hector Babenco considerava – e isto não é pouco - “o melhor filme latino-americano já feito sobre o tema da liberdade”.
Do ponto de vista do marxismo, não existiam condições objetivas para a guerrilha de Guevara em terras bolivianas. O país era governado por René Barrientos, um militar de carreira que tivera sua iniciação política com Paz Estenssoro, ex-presidente reformista que havia estatizado as minas de estanho e tornado o voto universal.
Isto teve um peso imenso: a grande população indígena vinha sendo tradada até então como pária. As minas de estanho eram das últimas grandes riquezas minerais bolivianas, depois que foi exaurida pelos espanhóis coloniais a mais portentosa montanha de prata surgida das profundezas da terra, em Potosí, cuja exploração viabilizou a expansão do mercantilismo, com o surgimento de uma moeda mundial: o brasão impresso no dobrão espanhol deu origem ao sinal de cifrão que hoje conhecemos.
Potosí foi tão importante que está citada na ficção de Cervantes, no Século XVII, e nas análises de Marx, no Século XIX.
Até o primeiro governo de Paz Estenssoro, nos anos 1950, o estanho estava nas mãos da família Patiño, sendo seu expoente máximo o play boy internacional Antenor Patiño, sobre o qual quaisquer feitos mundanos já narrados sempre permitem mais um acréscimo, além do imaginável, pois patrocinou todas as excentricidades que a soberba e o delírio da riqueza permitem.
Na época da chegada de Guevara, Barrientos tinha por uso visitar com seu helicóptero todas as cidades e vilarejos de seu país. Por óbvio, era muito popular. Ele falava quéchua, idioma que remonta aos incas e que o presidente atual do país, Evo Morales, embora seja um índio aymará, não domina. Algo que não chega a ser estranho, já que é uma espécie de Macunaíma dos Andes, sendo autenticidade uma palavra que lhe é de todo estranha.
Empreender a derrubada de um governo populista e promover a revolução em lugares remotos, de um país esmagado pela exploração predatória, até hoje parece algo demasiado temerário.
De certa forma, para Guevara também o quotidiano da vida estava em conflito com tanto sonho, tanta luta. O que importava mais era deixar um testamento – e isso implicava em direcionar o voluntarismo para a morte, empurrando a vida para a redenção -, mas o legado acabou sendo feito de olhares no infinito, imagens icônicas, indumentária variada, frases abertamente idealistas, desvirtuando sua ação política até o ponto de transformá-la mais em um roteiro, de modo que o espírito de celebridade encobriu com um manto místico a guerrilha e o episódio da morte, a ponto de fundar em La Higuera um sítio mágico no mapa dos que andam em desatino com a lógica da vida.
A figura icônica de Guevara hoje permite considerar o processo de entronização da imagem semelhante ao ocorrido com a pintora mexicana Frida Kahlo, que foi casada com o muralista Diego Rivera e teve uma relação amorosa intensa e duradoura com o revolucionário Leon Trotski, em seu exílio em Coyoacán, terra natal de Frida, pouco antes da picareta de alpinista, manejada pelo catalão Ramón Mercader, destruir seu cérebro, por encomenda de Stalin.
Porque essas linhas da história se cruzam e os personagens reaparecem em coincidências estranhas é algo que o engenho não explica; serão as “malhas que o império tece” de que falou Fernando Pessoa em um verso.
Hoje as figuras típicas da cultura pop, um pouco inventadas ou estilizadas, de Frida e Guevara são difundidas em medida parecida e com imensa criatividade, mas vaga e distante é a notícia sobre o que foi real em suas vidas.
Ainda há cinquenta anos, em 1967, um jornalista - que chegou a ter seus textos expurgados da Prensa Latina, a agência de notícias de Cuba castrista - sacudiu a América Latina e, em seguida o mundo, com a sua forma de contar exatamente o que era “real” nesta parte da terra.
Ele inscreveu Macondo, definitivamente, no mapa mundi.
Também falou, à sua maneira, em “después de vivir um siglo”.
Um dos trechos mais conhecidos de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, é este:
“O coronel Aureliano Buendía promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um por um numa só noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de quatorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento. Sobreviveu a uma dose de estricnina no café que daria para matar um cavalo. Recusou a Ordem do Mérito que lhe outorgou o Presidente da República.”
Mário Vargas Llosa, entusiasmado com a obra (que chamou “História de um Deicídio”), chegou a propor: façamos as trinta e duas revoluções do coronel Aureliano Buendía, ainda que tenhamos de perdê-las todas.
Todavia, nenhuma nova revolução foi inventada desde então, muito menos repetida. Hoje Vargas Llosa detém um merecido Prêmio Nobel e descrê em revoluções. Pudera, na vida madura ele só viu prosperar golpes, ditaduras militares e homicídios massivos por motivos políticos na América Latina.
Já a verdadeira revolução literária que “Cem Anos de Solidão” desencadeou, apelidada de ‘realismo mágico’, nos fez entender melhor, repetindo Hegel, “o que é racional é real”, mas com este acréscimo importante: o que é irracional também.
4. A revolução russa revelou, com o reconhecimento do Ocidente, o trabalho em particular de dois juristas soviéticos: Pyotr Ivanovich Stucka (“La Función Revolucionária del Derecho y del Estado”) - ele chegou a ser o primeiro Comissário da Justiça e depois presidente da Suprema Corte -, e Evgueni Bronislávovich Pashukanis (“A Teoria Geral do Direito e o Marxismo”).
Esses nomes russos – e os demais aqui reproduzidos - são também encontrados com outras grafias parecidas, pois a transliteração do cirílico para o inglês admite variações, já que realizada a partir da pronúncia.
A tarefa de construção de uma teoria nova, exigida de Stucka e Pashukanis, foi imensa, vertiginosa, acidentada e incompleta. O domínio do conhecimento das noções básicas do marxismo a respeito de superestrutura e dos institutos desenvolvidos no Ocidente não era o bastante, de modo que os juristas soviéticos se impuseram saber o que significava, por exemplo, a legalidade revolucionária. Ela seria uma nova ordem vinculante do Estado? Poderia traçar diretrizes e até mesmo ser um freio às ações políticas da revolução?
Por outro lado, havia uma lógica que precisava ser enfrentada e ela era estranha ao fervor revolucionário:
“O proletariado deve ter uma atitude friamente crítica não apenas face à moral e ao Estado burguês, mas também face ao seu próprio Estado e à sua própria moral. Por outras palavras, ele deve estar consciente da necessidade histórica da sua existência mas também do seu desaparecimento.”
A crítica das formas jurídicas feitas pelos dois juristas soviéticos progrediu até voltar-se para a ... necessidade de permanência dessas mesmas formas enquanto o Direito era, ele próprio, transformado pela revolução.
Por exemplo, um dos postulados mais questionados na ação política era o da anterioridade da pena. A inclinação era a de interpretá-la como predomínio da forma, já que a maneira de burlar a nova ordem revolucionária era múltipla e aleatória. No entanto, Pashukanis sustentou:
“Os conceitos de delito e de pena são (...) determinações necessárias da forma jurídica, das quais não nos poderemos desembaraçar senão quando começar o perecimento da superestrutura em geral.”
Isto era demais na era Stalin, que começou antes mesmo da morte de Lenin, no início de 1924, em virtude da enfermidade deste. O jurista escolhido para representar o pensamento soviético sob o stalinismo foi Andrei Wyschinski, que logo veio a ser investido como procurador-geral da URSS, responsável pela acusação nos chamados processos de Moscou, nos anos 1930, quando a oposição foi eliminada.
Stucka perdeu seus cargos e viveu no ostracismo nos seus dois últimos anos, mas, tendo morrido antes que a repressão se acentuasse, manteve as honras e o direito a um sepultamento respeitoso. Já Pashukanis foi acusado de traição ao socialismo e executado em circunstâncias não esclarecidas, no auge do expurgo stalinista.
As formas jurídicas haviam sido banidas, mas com elas “a criança foi jogada fora junto com a água do banho”. A transformação revolucionária – em algo que era sobretudo totalitário - havia pervertido a noção de direito.
5. O novo mundo, que a ‘revolução de outubro’ de ‘17 anunciava, demorou para mostrar a sua face e, quando o fez, ela não correspondia à descrição, era de difícil reconhecimento.
O poder assumido sob o comando de Lenin mudava de métodos e objetivos diante de dificuldades, que não cessavam. O lema “todo poder aos soviets” foi cumprido à risca, porém a organização muitas vezes se mostrava precária, havia revolucionários de várias origens sociais como de etnias, culturas e regiões muito diversas. As discussões poderiam ser intermináveis.
Embora o conhecimento dos passos da revolução francesa fosse surpreendentemente grande, e a vontade de ir além ainda maior, a dispersão não ajudava a governar.
Este curioso registro do quotidiano daqueles dias vertiginosos mostra isso: a aristocrata Alexandra Kollontai, conhecida libertária e feminista que aderiu ao partido bolchevique, também participou muito ativamente daquela ‘vertigem dos dias’, entretendo relações amorosas intensas, finalmente fixadas em um líder marinheiro do forte de Kronstadt. Como as funções no soviet a que eles pertenciam passaram a ser negligenciadas em favor da volúpia do amor, seus camaradas levaram o problema para Lenin resolver e queriam um veredito severo, que foi este, o do cinismo apropriado ao momento: Kollontai e o marinheiro deveriam ser condenados a...ficar juntos.
Os soviets (conselhos) eram uma instituição da era dos czares, porém então funcionavam para acomodar a pesada burocracia civil e militar do império, não eram democráticos e muito menos populares. A revolução tomou talvez sua transformação em comitês revolucionários eleitos como uso adequado de uma referência já bem conhecida dos russos. Governar com a divergência que necessariamente surgia, porém, não era tarefa para quem guardasse a doutrina.
Cerca de um mês depois da tomada do poder pela revolução de outubro, foram realizadas eleições que já estavam convocadas pelo governo provisório para formar a assembleia constituinte. O partido mais votado, que veio a eleger o presidente do parlamento, não foi o bolchevique (175 deputados) mas o dos socialistas revolucionários (370 deputados).
A assembleia constituinte reuniu-se um só dia em janeiro de 1918, sendo então dissolvida. Foi instituído a partir daí o regime do partido único. Houve, portanto, um golpe de Lenin dentro da revolução. Três meses depois, em abril do mesmo ano, iniciou uma longa e destruidora guerra civil que durou até 1922. Ainda em agosto de 1918 Lenin sofreu um atentado a tiros, sendo atingido por uma bala no ombro e outra próxima ao pescoço. Fanya Kaplan foi acusada, confessou (“Considero Lenin um traidor da revolução”) e sofreu execução sumária. Os arquivos da velha Rússia guardam, no entanto, a incerteza sobre a autoria.
Em 1922 o médico alemão Felix Klemperer extraiu a bala no ombro e, segundo versões, viu-se que ela seria incompatível com a pistola Browning apreendida na ocasião do atentado. Foi considerando perigoso remover a outra bala. Naquele mesmo ano Lenin sofreu um derrame cerebral, a seguir outros, até 1924, quando morreu hemiplégico e mudo. Nesses dois anos ficou afastado do poder. Permaneceu em confinamento na cidade de Gorki, mantendo unicamente a intermediação de Stalin, em que pese Nadejda Krupskaja, mulher de Lenin, protestar com veemência e tentar outros contatos com a direção do partido, sem sucesso.
A última foto de Lenin vivo, em uma cadeira de rodas, permite vê-lo paralisado, em estado de duvidosa lucidez. Ainda assim, durante a enfermidade e em períodos que teve alguma melhora e recuperou a fala, ele ditou seu testamento político, que nunca foi lido ou considerado como documento de orientação política pelos dirigentes bolcheviques, agora reunidos no partido comunista. No documento Lenin alerta sobre o fato de Stalin haver concentrado demasiado poder e deter “rudeza intolerável” para um secretário-geral; refere Bukharin como “o preferido do partido”, mas carente de estudos sobre dialética e também censura Trotski, que considera “a mente mais brilhante”, por sua oposição ao comitê central, fonte para divisão partidária que ele, Lenin, temia acima de tudo. Por mais inacreditável que pareça, o testamento foi publicado pelo New York Times em 18 de outubro de 1926. Na URSS só veio à luz em 1989, durante o governo de Gorbachev.
Sic transit gloria mundi. A glória real de Lenin foi curta. Durante seu governo foram quebradas as regras que haviam, como princípios universais e como ambição de progresso civilizatório, servido para fomentar a crença em uma revolução grandemente transformadora.
A transformação ocorreu e foi grande como nunca.
Porém, foi então que – entre outros episódios de justiçamento - a família real sofreu execução. Um crime dentro da revolução. Matar crianças sempre foi e será um crime, em qualquer lugar, momento ou circunstância. C’est tout. Não deve ser esquecido, porém, que a revolução francesa esconde em seu legado grandioso o fato de haver prendido com apenas 8 anos o filho de Luiz XVI, mantendo-o na prisão até morrer, ainda criança, ao suposto propósito de extinguir uma dinastia.
Lenin também determinou a invasão da Polônia e da Ucrânia. Esta última acabou sendo incorporada à URSS, mas a Polônia resistiu, ganhou batalhas e manteve sua independência. Porém, pagou caro por isso, a partir de 1939, quando foi invadida por Stalin e pelos alemães, repartindo o país, como efeito do pacto Molotov-Ribbentrop.
A respeito da invasão da Polônia, foi recuperado dos arquivos abertos em Moscou o documento preparado por Lavrentiy Beria, chefe da NKVD (sucedida pela KGB a partir de 1954), sobre o qual foi posto despacho de próprio punho de Stalin, autorizando o julgamento sumário dos integrantes presos das tropas “inimigas” polonesas. Em razão disso sobreveio o assassinato em massa de cerca de doze mil oficiais na floresta de Katyn, cercanias de Smolensk, seguido da execução de outros militares poloneses que se encontravam em prisões, somando cerca de vinte e dois mil mortos (“Stalin, os Nazistas e o Ocidente”, Laurence Rees; filme “Katyn”, do diretor polonês Andrzej Wajda).
Mais que tudo, esses fatos - que são apenas episódios dentro de uma cadeia imensa - mostram que as revoluções podem cometer seus crimes e que a promessa de emancipação que trazem se transmuda em opressão rapidamente, principalmente quando há uma fabricação de “outros” que necessitam sofrê-la.
A estereotipação é ainda uma imensa, cruel e inesgotável fonte para espargir a ‘culpa’ sobre aqueles que “merecem” ser esmagados.
A URSS, conquanto criada sob a ideia de paz entre os povos, ainda invadiu e anexou territórios da Finlândia, sob Stalin (1939), e fez incursões militares punitivas sob Khrushchev na Hungria (1956) e sob Brezhnev na Tchecoslováquia (1968) e Afganistão (1979).
6. Não se pode exigir do poder que ele não seja exercido, diria alguém que leu Machiavel. As pessoas que se sacrificam por uma revolução, porém, pensam estar fazendo algo mais grandioso, que vá além disso.
De grandioso, no entanto, o que se salientou na Rússia soviética foi o culto à personalidade, denunciado por Khrushchev em 1956, mas que continuou, mitigado embora, pois a alma da velha Rússia, mantendo a brutalidade que remonta à formação de seu império, nunca sepultou de todo Ivan, o Terrível ou Pedro, o Grande, e não haveria de sepultar Stalin, até que a própria URSS morreu querendo reformar-se sob a orientação de Mikhail Gorbachev, sendo então inumada por Boris Yeltsin.
Outra nota que seria inverossímil se não se tivesse tornado um choque de realidade, como hoje se diz, está no fato de que o relatório Khrushchev de 1956, contra o culto à personalidade e os crimes de Stalin, foi publicado imediatamente ao Congresso do PCUS, mas só na imprensa estrangeira, através da Agência Reuters. Certamente o relatório influenciou a rebelião na Hungria, submetida então a uma ditadura férrea de Mátyás Rákosi, naquele ano.
O mesmo Boris Yeltsin – cuja imagem sobre os tanques que bombardearam o prédio do parlamento russo, quando os golpistas que pretenderam derrubar Mikhail Gorbachev foram derrotados, será tão duradoura como a outra em que ele aparece bêbado dançando em um palanque, em sua campanha para presidente da Rússia – também fez o contrário, exumou os corpos da família real, escondidos meticulosamente nos arredores de Ekaterinburg, e os entregou em cerimônia ‘sagrada’ para a Igreja Ortodoxa.
Uma revolução que celebra seu mentor como uma múmia, sendo que esta se mostra mais jovial do que Lenin aparece fotografado em seu leito de morte, não quer perpetuar-se no tempo, desenvolver-se na história; quer, ao contrário, paralisar o tempo, o que não é uma obra humana. Até a Bíblia esteve errada quando atribuiu a Josué o milagre de parar o Sol para que sua batalha terminasse. O Deus de então, conhecido pelos profetas que escreveram os livros, ainda não sabia da concepção geocêntrica de Copérnico, caso contrário autorizaria parar a rotação da Terra...
Hoje a Rússia é governada por um déspota nacionalista que, tendo feito carreira como oficial da KGB, tornou-se protegido de Yeltsin, talvez porque este não tivesse mais a quem recorrer, depois de precipitar o fim da economia socialista estatizada. Yeltsin agiu para desmontar o proclamado comunismo soviético com a mesma urgência e fascinação que, na velha estação Finlândia, Lenin incutiu nos revolucionários.
Foi Vladimir Putin, como prefeito de Leningrado, quem trocou o nome da cidade – após um plebiscito que patrocinou – para o atual, São Petersburgo. Ele também se reconverteu ao credo da Igreja Ortodoxa, à qual dá grande apoio, prestigiando seu patriarca.
Putin invadiu o lado oriental da Ucrânia e tirou-lhe o território da Criméia.
Os métodos autoritários são, pormenorizadamente, velhos conhecidos de Putin, que domina a prática de perseguir opositores até - com certa frequência - matá-los, além de executar ex-agentes de seu país que caíram em desgraça. Ele também faz um “rodízio de autoridade” com Dimitri Medvedev: enquanto um é primeiro-ministro, o outro é presidente, mas o poder sempre se desloca para o cargo que Putin ocupa.
A múmia de Lenin e suas estátuas, de um lado, e a decisiva afirmação de rumos contida nas análises políticas que elaborou, de outro, tudo remete a um tempo passado, mal encoberto, mas que não desperta atualidade de interesse em ser reconhecido.
Situações sobremodo irrisórias foram criadas: quando se realizar a Copa do Mundo em 2018, uma das sedes será Ekaterinburg, onde ainda existem monumentos e efígies artísticos de Lenin. Mas foi também ali que a família real foi executada e enterrada. Qual fantasma assombrará, ou melhor, despertará a curiosa, mas distante e volúvel, observação dos turistas esportivos?
Esse lado irrisório e alienado de ver o passado é o tema de uma comédia cinematográfica interessante e provocativa: “Adeus, Lenin”, do cineasta alemão Wolfgang Becker. Em ironia não há o que lhe exceda.
Mesmo afastada a indisfarçada propaganda contra as ideias socialistas em geral, que se disseminou na Guerra Fria (mas é muito anterior a ela, bastando lembrar a repressão no início do Século XX, de que é exemplo o vergonhoso julgamento-modelo de Nicolas Sacco e Bartolomeo Vanzetti, em Boston, EUA, nos anos ‘20); mesmo sem precisar lembrar que o macarthismo floresceu nos Estados Unidos dos anos ‘50 usando alguns métodos muito parecidos com aqueles que levaram Stalin à gloria no pós-guerra; mesmo assim se haverá de considerar surpreendente que os mais documentados, mais precisos, mais prestigiados por sua autenticidade museus sobre os crimes da União Soviética se encontrem...na Rússia (Museu da História do Gulag, do governo da cidade de Moscou; Museu Virtual Gulag, da prefeitura de São Petersburgo e, o principal deles, que foi prestigiado por muitos, incluindo o físico Andrei Sakharov - Prêmio Nobel da Paz -, o Museu Perm-36, que funciona em antigo campo stalinista de prisioneiros políticos nos arredores da cidade de Kuchino, na região dos Montes Urais). Este último atualmente sofre ataques de Putin, que não deseja dar projeção aos crimes já cometidos na Ucrânia, com a qual hoje luta.
A propaganda que viceja no Ocidente, fazendo proselitismo anticomunista sem estudar o fenômeno político em profundidade, peca de forma capital (aceitando-se aqui duplo sentido a essa palavra) ao apontar as vítimas do regime como sendo aquelas contrárias a ele.
O stalinismo só existiu e ainda existe como prática política porque resultou na concentração de poder que só se impunha por ser brutal e porque isso se fez em nome de uma concepção de história que não tinha nada a ver com ela e, sobretudo, porque também se afirmou ainda mais contra os que professavam, frequentemente com maior profundidade e grau de convicção, a praxis marxista.
Ou seja, a concentração do poder só existiu porque foram dizimados os iguais e com isso ficou eliminada a possibilidade de existirem os diferentes.
Repetir que ‘as revoluções matam seus filhos’ é bastante simplista, tanto quanto fácil de entender, como qualquer slogan. Porém, a revolução russa matou seus filhos, seus pais, os irmãos camaradas mais dedicados, a memória dos que se sacrificaram, a identidade dos corpos dos que desapareceram. Sem esta marca da morte não se pode compreendê-la e superar seus êxitos e fracassos.
7. Em 1911 Lenin visitou com Krupskaia em Paris o casal Paul Lafargue e Laura, ela filha de Karl Marx. O líder russo não estava empolgado com uma revolução iminente. Deixou registro de que ela não ocorreria em seus dias de vida, mas num futuro incerto. Escrevia na época o livro - talvez o único com densidade filosófica - “Materialismo e Empiriocriticismo”.
Embora Krupskaia estivesse entusiasmada, o encontro foi desanimador. A conversa morria; nenhuma perspectiva favorável se desenhava. Pouco depois, o casal Lafargue praticou o suicídio sinalizando que a velhice se apresentava difícil demais diante de um sonho irrealizado. O ato comoveu Lenin e ele, estoicamente, aceitou que a impossibilidade da luta política levava a “encarar a verdade frontalmente”.
Sem ter relação com o fato, mas digno de registro, a filha caçula de Marx, Eleanor, também se havia suicidado em 1898, em Londres, na meia idade e diante de uma vida pessoal particularmente difícil. Seu ex-marido lhe extorquia dinheiro alegando manter o irmão dela, filho adulterino de Marx com a empregada, mas que Eleanor considerava ser filho de Engels.
Paul Lafargue era o que hoje se chama um ativista. Produziu uma vasta obra de cunho político, mas a mais conhecida é um panfleto, surpreendentemente intitulado “O Direito à Preguiça”, antecedendo em muito a Domenico Di Masi... Naquele texto defende um recuo para o valor mítico do trabalho, que atribuía ao capitalismo:
“Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade . Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho (...)”.
8. O ocaso do Lenin histórico começou menos de um ano após empolgar o poder, em seguida ao atentado em agosto de 1918. Seguiu-se uma guerra civil devastadora que durou três anos. Antes que ela terminasse (outubro de 1922) Lenin sofreu o primeiro derrame (abril de 1922, poucos dias depois de submeter-se a uma cirurgia para retirada de uma das balas do atentado), do qual só se recuperou parcialmente.
No início do mesmo mês de abril de 1922 Stalin havia sido eleito (foi candidato único) secretário-geral do partido, pois Lenin propôs que alguém coordenasse as ações, que estavam dispersas e sobrecarregavam os líderes. As funções eram mais burocráticas, visavam a dar cumprimento às decisões partidárias. Com o tempo, o cargo de secretário-geral só serviu para acumulação de poder.
Há relatos que falam em enfartes sofridos por Lenin no lugar de AVCs, de qualquer maneira parece haver uma relação, ao menos temporal, com a hipótese de formação de coágulos na cirurgia. Outra versão consta no último texto que Trotski escreveu, com o sentido lógico excepcional, que era sua característica de estilo, onze dias antes de ser assassinado em 1940, em que sustenta o provável envenenamento, já que o próprio Stalin havia admitido essa possibilidade, alegando que Lenin lhe havia pedido veneno (artigo na internet: “Stalin matou Lenin ?”, por Leon Trotski). Em reforço a esta última versão, consta o registro no relatório médico de Lenin que ele sofreu convulsões próximo à morte, o que seria incompatível com um quadro de derrame.
Essa crônica política serve, quando menos, para demonstrar o caráter conspiratório que se havia formado na cúpula dirigente soviética, de tal modo que o espírito do coletivo havia “desmanchado no ar”, para usar uma expressão de Marx e Engels que está no “Manifesto”. Doravante, sob Stalin, os soviets seriam órgão de homologação e legitimação de uma política autocrática. Os debates intensos que eles haviam suscitado outrora virariam unanimidade na submissão e no incontido aplauso ao novo líder. Dissentir era trair. Começava a ser escrita a novilíngua, como George Orwell nomeou a semântica de então.
Escrevendo um famoso texto no fragor da invasão da Hungria, em 1956 (“O Fantasma de Stalin”), Jean-Paul Sartre disse que a justificação da doutrina soviética o fez “desesperar do marxismo oficial”. Acrescentou: “Marx teria desprezado esses burros pomposos que fazem da luta de classes uma ideia platônica ou que a fazem interferir como um Deus ex machina”.
A doutrinação apresentada (para justificar a invasão da Hungria) nada tinha a ver com os fatos, não examinava processos, apenas impunha a supremacia da URSS aos países satélites na Europa Oriental, que não a compunham. Após o Exército Vermelho esmagar a insurreição contra o governo despótico local (ditadura de Rákosi), deixando vinte e cinco mil cadáveres (segundo a versão do primeiro-ministro da Índia, Nehru, que a colheu junto a seu embaixador em Budapest), o político reformista húngaro de maior representação, Imre Nagy, foi preso e depois enforcado. Segundo gravações preservadas e hoje conhecidas, não confessou erros nem pediu clemência. Janos Kadar, que o sucedeu por imposição do Kremlin, dissolveu oficialmente os soviets na Hungria, núcleos da rebelião. Enfim, a política da Rússia havia regredido ao marco zero.
Nessa época (1956) Stalin já havia morrido mas, escreve ainda Sartre, não havia como lhe dar ‘sucessão’:
“Stalin nada deixou atrás de si a não ser um mundo feito por ele, que o renega. A desestalinização, na origem, foi mais uma descoberta do que uma decisão: libertos da grande sombra staliniana, os dirigentes perderam ao mesmo tempo a onipotência e a servidão; ficariam, o que quer que fizessem, mergulhados na coletividade nacional e ninguém mais poderia elevar-se acima dela; a política ‘retrátil’ tornava-se impossível; era preciso preparar uma política de expansão: como restituir vida à burocracia, ao Partido, a esses dois órgãos sangrentos e encarquilhados da dominação staliniana (...)?”.
O filme de Annaud mostra detalhadamente todo o processo de vinculação da opinião pública a Stalin, seu compromisso, mitificação, sacrifício e entrega aos objetivos escolhidos pelo dirigente. O outro filme, que complementa o primeiro, é “Círculo do Poder” (The Inner Circle), do grande diretor russo Andrei Konchalovsky. Ele trata do circulo interno do poder stalinista, através da versão do projecionista de seu cinema particular no Kremlin. A nota importante está no fato de que o projecionista, que se manteve fiel à memória de Stalin até o fim, estava vivo quando o filme foi feito, falou com atores e diretor, deu detalhes, transmitiu impressões, já que a obra foi baseada em relato seu. Uma nota particularmente bizarra é a de que a estreia do filme deu-se no Natal de 1991. No dia seguinte a URSS foi dissolvida por Gorbachev.
9. Nenhum outro artista superou Constatin Stanislavski ao expor a representação da cena histórica da Rússia antes, durante e depois da revolução, enfrentando todos os seus percalços, sobrevivendo a situações extremamente desfavoráveis, aproveitando as oportunidades e deixando uma obra definitiva sobre o papel do ator, o ‘sistema’ para atuar, que é um método de interpretação e o tornou conhecido no mundo. A par disso, Stanislavski criou casas teatrais, o essencial Teatro de Arte de Moscou e o Teatro Estúdio, este dedicado a peças experimentais, além de haver desenvolvido a ópera naqueles anos difíceis e de ter representado as obras de Tchekhov (Documentário “O Século de Stanislavski”, de Peter Hercombe, disponível legendado na internet).
Stanislavski morreu em 1938 com suas atividades completamente cerceadas, chegando a dar aulas e a fazer ensaios em sua própria casa.
Seu sucessor no Teatro de Arte, Vsevolod Meyerhold, foi preso logo após a morte do seu mestre e executado sumariamente tempos depois.
Como a história guarda suas indevassáveis ironias, após Stanislavski ministrar um curso em Nova York sobre seu método, um grupo de artistas locais criou o famoso Actor’s Studio, para aplicá-lo. Entre eles estava o imigrado grego Elia Kazan, diretor de teatro e cinema, depois autor de filmes memoráveis como “Clamor do Sexo”, “Um Bonde Chamado Desejo”, “Vidas Amargas”, “Sindicato de Ladrões” e “Viva Zapata!”, tendo revelado James Dean, Warren Beatty e Marlon Brando. Pois enquanto Stalin colhia os louros de sua política e se tinha transformado em um tzar vermelho nos anos ‘50 (talvez mais pelo sangue que derramou do que por sustentar a bandeira que Marx coloriu, após a Comuna de Paris de 1871, para homenagear os comunardos mortos), Elia Kazan denunciava artistas de Hollywood como comunistas perante o senador Joe McCarthy...
Vladimir Maiakovski foi ‘o poeta da revolução’ e parece ter escolhido a morte porque a epopeia à qual deu seu entusiasmo chegou ao fim, em 1930, com o stalinismo consolidado a partir de 1928, por meio da perseguição aos opositores.
A presença ainda hoje de Maiakovski é tão grande que, nos anos do regime militar no Brasil, um poeta brasileiro pouco conhecido (Eduardo Alves da Costa) escreveu um longo poema (“No caminho de Maiakovski”) que, pelos seus versos mais felizes, incitando à irresignação, foi atribuído ao artista russo e ainda, seguidamente, o é. Na época eles estampavam com frequência as faixas nas passeatas de protesto.
Máximo Gorki, igualmente um escritor esplendoroso, parece ter feito o caminho inverso ao de Maiakovski: inicialmente, alinhava-se aos mencheviques e o curso dos acontecimentos, embora fosse amigo de Lenin, o levou ao exílio na Europa, descontente com a escalada da revolução. Retornou depois, na vigência do stalinismo, e foi transformado em uma ‘glória viva’, porém levado a um modo de vida semi-recluso e sua atuação pública consistia em participar das cerimônias de engrandecimento do regime. Morreu também na glória, que não era mais a glória da revolução, mas a do stalinismo, em plena farsa dos julgamentos de Moscou (1936). Há suspeitas inextrincáveis de que tenha sido assassinado.
Outro que saiu da Rússia para fazer carreira no Ocidente e retornou para um confinamento brando, mas opressivo, foi o compositor Sergei Prokofiev. Stalin não o apreciava e classificava a todos os que estavam na sua condição como formalistas. Ele havia escolhido Dimitri Shostakovich como músico oficial, aprisionando o talentoso desse artista como representante da classe. Prokofiev morreu no mesmo dia que Stalin e, como morava perto do Kremlin, não pôde ser enterrado, pois toda a movimentação ao redor da muralha foi proibida, diante do velório (em que morreram pisoteadas centenas de pessoas, dado o sentimento histérico de orfandade) do guia genial dos povos (era o título que havia adotado). O corpo de Prokofiev, na obscuridade que sua pátria lhe dedicou então, antes de vir a ser reverenciado post mortem, ficou fechado cinco dias no caixão, em casa.
10. A revolução russa no período posterior a Lenin passou a ser reinterpretada. Não havia mais como ignorar que ela tinha muitas faces. Ainda no período leninista fora implantada a NEP, Nova Política Econômica, um plano que associava a coletivização estatal da atividade agrícola (kolkhoz) com a autonomia para os produtores rurais e também para pequenos negócios, restabelecendo em parte o sistema que permitia a volta dos antigos kulaks (proprietários de terras que dominavam a produção do campo antes da revolução).
Morto Lenin e caído em desgraça Bukharin, conceptor da NEP, a coletivização forçada voltou revigorada. Além disso, a concentração do poder nas mãos de Stalin fez com que os dirigentes não se identificassem uns com os outros. Primeiro, a oposição atribuída a Trotski foi atacada; depois, os que se uniram contra ele foram esmagados.
A revolução vinha mostrando um perfil desconhecido, fora do pregado internacionalismo, pois o governo dela resultante havia feito a invasão de países estrangeiros (pela guerra contra a pacífica Finlândia em 1939, por conquista de território, a Rússia chegou a ser expulsa da Liga das Nações). O Estado russo usava a força armada para impor reformas econômicas e políticas de expropriação, mas, principalmente, mergulhava em disputas pelo poder que, em tempos de monarquia, seriam classificadas como intrigas da corte. Este último aspecto transparecia quando eram classificadas tendências no comitê central e no próprio politburo de esquerda e direita.
Mas o PCUS não era então, todo ele, um partido de esquerda? Não era assim visto pelo mundo? Como poderia ser identificada uma direita dentro dele? Afinal, todos os que dirigiam o partido não eram adeptos da revolução?
O jogo inteiramente fisiológico estabelecido pela centralização do poder sob comando de Stalin deu vezo a denúncias sucessivas de traição, o que não obstava a aliança com ‘traidores’ de antes para eliminar outros ‘traidores’ depois. A propósito, criou-se extensa nomenclatura de imputações: desvio pequeno burguês, idealismo, formalismo, traição ao socialismo, aliança com o capitalismo...
Os anos de 1930 marcaram profundamente essa crise expressa na cizânia e nas perseguições. Elas já estavam instaladas quando ocorreu no fim de 1934 o assassinato de Serguei Kirov, líder muito popular de Petrogrado que havia sido o deputado mais votado para integrar o politburo, no congresso do PCUS realizado no início do mesmo ano (Stalin havia sido o menos votado, embora já exercesse a secretaria-geral).
O crime não ficou esclarecido quanto à motivação, embora o qui prodest apontasse para a cúpula que estava no poder, pois foi ela que iniciou imediatamente os expurgos em massa. Stalin havia montado o que ficou conhecido como apparatchik, praticava largamente o kompromat. A NKVD era uma polícia política que atuava internamente no país, como em qualquer outra ditadura no curso da história, tinha um prédio-quartel com a cadeia de Lubianca.
Instalou-se a razão equívoca, aquela em que os atos são justificados em nome de... Todo o comando revolucionário de 1917 foi eliminado através do que ficou conhecido como Processos de Moscou. O último a cair foi Leon Trotski, em 1940, exilado no México. Ele primeiramente, em face do seu grande prestígio que não viabilizava a eliminação de imediato, foi confinado em Alma-Ata, no Kazaquistão. Ali escreveu uma obra preciosa, seminal (“Revolução e Contra-Revolução na Alemanha”), em que aponta o erro da política soviética ao apoiar o confronto com os sociais-democratas em terras alemãs, pois isso só beneficiaria – como aconteceu – a ascensão dos nazistas.
Entre aqueles executados por Stalin os mais destacados eram Lev Kamenev, Grigori Zinoviev, Alexei Rykov, Karl Radek, o jovem marechal Mikhail Tukhaichevsky, Ievgueni Preobrajenski (que havia sido o secretário-geral do partido antes de Stalin), Nikolai Bukharin e Vladimir Antonov-Ovseenk, comandante militar importante, tanto na tomada do poder em 1917 como, a seguir, ao reprimir as resistências à nova ordem. Contudo, é importante que se lembre do stalinismo como uma força dominante e totalitária porque também dizimou milhares de outros militantes anônimos, dirigentes partidários intermediários e integrantes do congresso do PCUS em 1934.
Stalin passou a governar com uma nova elite dirigente afeiçoada a ele, moldada na subserviência e disposta a executar como um diktat fielmente sua política, nela despontando Nikita Khruschev, Viatcheslav Molotov, Lavrentiy Beria, Anastas Mikoian, Andrei Gromiko, Nikolai Bulganin, Georgiy Malenkov, Andrei Jdanov e Leonid Brejnev. Nenhum deles tivera papel relevante na revolução. Igualmente, nenhum deles conhecia ou expressava o marxismo com alguma competência que pudesse ser notada. Stalin também valeu-se de alguns poucos velhos bolcheviques, desde que inteiramente submissos, como Mikhail Kalinin, que ao fim emprestou seu nome para a antiga cidade de Königsberg, em cujas ruas transitaram Immanuel Kant e Hannah Arendt. Hoje se chama Kaliningrado e é um enclave russo no Báltico. Em seu último livro, ”A Festa da Insignificância”, Milan Kundera aponta esse fato como o lado irrisório da vida; irrisório para todas as vidas, para a vida de todos.
Para que se tenha ideia mais precisa do grau de submissão, a mulher de Molotov foi presa ao fim do período stalinista, quando o líder articulava o que entendia ser a “conspiração dos médicos”. A esposa de Molotov era médica e judia. Mantinha correspondência com uma irmã que havia emigrado para Israel, logo ao fim da guerra, quando o Estado judeu foi criado. Levada a questão para o politburo, Molotov votou pela soltura de sua mulher e o restante do colegiado contra. Molotov então dirigiu uma carta a Stalin (que foi recuperada) pedindo para reconsiderar seu voto, um dia depois, pois havia posto seus interesses pessoais acima dos do partido...e votou então pela prisão da própria mulher.
Depois que Stalin morreu em 1953, reinstalou-se o comando por triunvirato, a troika, que imediata e sumariamente matou Lavrentiy Beria, temendo seu domínio sobre a KGB, mas logo o poder foi empolgado só pelo novo secretário-geral Nikita Khrushchev, que assim pôde promover a desestalinização, o então chamado degelo, fazer a denúncia dos crimes políticos e do culto à personalidade, em 1956, e reabilitar vítimas. Todavia, não desnudou os gulags e, afinal, foi derrubado por uma conspiração da nomenklatura.
Com Brejnev iniciou-se um longo período (1964/1982) que, ao fim, era comandado por uma gerontocracia. Morto Brejnev, as opções políticas eram deprimentes: foi convocado o chefe da KGB, Iuri Andropov, homem já doente e com pouca expressão popular e internacional. Morreu em dois anos de governo inexpressivo, conquanto ortodoxo, e foi sucedido por outro líder ainda mais velho, Konstantin Chernenko, o último antigo bolchevique que chegou a conhecer Lenin. Assumiu o poder com sinais visíveis de decrepitude e morreu em um ano. Foi quando Mikhail Gorbachev surgiu como opção para o partido renovar-se, mas a renovação - vinda através da glasnost e da perestroika – foi o que levou desta vez a própria URSS à morte. Para entender melhor esse último período agônico, muito além do jardim das teorias escatológicas, há documentação, imagens e depoimentos preciosos que estão nos vídeos “Entrevistas de Gorbachev”, na internet, bem como no documentário “Adeus, camaradas”, do diretor russo Andrei Nekrasov.
11. Foi um italiano tísico, dedicado, talentoso, que passou onze anos na prisão, dela saindo para morrer em abril de 1937 e autor de uma obra singular, a maior parte dela escrita no cárcere, que acrescentou muito ao marxismo clássico, talvez porque – como assinalou um biógrafo – “na prisão tinha descoberto que, bem além das classes, havia todo um mundo desconhecido a explorar”.
Antônio Gramsci teve sua formação intelectual identificada com a escola historicista de Benedetto Croce. Guardava, portanto, a matriz idealista, porém poucos foram tão longe na interpretação expansiva do marxismo como ele.
Inicialmente, “Gramsci atribuía à revolução poderes taumatúrgicos: tornava bons os maus e fazia nascer o homem novo. (...) A vitória da revolução comunista na Rússia, onde não era esperada, parecia acentuar o caráter providencial do processo histórico” (“O Prisioneiro – A Vida de Antonio Gramsci”, Aurelio Lepre).
Isto nada tinha de estranho: considerar a “tarefa histórica” e a “missão histórica do proletariado” sob uma concepção redentora, de certa forma decorria de um providencialismo já encontrado no escritor ítalo-francês Joseph de Maistre (1753/1821), que examinou detidamente a revolução francesa.
É verdade que Maistre fez uma clássica abordagem conservadora, mas igualmente singular, pois introduziu o conceito de contra-revolução quando – e isso mostra sua perspicácia – a revolução francesa ainda se desenvolvia.
Segundo ele, se as revoluções decorriam de forças incontroláveis, elas trariam também embutida a contra-revolução, movimento antagonista destinado a restabelecer o equilíbrio rompido. Daí afirmar “a revolução conduz os homens mais do que eles a conduzem” (“Joseph de Maistre e suas Considerações Sobre a França Revolucionária”, artigo de Laurent de Saes, acessível pelo meio eletrônico). A frase recebeu variações como “não são os homens que fazem as revoluções, as revoluções é que se servem dos homens”. Essa refinada constatação foi sofrendo aperfeiçoamentos até ganhar uma conotação francamente marxista, a despeito de sua origem: “não são os revolucionários que fazem as revoluções, são as revoluções que fazem os revolucionários”.
O idealismo e mesmo o providencialismo, portanto, não podem ser opostos como um vício intransponível ou que macule abordagem do jovem filósofo sardo no Século XX. A expansão que o marxismo teve através do pensamento de Gramsci guarda uma densidade renovadora. Diz seu biógrafo citado que “Gramsci estava convencido, assim como Marx o estivera, da primazia do Ocidente: por esse motivo, considerava que somente no centro capitalista do mundo, e não na Rússia, Lenin poderia ter elaborado uma concepção marxista da revolução”.
Pode-se dizer, sem muita chance ao erro, que foi isso o que aconteceu. Porém, a oportunidade histórica para aplicar essa concepção marxista, elaborada em torno do capitalismo do Ocidente, deu-se onde “o elo da corrente era mais fraco”, na expressão de Lenin, ou seja, na senhorial, teológica e arcaica Rússia, que ainda mantinha a servidão camponesa e que se achava então devastada pela I Guerra Mundial.
Ela também era a pátria da mais poderosa literatura de impacto social: uma ficção insurgente e emancipadora. Lá ainda existia um mundo soterrado, o das “Almas Mortas” de Nicolai Gogol, dos códigos de honra que levaram um gênio como Tchaikovsky ao suicídio (que ainda teve de ser disfarçado como infecção pelo cólera) ou da repressão que internou Dostoiévski dois anos em prisão na Sibéria (daí a “Recordação da Casa dos Mortos”), depois de havê-lo submetido a um fuzilamento simulado.
Foi em virtude disso que Gramsci escreveu:
“A determinação, que na Rússia era direta e lançava as massas nas estradas ao assalto revolucionário, na Europa central e ocidental complica-se com todas estas superestruturas políticas criadas pelo maior desenvolvimento do capitalismo, torna mais lenta e mais prudente a ação das massas e, portanto, pede ao partido revolucionário toda uma estratégia e uma tática bem mais complexas e de mais fôlego do que aquelas que os bolcheviques necessitaram no período entre março e novembro de 1917”.
Porém, Gramsci frequenta o presente ensaio menos para se discutir aquelas que são conhecidas como “categorias gramscianas” e mais para acompanhar os descaminhos da sua frase mais conhecida, repetida ad nauseam por bocas imprudentes: “Pessimisme de l’Inteligence, Otimisme de La Volonté.” Trata-se obviamente de uma combinação conceitual idealista que a priori não é analítica e menos ainda dialética.
Esse aforismo foi utilizado pela primeira vez por Gramsci num artigo de abril de 1920 para o jornal “L’Odine Nuovo”, sob o título “Discorso agli Anarchici”, em que criticava a “fraseologia anarquizante”, manifestando-se em favor de “um outro mundo possível”, uma “forma histórica superior e total” (“Otimismo da vontade, pessimismo da razão”, tese de doutorado na UNESP de Roberto Dalla Santa, acesso pela internet).
Curiosamente, “um outro mundo possível” foi o slogan utilizado pelo Forum Social Mundial realizado inicialmente no Brasil. Frase igualmente um pouco mística, uma vez que a lógica indica constatação bem diferente: muitos outros mundos são possíveis, inclusive aqueles que são piores do que onde eu vivo.
Depois, já em 1929, Grasmsci voltou a usar a mesma oração em uma carta a seu irmão Carlo:
“(...) Parece-me que em tais condições [I Guerra], prolongadas durante anos, e com tais experiências psicológicas, o homem deveria alcançar um grau máximo de serenidade estoica, e adquirir a convicção profunda de que ele é, em si mesmo, a fonte das próprias forças morais, de que tudo depende dele, de sua energia, de sua vontade, da férrea consciência dos fins que se propõe, e dos meios que emprega para realizá-los – a ponto de jamais desesperar, e não cair nunca mais naqueles estados de espírito – vulgares e banais – a que se chamam pessimismo e otimismo. Meu estado de espírito sintetiza esses dois sentimentos e os supera: sou pessimista com a inteligência mas um otimista com a vontade”.
Pois a fortuna crítica dessa frase serve para ilustrar os descaminhos no reconhecimento do que é e do que deixa de ser marxismo.
Primeiro, o tradutor e principal divulgador das obras e pensamento de Gramsci entre nós, Carlos Nelson Coutinho negou um vínculo entre a afirmativa do filósofo italiano e o escritor francês Romain Rolland, sustentando que não se encontra nada parecido na obra deste último. Imagina Coutinho que a frase “teria saído de um livro de uma colaboradora de Rolland, a alemã Malwida Von Meysemburg, e seria de autoria do historiador suíço Jakob Burckhardt, numa classificação dos gregos como dotados de ‘pessimismo da concepção do mundo e otimismo do temperamento’” (“Dilma Rousseff erra ao citar Gramsci”, artigo de Irapuan Costa Júnior, jornal Opção, edição nº 2008, de 29/12/2013 a 04/01/2014).
Essa elucubração tão própria dos escoslásticos fez Coutinho improvisar... em vão. Na verdade, Romain Rolland havia produzido a resenha de um trabalho de Raymond Lefevbre, a que deu o título de “Le Sacrifice d’Abraham” e publicou no jornal “L’Humanité”, órgão do partido comunista francês. Ali Rolland escreveu “é essa íntima fusão – que, para mim, constitui o homem verdadeiro – de pessimismo da inteligência, que penetra toda ilusão, e otimismo da vontade”.
Parece tão óbvio que Gramsci, como militante e depois dirigente do PCI, partido comunista italiano, tivesse fácil acesso ao jornal francês. Foi dele que extraiu a expressão, que utilizou pelo menos duas vezes, e que acabou marcando ‘defeituosamente’ sua obra.
Por que defeituosamente?
Porque se trata de uma abordagem idealista. Tanto no texto original de Rolland como na carta que Gramsci enviou ao irmão há referências a “valores”, “homem verdadeiro”, “a fonte das próprias forças morais”, “férrea consciência”.
Apesar do filósofo italiano haver tentado dar uma conotação dialética, a afirmativa apenas revela uma esperança de superação, que ele provavelmente usou porque a realidade política da Itália se mostrava ruim com a ascensão do fascismo, mas que o entendimento disso não deveria levar ao esmorecimento, mas à vontade de lutar.
A obra de Gramsci é tão mais importante para ficar marcada por uma frase emprestada, ainda mais de conteúdo idealista, cujo uso em circunstâncias determinadas nada tem de errado, mas que para definir um pensamento sofisticado é uma redução deformadora.
Não é tudo.
Uma pesquisa sobre o uso adaptado da famosa frase mostra uma surpreendente variação de sentido, mas, para vergonha nossa – ou para vilipendiar o cadáver de Gramsci – a malsinada frase acabou tendo o pior uso por Dilma Rousseff. Na sua boca ficou assim: “O pessimismo dá inteligência. O otimismo dá vantagem”...
A corrupção da linguagem talvez seja o início de toda a corrupção...
A obra de Gramsci continuará a ser estudada, apesar dessas aberrações. Seu conceito de hegemonia é importante, pois a predominância das forças sociais não fica presa nas relações econômicas, mas se expande. O pensamento de Gramsci permitiu ver que não é verdade que o Ocidente não fez sua revolução. Aceitar o contrário significaria atribuir à revolução um sentido de milagre transformador.
Nem todas as revoluções são concentradas e executadas sob comando político. Muitos que guardam o ideário da revolução não se dão conta de que adotam um modelo de ideal que tem raízes platônicas. Esse ideal entra em choque com a realidade e passa a exigir uma imposição para se consolidar. É exatamente isso que ficou conhecido como “socialismo real”.
Maquiavel escreveu: “as armas são justas quando não há nenhuma esperança a não ser nelas”. Isto é definitivo e correto; é a razão primordial para a ruptura. Porém o que eram “as armas” no tempo de Machiavel e o que são hoje? O desprestígio público, por exemplo, atualmente pode ser obtido por armas que não eram sequer pensadas no tempo de Machiavel, assim como a destruição de carreiras, a discriminação ou mesmo a ruína econômica de concorrentes.
Muitos esquecem que as mais caras e preciosas propostas revolucionárias cultivadas em todos os tempos foram escritas à luz de velas e candeeiros. Hoje há – em grau superlativo, como nunca antes - um “saber revolucionário”, proporcionado pela ciência, pelas conquistas tecnológicas e pela cultura, paralelo à atuação política. Gramsci mostrou-se sensível a isso. A percepção de que ele havia expandido o marxismo foi notada até pelo seu antigo camarada de militância no partido socialista, então levado ao poder despótico na Itália. Mussolini registrou em uma de suas obras: “Se Gramsci se encontrasse naqueles dias na União Soviética e não na Itália, teria morrido de chumbo e não de doença”.
12. Nenhuma interpretação do marxismo foi tão ampla, depois de Gramsci, como a de Herbert Marcuse, filósofo alemão exilado nos Estados Unidos. Foi, na verdade, a última interpretação totalizante das transformações produzidas desde meados do século XIX, sob impacto da 1ª e da 2ª revolução industrial. Poucos reuniram a experiência e o conhecimento amplo de Marcuse. Ele participava das investigações da chamada Escola de Frankfurt e permaneceu ligado aos seus integrantes até o fim. Estudou na Universidade de Friburgo e foi orientado por Martin Heidegger. Iniciou-se assim na fenomenologia e no nascente existencialismo. Aprofundou o pensamento de Freud servindo-se das referências de outros autores, como Wilhelm Reich, e ampliando os temas freudianos expostos em obras como “O Mal-Estar na Civilização”, de modo a estabelecer os vínculos da psicanálise com a história e os temas marcadamente sociais e políticos.
Marcuse soube ser profundo e irruptivo, pôde reinterpretar o acervo de Marx pondo-se à altura desse autor.
Em meados dos anos 1950, surgiu “Eros e Civilização”, livro que trouxe os conceitos de “sociedade afluente” e “princípio de desempenho”, sendo que este decorria do que Freud já havia identificado como princípio da realidade (em oposição ao princípio do prazer). A alienação do trabalho ganhou outros contornos, diferentes do marxismo clássico, pois nada mais tinha a ver com o conceito de valor : “quanto mais completa for a alienação do trabalho, tanto maior é o potencial de liberdade”, uma vez que esta é identificada com um tempo amorfo em que as ‘verdadeiras’ escolhas passaram a se realizar.
Para Marcuse, o ponto de cisão – clivagem, diriam os pedantes – deu-se quando “as pretensões utópicas da imaginação ficaram saturadas de realidade histórica.” A atividade humana então também ficou demasiado vinculada ao funcionamento do sistema e a liberdade foi deposta em favor de um homem unidimensional.
O movimento de renovação igualmente mudou. As causas para a contestação passaram a ter outra motivação e também outros participantes :
“Essa Grande Recusa é o protesto contra a repressão desnecessária, a luta pela forma suprema de liberdade – ‘viver sem angústia’. Mas essa ideia só podia ser formulada sem punição na linguagem da arte. No contexto mais realista da teoria política ou mesmo da Filosofia, foi quase universalmente difamada como utopia”.
A enorme repercussão e as controvérsias em torno de “Eros e Civilização” levaram Marcuse a escrever o que chamou de “Prefácio Político”, em 1966, auge do prestígio de suas ideias. Ali ele anotou que “o conceito marxista estipulou que somente aqueles que estavam livres dos benefícios do capitalismo seriam possivelmente capazes de transformá-lo numa sociedade livre”.
Todavia, a sociedade afluente havia mudado: “A nova boêmia, os beatniks e hipsters, os andarilhos da paz – todos esses ‘decadentes’ passaram agora a ser aquilo que a decadência, provavelmente, sempre foi: pobre refúgio da humanidade difamada”.
Ao mesmo tempo, Marcuse manifestou-se contra a idolatria do labor :
“No processo de automação, o valor do produto social é determinado em grau cada vez mais diminuto pelo tempo de trabalho necessário para a sua produção. Consequentemente, a verdadeira necessidade social de mão-de-obra produtiva declina, e o vácuo tem de ser preenchido por atividades improdutivas. Um montante cada vez maior do trabalho efetivamente realizado torna-se supérfluo, dispensável, sem significado”.
No prefácio à segunda edição de “O Capital” Marx escreveu: “Em Hegel, a dialética encontra-se de cabeça para baixo. É preciso colocá-la sobre seus pés para descobrir o grau racional sob a capa mística”.
Ora, Marcuse fez precisamente isso, mas em relação à base social considerada na obra do próprio Marx.
Embora possa ser percebido um processo de quebra na análise marxista, na verdade o que há é a continuidade, já que o capitalismo tem como principal característica se recompor e, se recompondo, circunscreve em outros termos seu modo operacional, inverte ou amplia a cadeia produtiva, inventa necessidades, introduz novas tecnologias, em resumo, se reinventa.
Num outro texto igualmente poderoso, “A Ideologia da Sociedade Industrial”, Marcuse descreve o fenômeno que identificava em meados do Século XX:
“A particularidade distintiva da sociedade industrial desenvolvida é a sufocação das necessidades que exigem libertação – libertação também do que é tolerável e compensador e confortável – enquanto mantém e absolve o poder destrutivo e a função repressiva da sociedade afluente. Aqui, os controles sociais extorquem a necessidade irresistível para a produção e o consumo do desperdício; a necessidade de trabalho estupefaciente onde não mais existe necessidade real; a necessidade de modos de descanso que mitigam e prolongam essa estupefação; a necessidade de manter liberdades decepcionantes como as de livre competição a preços administrados, uma imprensa livre que se auto censura, a livre escolha entre marcas e engenhocas. (...)”.
Marcuse ainda ingressa no tema dos enganos que a própria expressão das palavras cria, e os desvenda com esta proposta dialética:
“Os esforços para reaver a Grande Recusa na linguagem da literatura têm o destino de ser absorvidos por aquilo que refutam”.
Num capítulo que titula “O fechamento do universo da locução” reporta-se a Roland Barthes:
“Dans l’état présent de l’Histoire, toute écriture politique ne peut que confirmer un univers policier, de même toute écriture intellectuelle ne peut qu’instituer une para-littérature, qui n’ose plus dire son nom. (No estado atual da história, todo escrito político pode apenas confirmar um universo policial, assim como todo escrito intelectual pode apenas produzir paraliteratura que não mais ousa dizer o seu nome)”.
Nos tempos modernos nunca ninguém havia ido tão longe, mas Marcuse deu ainda um passo, socorrendo-se de seus amigos e conterrâneos:
“Nada resta da ideologia a não ser o reconhecimento daquilo que é – modelo de um comportamento que se submete ao poder arrasador do estado de coisas estabelecido (Theodor Adorno). A contradição clara reafirma seu direito contra esse empirismo ideológico: ... ‘aquilo que é não pode ser verdadeiro’ (Ernst Bloch)”.
Marcuse conclui esse pensamento, e assim parece também concluir sua obra, “o mundo da experiência imediata – o mundo em que nos encontramos vivendo – deve ser compreendido, transformado e até subvertido para se tornar aquilo que verdadeiramente é”.
Porque a teoria desenvolvida por Herbert Marcuse, se não caiu no esquecimento, tornou-se tão pouco ‘instrumental’?
Para alguns, ou para muitos, a sua interpretação das mudanças sociais estava simplesmente errada:
“Passados mais de 30 anos dessas profeciais e ‘utopias sexuais’ e há quase 20 anos da sua morte, acontecida em 1979, Marcuse, maldosamente chamado por alguns de ‘guru surrealista’, eclipsou-se. Ao invés da Grande Recusa, da rejeição ao consumismo, o contrário. As massas acotovelam-se atrás de bugigangas. O poder de fogo dos outsiders mostrou-se pífio. O establishment continuou a amortecer os pedregulhos jogados contra ele, confirmando ‘a derrota da lógica do protesto’.
‘Che’ é grife e marca de cerveja!
Uma das imagens suas que nos resta é de uma assembleia no Audimax em Berlim, em 1967, na qual ele ilumina o ambiente enfumaçado e anárquico com sua poderosa cabeça branca. Mas parece que, apesar do esforço e da concentração dos circundantes, não o entendiam. O apóstolo da Grande Recusa terminou formando um exército de um homem só. (“O Apóstolo da Grande Recusa”, artigo do historiador Voltaire Schilling no jornal ZH de 25/07/1998).
Caberia repetir Ernst Bloch, citado por Marcuse: “aquilo que é não pode ser verdadeiro”.
A ampla teoria do filósofo alemão não está fundada em uma metodologia errada, ou ilusória, nem desconsidera os fenômenos reais de sua época.
O que ocorreu foi o enfoque que Marcuse fez, como ele afirma decisivamente, na sociedade industrial e suas conquistas. Logo a seguir, em data que certamente a História fixará em algum momento dos anos 1980, iniciou um novo ciclo – como sustenta o atual governo chinês – uma nova era: a globalização.
Então, tudo mudou.
O novo processo é o mais abrangente que se poderia conceber, ele é expansivo ad infinitum, engloba todos os saberes e poderes, os recursos onde quer que estejam, as metas mutantes determinadas por cada fase importante de avanço tecnológico, numa instabilidade que não é só consentida como desejada, pois cria novos afluxos, novas metas a serem alcançadas.
Nenhum dos que buscaram, pelo método científico, entender os novos acontecimentos, logrou alcançar até agora mais do que os gurus, sejam eles econômicos ou simplesmente místicos. Estamos em um novo ‘marco zero’, mas munidos de todo o conhecimento cumulativo que a civilização conquistou e, pela primeira vez, somos capazes de manejá-lo em toda a sua extensão. E também suportamos o peso imenso das adaptações (passadas) do princípio do prazer, mas as metamorfoses também vêm de um futuro antecipado para o qual é direcionada uma ânsia de realização sempre incompleta e incerta sobre qual a gratificação que será obtida.
Desde Marcuse nenhuma outra teoria totalizante foi inventada.
A globalização jaz exposta ao reconhecimento que, um tanto atônitos, agora lhe negamos.
Em “Razão e Violência”, R. D. Laing e D.G. Cooper situam bem o que hoje acontece:
“A história precisa ser sempre reescrita, destotalizada e retotalizada, pois como totalização está perpetuamente desatualizada. Não estará jamais completa até o momento em que haja uma parada no tempo. Aqui, o indivíduo é o único ponto de partida metodológico possível. Através de sua ‘praxis’, a dialética não é o produto da história; é o movimento original de sua totalização feito por ele com base na totalização que a história dele faz”.
Como a história, nesse passo, imita a natureza, que é indiferente ao indivíduo, caberia apenas acrescentar para honrar Marcuse: “O alcance da escolha aberta ao indivíduo não é o fator decisivo para a determinação do grau de liberdade humana, mas (sim) o que pode ser escolhido e o que é escolhido pelo indivíduo”.
13. Em 1949 uma nova revolução se fez “filha da guerra”, na expressão já transcrita de Trotsky, no caso a II Guerra Mundial.
No final de outubro de 2017, as encruzilhadas surpreendentes da história marcam o fim do 19º Congresso do PCC, o partido fundado por Mao Zedong (esta é a nova transliteração feita pelo chineses para Mao Tsé Tung), coincidindo com data em que, pelo calendário Juliano, foi realizada a “revolução de outubro” na Rússia.
É importante considerar os eventos desse Congresso, não porque seja inovador, mas exatamente porque propõe a continuidade da política chinesa, mas assumindo a identificação e as implicações supra revolucionárias de tal política.
Por primeiro, é de boa cautela tomar como autênticas só as notícias divulgadas pela agência chinesa Xinhua Net, evitando a polêmica sobre aceitação de outras fontes (embora haja uma convergência básica nas informações).
O atual líder chinês, Xi Jinping, esteve desterrado na aldeia de Liangyiahe por sete anos, durante a Revolução Cultural, último delírio grotesto do já senil Mao Zedong, a partir de 1966, mas que ainda mostrava sua inegável capacidade para tirar poder de supostos opositores, a quem qualificava como burocratas.
No Ocidente, a manobra de Mao suscitou a distribuição em massa do Livro Vermelho, que continha citações suas. Até Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir chegaram a ser detidos quando distribuíam nas ruas o jornal maoista “La Cause du Peuple”, sob influência de Benny Lévy, secretário de Sartre e editor daquela folha. O fato de Benny, após a morte do filósofo, ter se reconvertido ao judaísmo e, segundo suas palavras, passado “de Mao a Moisés”, mostra bem a leviandade das posições ‘filosóficas’ no Ocidente.
Na aldeia, Xi Jinping realizou trabalhos rústicos e submeteu-se a condições duras de vida, a título de reeducação, sendo reabilitado com sua família a partir da morte de Mao, sob o regime reformador de outro que havia “caído em desgraça”, Deng Xiaoping.
No 19º Congresso, o PCC assume oficialmente que continua guiado pelo marxismo-leninismo, que agora é definido como uma “alma”, mas acrescido do “pensamento de Mao Zedong, a Teoria de Deng Xiaoping, a Teoria da Tríplice Representatividade e o Conceito de Desenvolvimento Científico” e declara que “os enriquecerá no futuro”. Assim sendo, vigora uma doutrina cumulativa em que os contrários se acrescentam. Tudo é um caminho, já escolhido; a segunda “Longa Marcha” chinesa significará segui-lo em ordem até um patamar superior, com a certeza de que ele virá.
Essa composição ideológica significa que “o Pensamento representa os êxitos na adaptação ao Marxismo sob o contexto chinês”. Essas declarações visam a conduzir o país à “Nova Era”, que será estabelecida paulatinamente, até ser concluída por volta de 2049, quando o PCC completará um século no poder.
Ora, a nova era nada mais é do que a globalização. A China é o país que mais fortemente encampou esse movimento econômico que marca a história atual. É também o maior beneficiário dele. A mais intensa transferência de tecnologia de todos os tempos possivelmente foi feita dos países ocidentais mais avançados, além do Japão e Coréia do Sul, para a China, a partir do governo de Deng Xiaoping.
A China conquistou a “terceira via” que foi buscada em vão no Ocidente. O sistema de governo centralizado, sob comando e disciplina partidária, com controle de manifestações públicas e censura aos meios eletrônicos, tem produzido resultados não só evidentes como ainda espetaculares e o Ocidente não quer, há muito, “democratizar” a China.
O que ficou da revolução chinesa?
Que estranhos caminhos ela tomou?
Nada disso interessa fora da pesquisa de um scholar, pois a “segunda revolução da China” consiste no fato dela assumir politicamente o papel de implementar e ser fiadora da globalização.
Enquanto uma teoria que explique esse movimento incoercível permanece pendente, e não há nem mesmo uma nomenclatura estabelecida para os fenômenos que provoca, tudo o que se recolhe são conceitos como “hipermodernidade” (Gilles Lipovetski), (hipernomadismo) (Jacques Attali), “retrotopia” (Zygmunt Bauman), “pós-socialismo” (Alain touraine), “precariado” (Guy Standing) além de alguns movimentos, como as propostas do filósofo italiano Giorgio Agamben de um“poder destituinte” para resistir à ordem de imposição, bem ao contrário de seu ilustre conterrâneo socialista Norberto Bobbio, que procurava estabelecer a ordem, encontrando a coerência de um sistema normativo.
Em marco de 2017 reuniu-se o Congresso Nacional do Povo, o parlamento da China, com foco na elaboração de seu primeiro Código Civil. No curso do ano, Xi Jinping visitou faculdades de ensino jurídico pedindo-lhes empenho nos estudos para estabelecer um Estado de Direito no país.
Isto quer dizer que um país riquíssimo, tornado poderoso e ascendente, através de processos econômicos que se impuseram por serem resultantes de forças sociais em busca de progresso, poder ou hegemonia, pode também carecer da superestrutura que ocupou o pensamento de tantos, a ponto de parecer que ela era a determinante do avanço dos povos.
Este é o estágio em que nos encontramos: equilíbrios improváveis e até imprevistos teoricamente (China); ímpetos irruptivos mas também autodestrutivos (Primavera Árabe); incapacidade de superação, com o retorno cíclico aos dilemas anteriores (Argentina, Ucrânia); destroçamento institucional (Venezuela), manejo desorganizado e desorganizador do poder político, tornando-o promíscuo (Bolívia, Paraguai, Brasil e, atualmente, os ... EUA), subsistência de das formas arcaicas e duradouras de tutela associadas ao atraso em muitos países periféricos, tantos que nem cabe nomeá-los, para os quais parece que só a China globalizada volta seu interesse.
14. Toda revolução é um surto de êxitos que não se finalizam. Provocam a ruptura mas os resultados da mudança não se sustentam nela. O que vem depois é uma construção árdua e é durante ela que as propostas revolucionárias encontram os seus coveiros.
Fica então, como um fogo fátuo, a vagar entre os sonhadores e os desesperados, a ideia “do que poderia ter sido e que não foi’, mas é aí as revoluções transformadas morrem pela segunda vez, porque revolução nunca será apenas uma ideia; ela é uma transformação social de ruptura com o que se encontra estabelecido, porque não há mais vigência de uma ordem antiga, recusada e superada por concepções novas.
Há, portanto, revolução tecnológica; há revolução científica; há revoluções conceituais e normativas, há revoluções basicamente políticas, há revoluções que envolvem crenças, costumes, mitos, onde quer que a transformação se imponha e onde a ruptura crie um novo começo, que é sempre recomeço, pois quem revoluciona não recua a nenhum marco anterior, mas estabelece o seu próprio.
As revoluções russa e chinesa atravessaram seus pântanos de miséria econômica e humana mas a marca dos grandes fracassos foi sinalizada de maneira diferente. Os reveses agrícolas do período de Mao Zedong, conquanto devastadores, não levaram ao trauma político de vincular o esforço revolucionário a eles. Tanto é assim que a China ainda cultiva a ideia do caminho, tão antigo que remonta ao pensamento de Confúcio e Lao Tsé. O que mais importa é a acumulação da experiência. Assim, Mao figura ao lado de Xiaoping, seu antagonista, no “Pensamento” do PCC.
Já na Rússia, os conflitos que a revolução enfrentou ou provocou formaram uma coleção de traumas, pois foram examinados sob a óptica do Ocidente – que os povos asiáticos do vasto império russo e depois da URSS tanto fizeram por adotar.
A política da recoletivização forçada de Stalin provocou, em 1932 e 1933, a fome generalizada, mas ela chegou ao grau de dizimação na Ucrânia, grande produtora agrícola, que teve sua produção confiscada. Esse período recebeu o nome de Holodomor, neologismo que guarda o sentido de sacrifício pela fome. Essa foi uma das formas de genocídio praticadas no Século XX, junto com a perseguição aos armênios pela Turquia otomana e os massacres do Khmer Vermelho no Camboja. Ainda no período stalinista foram frequentes as remoções, em que populações inteiras eram trasladadas de inopino para outra região. Assim aconteceu, por exemplo, com os tártaros da Criméia, levados para o Uzbequistão.
Em 2017 a Rússia é talvez o país da terra que, oficialmente, mais ignora a revolução russa de 1917. O PCUS foi proscrito em 1991, mas ainda existe um forte partido comunista da federação russa, à margem do poder desde o governo de Boris Yeltsin. Ao mesmo tempo o 19º Congresso do partido comunista chinês projeta que completará o ciclo de ingresso na globalização em 2049. Hoje só a China tem um programa espacial em desenvolvimento para colonização da lua. Ela acredita que o sistema de integração econômica global é tão abrangente, tão expansionista, que somente poderá ser superado por outro de caráter interplanetário.
A Grande Recusa que Marcuse identificou frente à sociedade industrial hoje se manifesta, marginalmente embora, em relação à globalização. Porém, sem alternativas, sem análise objetiva do fenômeno, sem decifrar os novos mecanismos operacionais do sistema. Talvez o que mais marque a sociedade globalizada em oposição à sociedade industrial sejam as noções de mercadoria e valor.
Ninguém saberia prever como e porque existem produtos importantes para a vida de todas as pessoas que, conquanto realizados por uma tecnologia sofisticada, são oferecidos sem custo para os usuários, como os programas da Oracle e o navegador Mozilla. Outros se remuneram tendo em vista a exposição que alcançam na internet, pelo número de seguidores, pois assim atingem a um público potencial para os fins comerciais subsumidos
As formas de aquisição de riqueza não são mais aquelas clássicas do lucro (juro, salário, renda e aluguel), pois há bens imateriais em abundância que têm – como nunca tiveram – significado econômico. Também podem ser vendidos, com grande ganho, sites e programas do meio eletrônico apenas pelo potencial de renda futura atribuído a eles.
A produção de bens também é finalizada em lugares aleatórios, juntando peças ou elementos fabricados em outros quadrantes, onde é mais barato fazê-las. O trabalho tradicional é transformado em outras formas instáveis, que mudam, de tal maneira que o Banco Bilbao Vizcaia – BBC inaugurou no México uma unidade que não tem nenhum empregado. Toda ela é operada por via remota, sendo a filial visitada periodicamente para reposição e limpeza, através de serviço terceirizado. Esse caso é apresentado como um exemplo de precarização das relações que antes eram mais estáveis, envolviam papéis determinados na produção e assim eram reconhecidas.
Há traços evidentes de canibalismo social no processo de globalização, mas certamente os chineses percebem isso e tratam de controlar seus efeitos, já que se trata de um caminho iniciado e que não permite outras escolhas, depois de empreendido. Também não deve ser esquecido que as revoluções industriais, tão espetaculares em seus resultados, foram igualmente sórdidas nos piores efeitos que produziram: acidentes de trabalho, exploração da mão de obra, doenças de confinamento e exclusão social.
A propósito desses efeitos, um dos mais notáveis economistas do Século XX, John Kenneth Galbraith (“A Era da Incerteza”) recolheu o que chamou de “uma lenda” envolvendo John D. Rochefeller, capitalista exponencial dos EUA, fundador de uma dinastia econômica. No tumulo dele, sua faxineira inglesa teria escrito esses “versos exuberantes”, assim considerados por Galbraith, pois bem mostram que os grandes empreendimentos da era do capitalismo industrial produziram os seus horrores, e estes também precisavam de um requiem :
“Não pranteiem, meus amigos,
não chorem nunca por mim.
Pois nada mais vou fazer,
Nada, jamais, enfim.”
15. Antonio Gramsci pôde desenvolver sua análise original do marxismo porque afastou-se do pensamento soviético a partir de 1924, sendo que o ponto de ruptura ocorreu quando a embaixada da URSS em Roma ofereceu um almoço (no mês de julho) em homenagem a Mussolini, com quem a Rússia queria ter boas relações. Poucos dias antes, em 10 de junho, o deputado socialista Giacomo Matteotti havia sido sequestrado e morto por milícias fascistas (“O Delito Matteotti”, filme do diretor Florestano Vancini). Os socialistas e comunistas italianos viviam sob o jugo do fascismo desde 1922.
Graças ao distanciamento, a partir de então Gramsci elaborou sua teoria, que nada mais tinha a ver com o estado soviético. A permanência de seu pensamento ainda hoje se deve a isso.
O caminho para normatizar os princípios revolucionários foi ficando mais difícil na medida em que as revoluções foram identificadas não mais pelo que pretendiam, mas pelo que efetivamente produziram.
Hoje elas têm de ser avaliadas desde um estágio da civilização que não é mais aquele que existia quando esses grandes eventos clássicos foram deflagrados.
Tudo o que atualmente pensamos, cogitamos ou praticamos se dá dentro da globalização. É ela que surpreende todos os conceitos estabelecidos e os desmancha no ar. Por isso o caminho de não normatizar tem-se apresentado como o mais inteligente do ponto de vista prático ... mas tal senso utilitário resulta em um método abstenseísta: não saber, não entender, não valorizar, etc, pode levar a um cotidiano confortável, até que essa retomada da alienação se surpreenda com fatos incontornáveis, talvez brutais, talvez avassaladores, na primeira esquina.
Não é por acaso que o tema da revolução implique, frequentemente, na abdicação de normatizá-la. Assim ela “vive” no museu de cera dos sonhos. Mas convém lembrar um inteligente graffiti posto sobre o muro de um prédio abandonado em Porto Alegre, que acabou sendo lacrado, como é comum em nossas cidades decadentes: se desalojam nossos sonhos okuparemos seus pesadelos.
Seria o caso de fazer a doxografia revolucionária, de colher as principais apreciações sobre esses movimentos sísmicos que, tais os das placas tectônicas, recompõem o mundo?
A “era dos extremos”, do antagonismo social fundado em interesses de classe, acabou?
Teremos agora apenas a versão degradada de um onipresente extremismo desesperado?
16. Um tema da filosofia clássica, recorrente na obra de Nietzsche, é o do destino, o fatum, como preferia o escritor alemão. Quando se colocam muitas perguntas em torno da revolução – o que ela efetivamente é, o que a desencadeia, como termina, a que extremos leva, quando se dá a sua superação – é o momento de abrir a possibilidade de examinar as curvas tortas da história, seus torvelinhos, pois a linha reta, nesse caso, é uma abstração.
Quem corrigia os desmazelos dos personagens no teatro grego era o coro que, através das anunciações do corifeu ou dos cânticos (ditirambos), restabelecia as notícias do mundo exterior, as ordens dos deuses ou os imperativos dos reis e tiranos.
Por que o ilustre economista John Kenneth Galbraith foi buscar o exemplo de uma lenda para ilustrar os excessos do capitalismo industrial? Seria mesmo uma lenda?
Da mesma forma, há uma fábula sobre Tales de Mileto, conhecido como o fundador da filosofia grega, e ela foi comentada ainda na Antiguidade por outros filósofos, inclusive Platão (“A Escada dos Fundos da Filosofia”, Wilhelm Weischedel).
Tales, já célebre porque havia previsto um eclipse solar e usado a matemática para programar uma boa safra das oliveiras, caminhava pela noite observando as estrelas e cai em um buraco. Sua serva trácia ri e comenta algo como: enquanto queres saber o que se esconde no céu não vês o que está oculto diante dos teus pés.
O gracejo explicaria o caráter especulativo da filosofia. Entretanto, o conhecimento filosófico evoluiu e hoje ele abrange também o buraco que está oculto sob os pés.
As questões relativas ao destino, que vagueiam e se escondem na variação imensa das subjetividades, encontram o mundo objetivo – o buraco que está sob nossos pés – em uma narrativa exemplar do escritor italiano Antonio Tabucchi, “Sostiene Pereira” (Sustenta Pereira), levada ao cinema com o feliz título dado no Brasil “Páginas da Revolução”, dirigido por Roberto Faenza, com uma trilha musical soberba de Ennio Morricone e contando com uma das últimas interpretações de Marcello Mastroiani.
O velho jornalista Dr. Pereira está arrasado fisicamente, padece uma viuvez demasiado pesada e encontra equilíbrio emocional dedicando-se aos fatos da cultura, que resenha ainda com interesse e sensibilidade. Então as curvas do destino transtornam sua vida, na bela Lisboa de Salazar, que ainda guardava alguns ambientes da belle époque, já que Portugal não havia participado da carnificina na I Guerra Mundial.
A palavra latina fatum deu ao idioma luso o termo “fado”, nome da expressão musical única dos portugueses. Pois é um belíssimo fado que interpreta os transtornos do Dr. Pereira, assim:
“O segredo a descobrir está fechado em nós
O tesouro brilha aqui, embala o coração, mas...”
Nenhuma obra recente foi mais feliz em propor o tema da subjetividade e do acaso determinante, diante de uma imposição adversa do mundo exterior, do que o livro de Tabuchi e o filme de Faenza (e ainda do que o fado musicado por Morricone).
Splendor hominis àquele que, em qualquer tempo, toma conhecimento disso, age com confiança e se libera.
17. Volvemos a los diecisiete. Este pequeno trabalho tinha que ser realizado como memória de um testemunho de passagem, que não chega a ser um rito, mas que exige uma forma de expressão um pouco mais permanente, pois trata de fins e começos, de destinos que pareceram grandiosos e acabaram no sacrifício opaco, de escolhas e papéis que resultaram marcados por uma importância que nunca quiseram ter.
Onde estão os sacrificados?
Onde estão os propósitos, estudados diligentemente até o fundo de todas as suas implicações, dos que decidiram agir para emancipar a todos e a si mesmos?
Onde está, por fim, a própria memória de que tudo isso aconteceu, não foi inventado, mas que – se tivesse sido inventado, à maneira de García Márquez – seria tão somente para lembrar o que aconteceu.
Em alguns momentos da vida – mas, pelo menos, uma vez, até para os mais descuidados - nos será dada a oportunidade de embarcar no trem alemão.
Iremos tomá-lo?
Seguiremos até o fim da viagem ou desembarcaremos antes?
Chegaremos à velha Estação Finlândia dispostos a iniciar uma transformação?
Cem anos reviverão na consciência dos que completarem a viagem.
Ainda sabemos pouco: “O segredo a descobrir está fechado em nós”.
_______________
(LFC-out/2017)
Desembargador aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, com estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional, em Paris, e autor dos livros "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABEDA, Luiz Fernando. Cem anos que vivem em nós: o direito à memória coletiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 nov 2017, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50992/cem-anos-que-vivem-em-nos-o-direito-a-memoria-coletiva. Acesso em: 07 nov 2024.
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