Resumo : O presente artigo busca analisar alguns impactos da Psicologia e da Sociologia no Direito, e como a interseção nestas áreas do conhecimento podem ser úteis na atuação jurisdicional do Estado, em especial no que tange ao direito à privacidade. Existem diferentes mecanismos e institutos normativos no ordenamento jurídico brasileiro que tentam conferir uma proteção à referido direito fundamental, todavia a proteção almejada não tem sido realmente eficaz, na medida em que os avanços tecnológicos ocorrem em alta velocidade e o arcabouço legislativo nem sempre consegue acompanhar de forma satisfatória essas mudanças. Os impactos das novas ferramentas de interação social na Era Digital vêm transformando o comportamento do ser humano, o que reflete diretamente nas relações jurídicas.
Palavras-chave: Privacidade. Psicologia. Sociologia. Redes Sociais.
Sumário: Introdução. 1 A Psicologia e a Sociologia na atuação jurisdicional do Estado. 2 As diferenças entre esfera pública e esfera privada. 3 Aspectos sociológicos e psicológicos sobre o direito à privacidade. 4 Considerações Finais. 5 Referências.
Introdução
O termo privacidade pode ser entendido como o direito que cada indivíduo possui de manter sob o seu controle o conjunto de informações concernentes à sua vida, podendo decidir quando e onde essas informações poderão ser disponibilizadas publicamente, assim como decidir quem poderá acessá-las e usá-las. Esse conjunto de informações é composto, principalmente, por elementos subjetivos, como as relações familiares e afetivas, os segredos, os pensamentos, os hábitos, etc.
O direito à privacidade é protegido juridicamente de diferentes formas no âmbito internacional. No Brasil, referido direito está consagrado no rol dos direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988, mais especificamente na parte que lista os direitos e garantias individuais, no seu artigo 5º, inciso X. Subdivide-se, por sua vez, em direito à intimidade, vida privada, honra e imagem. Trata-se também de verdadeiro direito da personalidade, pois é inerente à pessoa humana e possui caráter majoritariamente subjetivo, consagrado pelos artigos 20 e 21 do Código Civil Brasileiro de 2002. Verifica-se ainda a existência de tipos legais no Código Penal Brasileiro que visam a punição de condutas criminosas que atentem à privacidade de outrem, nos seus artigos 153, 154, 154-A e 325. Ainda permanecendo na legislação infraconstitucional, a privacidade é tutelada também no Código Tributário ao tratar sobre o sigilo fiscal. A Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) e o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) também trazem em seu bojo uma preocupação com a privacidade dos indivíduos.
Em virtude do caráter subjetivo inerente ao instituto da privacidade, destaca-se uma premente necessidade da realização de uma análise mais voltada às searas da Psicologia e da Sociologia, não apenas para melhor entender o comportamento dos seres humanos, mas também com a finalidade de se buscar a conferir à violação da privacidade a melhor tutela jurídica, na medida em que este direito vem sofrendo uma série de transformações com o passar dos anos. O avanço da tecnologia é um dos principais fatores responsáveis por tais mudanças. As novas delineações do direito à privacidade, de uma forma ou de outra, sempre estiveram interligadas ao desenvolvimento científico e tecnológico. A compreensão de aspectos sociológicos e psicológicos costumam ser ignorados pelos operadores do Direito, todavia constituem elementos muito relevantes para uma adequada solução dos mais variados conflitos inerentes às relações sociais.
1 A Psicologia e a Sociologia na atuação jurisdicional do Estado
A Psicologia e a Sociologia são ciências que têm sido de grande valia na seara do Direito. Essa importância se consubstanciou na criação de ramos de estudo denominados Psicologia Jurídica e Sociologia Jurídica, que oferecem importantes ferramentas no amadurecimento da aplicação do Direito e ajudam no desenvolvimento de um olhar diverso acerca do indivíduo. Afinal, o Direito tem como principal objetivo a pacificação de conflitos entre indivíduos integrantes de um grupo. A sociedade nada mais é do que uma espécie de grupo. Desse modo, a aplicação do Direito exige uma compreensão mínima de aspectos psicológicos (para uma melhor compreensão do indivíduo) e aspectos sociológicos (para uma melhor compreensão da sociedade).
A Psicologia Jurídica é o ramo da Psicologia que põe à disposição dos magistrados ferramentas que vão assessorá-los com aspectos relevantes em determinadas ações judiciais, colacionando aos autos uma realidade psicológica dos agentes envolvidos. Esses aspectos transcendem a letra da lei, pois constituem uma análise aprofundada do contexto em que as pessoas que buscam o Judiciário estão inseridas. (MOURA, 2014, p. 22)
Segundo Miranda Júnior (1998, p. 29), o primeiro trabalho em conjunto da Psicologia com a Justiça se deu no campo da Psicopatologia:
A primeira demanda que se fez à Psicologia em nome da justiça ocorreu no campo da psicopatologia. O diagnóstico psicológico servia para classificar e controlar os indivíduos. Os psicólogos eram chamados a fornecerem um parecer técnico (pericial), em que através do uso não crítico dos instrumentos e técnicas de avaliação psicológica emitiam um laudo informando à instituição judiciária, via seus representantes, um mapa subjetivo do sujeito diagnosticado.
Nos dias de hoje, o Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, prevê, em seus artigos 150 e 151, a atuação de uma equipe interprofissional que tem a finalidade de trabalhar em conjunto com o juiz, sendo de fundamental relevância a existência de um psicólogo em referida equipe.
O critério biopsicológico adotado no Direito penal para a determinação da inimputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto também é um exemplo muito conhecido da aplicação da Psicologia no Direito. Não basta apenas a constatação de um quadro clínico de doença mental, é necessário também que o agente, em razão da doença, seja inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Por outro lado, a Sociologia Jurídica é um ramo de estudo que busca entender como se constroem as relações entre a sociedade e o Direito, a fim de melhor assimilar as interações, ligações e demais elos que ligam os indivíduos entre si, os indivíduos aos grupos, os grupos entre si e estes com a sociedade como um todo. (SILVA, 2012, p. 18-19)
As redes sociais são bons exemplos dessas interações entre os indivíduos. Embora a Internet não seja uma área de fácil controle, haja vista a velocidade de propagação de informações, ela vem sendo um tema de constantes e importantes debates na seara do Direito. Quando se aborda o tema redes sociais, é indissociável a ele a questão do direito à privacidade. Como tutelar a privacidade de um indivíduo em um ambiente majoritariamente público?
2 As diferenças entre esfera pública e esfera privada
A necessidade de estabelecer um conceito mais delimitado para os termos “público” e “privado” surgiu do forte sentimento político-social característico dos povos gregos, cujo entendimento era o de que a organização político-social da sociedade deveria estar dissociada da organização familiar do indivíduo. Há ainda a chamada esfera social, que seria uma espécie de interseção entre a esfera pública e a esfera privada, segundo Arendt (2007, p. 37):
A distinção entre uma esfera de vida privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas, pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-estado; mas a ascendência da esfera social, que não era nem privada nem pública no sentido estrito do termo, é um fenômeno relativamente novo, cuja origem coincidiu com o surgimento da era moderna e que encontrou sua forma política no estado nacional.
Seguindo a mesma lógica de Arendt, Ferraz Júnior (2003, p. 135) busca traçar uma diferenciação entre o direito público e o direito privado com base na distinção entre a esfera pública e a esfera privada. A esfera pública é representada pela sociedade, enquanto a esfera privada é representada pelo indivíduo. Cabe ao Estado buscar uma conformação entre as duas esferas aqui citadas a fim de que se atinja o denominado “estado social”. Apenas dessa forma é que se torna possível uma conciliação entre o público e o privado, propiciando a convivência entre os indivíduos em sociedade. Com isso, o papel do Estado, consubstanciado na sua atuação jurisdicional, é de fundamental importância na tentativa de resguardar o direito público e o direito privado, efetivando assim o Estado Democrático de Direito:
Juridicamente, o Estado, um verdadeiro organismo (burocrático) de funções, um ente abstrato, produto do agir político transformado em fazer, guarda perante os indivíduos uma relação de comando supremo: soberania. O direito, explicado pela soberania, torna-se comando, relação de autoridade no sentido de poder. A distinção entre o poder soberano e sua esfera e o poder dos indivíduos em suas relações marca, assim, a distinção entre a esfera pública e a privada e, por conseguinte, entre direito público e privado.
Em qualquer abordagem acerca do direito à privacidade é indissociável, portanto, a necessidade de fazer-se uma análise do binômio público/privado, tendo em vista o conteúdo histórico que esta relação carrega.
Ao longo dos anos, a dicotomia entre o direito à privacidade (direito individual) e o interesse público (direito da coletividade) tem causado conflitos de diferentes naturezas no âmbito jurídico, dificultando a atuação jurisdicional do Estado, haja vista que não constitui tarefa fácil buscar uma aplicação do Direito que possa conciliar os dois lados. O Supremo Tribunal Federal e os demais tribunais do país já tiveram a oportunidade de enfrentar a matéria. Entre os casos mais corriqueiros estão questões atinentes à publicidade na Administração Pública, vida privada de pessoas públicas e também temas relacionados à vigilância nos locais públicos. As dificuldades de se buscar uma atuação jurisdicional em consonância com o direito individual e o direito da sociedade/coletividade podem ser verificadas nas esferas constitucional, criminal, cível e, até mesmo, em uma vertente mais sociológica ou psicológica.
3 Aspectos sociológicos e psicológicos sobre o direito à privacidade
Em uma perspectiva sociológica, interessantes são as colocações de Bauman (2011, p. 31), que aborda em sua obra a necessidade da sociedade contemporânea em expor a vida privada, nos levando a refletir até que ponto o direito à privacidade merece proteção a partir do momento em que o titular deste direito “abdica” dele:
Numa surpreendente inversão dos hábitos dos nossos ancestrais perdemos de certa forma boa parte da coragem, energia e vontade para persistir na defesa da “esfera do privado”. Nos nossos dias, não é tanto a possibilidade de traição ou violação da privacidade que nos assusta, mas seu oposto: fechar todas as saídas do mundo privado, fazer dele uma prisão, uma cela solitária ou uma masmorra do tipo em que antigamente desapareciam as pessoas que perdiam as boas graças do soberano, abandonadas no vácuo da despreocupação e do esquecimento públicos – o dono desse “espaço privado” é condenado a sofrer para sempre as consequências de suas ações.
A falta de ouvintes ansiosos para arrancar à força nossos segredos – ou rasgá-los e surrupiá-los de dentro das muralhas da privacidade, para exibi-los publicamente como propriedade de todos, e incentivar as pessoas a desejar compartilhá-los – talvez seja o maior pesadelo para nossos contemporâneos. “Ser uma celebridade” (quer dizer, estar constantemente exposto aos olhos do público, sem ter necessidade nem direito ao sigilo privado) é hoje o modelo de sucesso mais difundido e mais popular.
Antes mesmo de Bauman, sociólogo da contemporaneidade, a exposição da vida privada na era da tecnologia já vinha sendo objeto de críticas, quando a Internet ainda não era muito acessível. O comportamento do ser humano começava a sofrer transformações perceptíveis por volta da década de 1970, já anunciando o provável aparecimento de distúrbios de natureza psicológica. A ideia de ser espionado causa atração no ser humano, ele sente que tem alguma importância no mundo. A vida privada e a solidão são consideradas sinais de excentricidade, e não apenas uma mera escolha de vida do indivíduo. (COSTA JÚNIOR, 1970, p. 16)
Essa exposição da privacidade é diretamente influenciada também pela sociedade de consumo e pelos meios de comunicação, que buscam mostrar qual padrão de vida é o ideal, qual tipo de vida você deve levar para ser considerada uma pessoa interessante aos olhos da sociedade. Todavia, há um interesse econômico por trás da propagação desse estilo de vida. Os meios de comunicação e as redes sociais são mantidos através da publicidade, condicionando os indivíduos ao consumo de determinado produto ou serviço em troca de uma vida invejável, que certamente garantirá “curtidas” e um sentimento de aceitação social.
A psicologia é capaz de explicar a atração que as redes sociais exercem sobre os indivíduos, fazendo com que estes, em algumas situações, fujam do parâmetro saudável de exposição da vida privada e negligenciem as políticas de privacidade oferecidas pelas próprias redes sociais.
O “sistema de curtidas” pode ser explicado por meio do chamado condicionamento operante, concebido por um psicólogo americano chamado Burrhus Frederic Skinner, no qual a repetição ou não de uma ação está condicionada às repercussões ou consequências desta, ou seja, a obtenção de um certo número de curtidas em uma publicação na rede social será determinante para que você queira postar cada vez mais, pois as curtidas proporcionam um sentimento agradável de aceitação. (EPAMINONDAS, 2008, online)
O comportamento humano é moldado após a observação das consequências de uma ação (curtidas), tendo em vista a necessidade de aceitação social inerente à natureza humana, como já ressaltado anteriormente.
Em virtude de uma recorrente violação do direito à privacidade e os variados danos causados na vida das pessoas, necessária se fez, ao longo do tempo, a criação de institutos jurídicos que pudessem propiciar uma forma de punir condutas que atentassem contra a privacidade, na medida em os danos provocados podem ser de difícil reparação à integridade psíquica do indivíduo. O número crescente de pessoas com problemas de depressão, ansiedade, dentre outros transtornos, não é uma mera coincidência com o advento e o crescimento das redes sociais na vida do homem contemporâneo.
4 Considerações Finais
Entende-se que a conciliação entre o público/privado precisa ser feita com a consideração de que o interesse público possui grande relevância para a efetividade da democracia, contudo não pode ser usado como uma espécie de justificativa para a restrição de direitos individuais. Destaca-se aqui o direito fundamental à privacidade, que tem sofrido fortes relativizações na sociedade contemporânea e, considerando a atual dinâmica social, ainda sofrerá mudanças em seus contornos em virtude da Era Digital e suas ferramentas de interação social, tais como as redes sociais. Os Tribunais já enfrentaram e possivelmente ainda enfrentarão temas relacionados à relativização da privacidade e suas consequências, não apenas como uma questão puramente jurídica, mas também como uma questão de saúde pública. Apenas o futuro poderá nos mostrar o real impacto da mitigação deste direito de grande importância na vida do ser humano e fundamental para sua integridade psíquica. O Direito precisa atuar em parceria com a Psicologia e a Sociologia a fim de que os operadores do direito possam melhor compreender a dinâmica social e pessoal do ser humano na sua vida privada, haja vista que, nos dias atuais, as questões jurídicas não podem ser resolvidas apenas com uma aplicação literal da lei ao caso concreto.
5 Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 1970. 116 p.
EPAMINONDAS, Felipe Rosa. Skinner e a descoberta do condicionamento operante. 2008. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2017.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
MIRANDA, JR. H.C. “Psicologia e Justiça — A Psicologia e as Práticas Judiciárias na construção do Ideal de Justiça”. In: Revista Psicologia Ciência e Profissão, CFP, Brasília, 1998.
MOURA, Solange Ferreira de (Org.). Livro Didático de Psicologia aplicada ao Direito. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, 2014. 128 p.
SILVA, Enio Waldir da. Sociologia Jurídica. Ijuí: Unijuí, 2012. 304 p.
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Flâmila Machado de. Reflexões acerca do direito à privacidade sob uma perspectiva sociológica e psicológica no direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 mar 2018, 19:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51401/reflexoes-acerca-do-direito-a-privacidade-sob-uma-perspectiva-sociologica-e-psicologica-no-direito-brasileiro. Acesso em: 06 nov 2024.
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