A crise política, social e institucional que assola a Venezuela ultrapassa os limites de atuação dogmática do Direito constitucional. Nada obstante, o início de uma possível retomada da institucionalidade política, consentânea com um regime democrático, passa imprescindivelmente pela realocação do discurso constitucional no centro do debate político venezuelano. Neste alusivo, referimos a sempre atual assertiva de Konrad Hesse, segundo a qual para que a Constituição tenha pretensão de eficácia, faz-se necessário uma vontade de constituição de todos os atores e agentes políticos encarregados de cumpri-la.
A atual Constituição venezuelana foi promulgada, após um referendo popular, aos 15 de dezembro de 1999. Seu anteprojeto foi redigido pelo governo de Hugo Chávez, e se caracteriza por uma forte atuação estatal, especialmente no que se refere à justiça social, à formação de uma sociedade multiétnica, reconhecendo ademais os direitos fundamentais à população indígena, e à integração latino-americana. Alterou-se também o nome da República que se passou a chamar Bolivariana, em alusão ao líder libertador venezuelano Simón Bolívar. A Venezuela é um país que faz fronteira com o Brasil, tem trinta milhões de habitantes e uma área territorial de quase um milhão de quilômetros quadrados.
A Constituição da Venezuela pode ser compreendida como uma Constituição analítica, haja vista seus trezentos e cinquenta artigos, destinada a garantir uma democracia participativa, pluralista e integrativa, tendo por objetivo a efetividade progressiva dos direitos humanos (artículo 19). De forma inovadora, para além dos clásssicos direitos individuais, civis, políticos e sociais, a Constituição bolivariana prevê como autênticos direitos fundamenatais os direitos da Nação, como a independência, liberdade, soberania, integridade territorial e autodeterminação nacional. Há, contudo, um extenso rol de direitos e garantias fundamentais positivado no título terceiro, à semelhança do elenco constante em nosso artigo quinto.
Especialmente a partir de 2013, ano em que o ex-presidente Hugo Chávez faleceu, sucedendo no cargo o atual presidente Nicolás Maduro, houve uma crescente precarização das condições básicas de vida da população em geral. Aliada às incertezas no campo político, à insegurança jurídica e ao aumento da impopularidade governamental, está a redução dos preços do petróleo que atingiu em cheio a economia venezuelana, principalmente pelo fato de que tal commoditie representa mais de noventa por cento das exportações do país. De uma maneira geral, a economia venezuelana sofre sobremaneira com a altíssima taxa de inflação, com a escassez generalizada de bens de consumo de primeira necessidade e com o aumento vertiginoso do desemprego. Não é por acaso que nos últimos sete anos o número de emigrantes aumentou em mais de quinhentos por cento.
Dois episódios, no entanto, refletiram a crise estrutural por que passa a democracia constitucional da Venezuela. O primeiro foi o aviltamento da forma republicana de governo perpetrado pela emenda constitucional número um, fruto de referendo popular realizado em 15 de fevereiro de 2009, cuja aprovação foi ratificada por mais de cinquênta e quatro por cento da população. Sem embargo, tal alteração constitucional introduziu no ordenamento jurídico venezuelano a possibilidade de reeleições ilimitadas para todos os órgãos de eleição majoritária, e permitiu, de forma casuística, a terceira eleição consecutiva de Hugo Chávez, em 2012. É cediço no meio jurídico, inclusive dentre os autores mais conservadores, que o principal pressuposto de um regime republicano é a alteração periódica dos mandatários do poder político, garantindo-se a todas as agremiações políticas a possibilidade concreta de aceder ao poder pela via institucional e dentro do marcos legais do Estado de Direito.
Outro acontecimento de gravidade extrema ao regime democrático e ao postulado da separação dos poderes foi a intervenção inconstitucional do Tribunal Supremo de Justiça no Parlamento venezuelano, retirando deste suas competências funcionais estabelecidas na Constituição. Sob o pretexto de insubordinação e desacato, a Assembleia Nacional da Venezuela foi profundamente coarctada em sua competência funcional e independência institucional por uma sentença da Corte Suprema de Justiça, cuja composição é majoritariamente alinhada aos interesses políticos do governo de Nicolás Maduro.
A Constituição da Venezuela é extremamente avançada em termos de técnica normativa de positivação dos direitos fundamentais, em especial na sua inter-relação com tratados e convenções internacionais de direitos humanos. Diferentemente do sistema constitucional brasileiro rectius da sistemática adotada pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento do RE 466.343 de 03.12.2008, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, ratificadas pelo Estado venezuelano, tem hierarquia constitucional (artículo 23), ou seja, integram o bloco normativo paradigma para o controle abstrato de constitucionalidade das leis aprovadas pelo parlamento venezuelano. Tal dispositivo constitucional revela a importância do direito internacional dos direitos humanos para o Estado da Venezuela, que o vincula estritamente, da mesma forma que os próprios preceitos constitucionais.
O texto constitucional da Venezuela, após uma análise estrutural dos seus dispositivos, é de ser caracterizado como extremamente avançado na tutela da democracia, dos direitos fundamentais e da participação política ativa, na esteira do que preconizava o jusfilósofo alemão Georg Jellinek através de seu propalado status activus civitates. Nada obstante, a intenção governamental de se afastar dos compromissos constitucionais, a discricionariedade política radicada na manutenção a qualquer custo do poder político e a submissão servil dos órgão jurisdicionais ao executivo estão, pouco a pouco, destruindo a estatalidade venezuelana, abrindo caminho para uma ditadura despótica a transformar a Constituição em mero diploma simbólico (semántica, nas palavras de Karl Löwenstein), legitimador de um poder autocrático. Na asserção paradigmática de Martin Kriele, a independência do judiciário é, inclusive, mais importante que a própria declaração de direitos, uma vez que sem a necessária independência e separação dos poderes não há ambiente democrático para a consecução dos mesmos.
Defronte o caos institucional por qual passa a Venezuela, apenas uma concertação de caráter supranacional poderá dar início à retomada da democracia venezuelana, fundada no principio da solidariedade internacional. Esta tarefa incumbe, sobremaneira, aos países latino-americanos, em especial às nações que compõem o Mercosul. Os órgãos e mecanismos internacionais de defesa da orden jurídica, da democracia e dos direitos fundamentais, como o Parlamento do Mercocul (Parlasul), sediado no Uruguai, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, bem como o próprio Tribunal Interamericano de Direito Humanos, com sede em São José da Costa Rica, são instrumentos de democracia supranacional indispensáveis para a retomada da institucionalidade venezuelana, e, consequentemente, para a volta do crescimento econômico abalado pela insegurança jurídica que assola o país.
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