Resumo: O presente artigo traz uma análise acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 143. 641/SP, ministro relator Ricardo Lewandowski, que recebeu e julgou procedente, de forma inédita, habeas corpus coletivo para determinar que mulheres grávidas, mães de crianças ou com filho com deficiência, cumpram prisão domiciliar preventiva, dando concretude ao microssistema de processo coletivo e mitigando a superlotação dos presídios nacionais.
Palavras-chave: habeas corpus coletivo, prisão domiciliar, Supremo Tribunal Federal.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Habeas corpus coletivo: do cabimento e compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro; 3. Encarceramento feminino: necessidade de medidas alternativas para diminuição da população carcerária; 4. Conclusão; 5. Referências.
1. Introdução
Em recente decisão (20/02/2018), no HC 143.641/SP, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, de forma inédita, concedeu ordem de habeas corpus coletivo determinando a substituição da prisão preventiva pela domiciliar de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e/ou pessoas com deficiência, sem prejuízo, contudo, da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.
Inicialmente, debater-se-á a decisão do Supremo Tribunal Federal sob o aspecto processual coletivo, isto é, a compatibilidade do habeas corpus coletivo com o ordenamento jurídico brasileiro, em especial com o microssistema de tutelas coletivas, assim como a necessidade e importância da utilização do referido instituto para a sociedade hodierna.
Outrossim, a posteriori, será trabalhada a problemática do encarceramento feminino e a violação maciça de direitos fundamentais, em especial, o desrepeito às normas que protegem a gestação, a maternidade e as crianças.
2. Habeas corpus coletivo: do cabimento e compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro
O habeas corpus é uma garantia fundamental prevista na Constituição Federal, art. 5º, LXVIII, e no Código de Processo Penal, art. 647 e seguintes, que tem como escopo proteger o direito de ir e vir da pessoa física. Surgiu, inicialmente, no ordenamento jurídico brasileiro, no Código de Processo Criminal de 1832, mas, até hoje, carece de previsão normativa na modalidade coletiva.
“O habeas corpus configura proteção especial tradicionalmente oferecida no sistema constitucional brasileiro. Não constava, porém, da Constituição de 1824, tendo sido contemplado, inicialmente, no Código de Processo Criminal, de 1832, e posteriormente ampliado com a Lei nº 2. 033, de 1871. (...) O habeas corpus destina-se a proteger o indivíduo contra qualquer medida restritiva do Poder Público à sua liberdade de ir, vir e permanecer.”[1]
Apesar de inexistir previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro do referido remédio constitucional em sua modalidade coletiva, a despeito do mandado de segurança - lei 12. 016/09 - e do mandado de injunção – lei nº 13. 300/16 - a Corte Suprema brasileira inovou ao admitir tal modalidade de ação coletiva. A decisão vem adimplir uma lacuna no direito coletivo penal, uma vez que, na seara cível, já está consolidada a importância das demandas coletivas na jurisprudência e na legislação.
A sociedade moderna encontra-se cada vez mais conectada dando origem a grupos de pessoas em situações semelhantes com potencial de gerar inúmeras lides individuais com causas de pedir semelhantes. Dessa feita, as demandas coletivas ganham espaço para a tutela dos já consagrados direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, conforme o art. 81 do Código de Defesa do Consumidor. Trata-se da segunda onda renovatório de acesso à justiça trazida por Mauro Capelletti e Bryant Garth:
“ A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencesse a um grupo, ao púlico em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares.”[2]
No mesmo sentido, sustentando a necessidade de um remédio constitucional coletivo para fins penais, afirma a Defensora Pública Thais Lima:
“Não há mais justificativas para que não se admita a tutela coletiva do status libertatis. A violação ao direito de liberdade não é diferente daquela que afeta, por exemplo, o direito de informação nas relações de consumo, pois pode atingir múltiplos sujeitos a partir de um ato danoso comum. Assim, a tutela efetiva da liberdade por vezes somente será alcançada através de instrumentos processuais de demanda coletiva, como o habeas corpus coletivo.” [3]
Também atento à discrepância entre a evolução do direito coletivo cível e penal, Jorge Bheron Rocha pontua:
“A ação constitucional de Habeas Corpus deve evoluir em sua interpretação e dialogar com as demais ações constitucionais também expressamente prevista na constituição, como a ação civil pública, o mandado de segurança e as disposições do novo Código de Processo Civil, com os temperos necessários, causando estranheza que admitamos melhores e mais amplos instrumentos para proteção coletiva de direitos na seara civil que na seara penal.”[4]
Visto isso, chega-se à conclusão da necessidade de meios para garantir direitos de natureza penal em sua modalidade coletiva, devendo também a liberdade ser tutelada na mesma modalidade, por justificativa, dentre outras, da fragmentariedade do Direito Penal, que ratifica o caráter de proteção às mais graves lesões aos bens jurídicos.
“Estabelece que nem todos os ilícitos configuram infrações penais, mas apenas os que atentam contra valores fundamentais para a manutenção e o progresso da humanidade (...). Portanto, o Direito Penal preocupa-se unicamente com alguns comportamentos (fragmentos) contrários ao ordenamento jurídico, tutelando somente os bens jurídicos mais importantes à manutenção e ao desenvolvimento do indíviduo e da coletividade.”[5]
Outrossim, a inexistência de norma jurídica expressa prevendo a garantia constitucional na modalidade coletiva, não é óbice para o conhecimento e aceitação pelos tribunais pátrios, em especial pelo Supremo Tribunal Federal. Lembrou o Ministro Ricardo Lewandowski[6] que em 1994, antes da sua expressa previsão legal, houve aceitação de mandado de injunção coletivo, recordando assim o Mandado de Injunção 20-4 DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello.
Ademais, apesar de inexistência de previsão expressa no ordenamento jurídico, utilizou-se como fundamento legal o art. 580 do Código de Processo Penal que possibilita a extensão de recurso para outras partes. Além disso, o ministro relator ressaltou acertadamente o previsto no art. 654, § 2º, também do Código de Processo Penal, que autoriza a concenssão de habeas corpus de ofício, demonstrando o quanto a ação constitucional é maleável.
Isso posto, restou cristalino o cabimento do habeas corpus na modalidade coletiva dando concretude e amplidão ao microssistema de tutelas coletivas, ao passo que preenche uma lacuna até então existente na seara criminal.
3. Encarceramento feminino: necessidade de medidas alternativas para diminuição da população carcerária.
No que tange à causa de pedir da referida ação coletiva, ou seja, o encarceramento de mulheres grávidas e de mães com filhos de até 12 (doze) anos de idade ou com deficiência, também acertou a corte suprema, dando eficácia aos direitos humanos e mitigando o caos em que vive o sistema carcerário brasileiro, ao permitir que aguardem o julgamento em prisão domiciliar. Importante ressaltar que a prisão domiciliar, como alternativa à prisão preventiva, passou a ter previsão expressa com a lei nº 12. 403/11, conforme elucida Eugênio Pacelli:
“A lei nº 12. 403/11 inova também ao prever outra modalidade de medida cautelar, ainda que semelhante às prisões. Trata-se da prisão domiciliar, prevista no art. 317, CPP, que determina o recolhimento permanente do indiciado ou acusado em sua residência, dali não podendo asuentar-se senão por meio de autorização judicial expressa.”[7]
Inicialmente, faz-se mister ressaltar que o sistema carcerário brasileiro foi declarado, pelo Supremo Tribunal Federal, na ADPF 347 MC/DF, um estado de coisas inconstitucional, uma vez que se encontra, lamentavelmente, em uma violação maciça e sistematizada de direitos fundamentais, necessitando de uma ação conjunta de todos os três poderes para superar tal situação.
Nesse norte, os presídios femininos não são exceção, tendo inclusive necessidades específicas que divergem dos presídios masculinos pela própria condição em que a mulher se encontra na sociedade, assim como condições biológicas diversas, a exemplo da gestação e a subsequente maternidade.
A proteção às necessidades das mulheres já vem, paulatinamente, sendo objeto de proteção do ordenamento jurídico brasileiro, assim como de normas internacionais. Nesse sentido, o ministro Ricardo Lewandowski trouxe como exemplo, em seu voto, o art. 5º, L e XLVIII, da Constituição Federal, que assegura às presidiárias condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação, assim como o direito de as mulheres cumprirem pena em estabelecimento distinto dos homens.
No que tange à legislação infraconstitucional, importante lembrar da lei 11.942/2009, que promoveu mudanças na Lei de Execução Penal, passando a prever o acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido, a existência de berçário nas penitenciárias, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los até, no mínimo, 6 (seis) meses de idade, bem como a existência de creche para abrigar crianças maiores.
A Corte Suprema também utilizou como fundamento normas jurídicas internacionais, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos. Também ressaltou, dando destaque à Organização das Nações Unidas, as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros (Regras de Mandela) e especialmente as regras de Bangkok que trazem normas específicas voltadas às mulheres encarceradas.
Apesar de todo esse arcabouço normativo internacional que dá guarida a um tratamento humano e satisfatório às mulheres encarceradas, em especial gestantes e mães de crianças, a realidade é que o Brasil segue descumprindo tais normas, como relembrou o ministro relator Ricardo Lewandowski:
“Apesar de o Governo Brasileiro ter participado ativamente das negociações para a elaboração das Regras de Bangkok e a sua aprovação na Assembleia Geral das Nações Unidas, até o momento elas não foram plasmadas em políticas públicas consistentes, em nosso país, sinalizando, ainda, o quanto carece de fomento a implementação e a internalização eficaz pelo Brasil das normas de direito internacional dos direitos humanos.”[8]
Em relação às crianças, a debatida decisão vem para dar eficácia a dispositivos legais que as protegem, desde o art. 227 e demais da Constituição Federal, assim como a todo o Estatuto da Criança e do Adolescente, norma doutrinariamente classificada como de proteção integral aos menores.
Além do mais, surge também como fundamento o recentemente promulgado Estatuto da Primeira Infâcia que alterou o art. 318 do Código de Processo Penal alargando as hipóteses de prisão domiciliar preventiva, passando a possibilitar o cárcere domiciliar em caso de mulher gestante e/ou com filho menor de 12 (doze) anos de idade.
Na lide coletiva em questão houve a discussão de como deveria ser interpretado o mencionado art. 318, chegando-se à conclusão que o verbo “poderá” tem como melhor interpretação “deverá”, não havendo necessidade de se conjungar com os demais requisitos da prisão provisória, facilitando a concessão de liberdade.
Assim, fixou o Supremo Tribunal Federal que, como regra, as presidiárias provisórias gestantes, com crianças menores de 12 (doze) anos ou com deficiência, responderão o processo em prisão domiciliar, priorizando o princípio constitucional da individualização da pena em que a criança, ser vulnerável, não pode sofrer as consequências da pena recebida pela mãe.
4. Conclusão:
Isso posto, a Corte Suprema, ao receber e conceder ordem de habeas corpus coletivo, de forma inédita, deu interpretação conforme à Constituição Federal, lendo o ordenamento jurídico em sua totalidade e não apenas enxergando o Direito através de normas específicas e isoladas. Ademais, traz posicionamento voltado à concretização dos Direitos Humanos e dos ideais de justiça social, não sendo apática à dificil realidade da sociedade brasileira.
Espera-se que essa decisão sirva de paradigma para a utilização do habeas corpus coletivo como forma de tutelar direitos violados de forma maciça, dando maior acesso à justiça, contribuindo para a celeridade e uniformização da jurisprudência nacional.
5. Referências:
CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso a? Justic?a. Traduc?a?o de Ellen Grace Northfleeet. Sergio Antonio Fabris Editor. 1988.
LIMA, Thais. Ministros, precisamos falar sobre Habeas Corpus coletivo. Disponível em: https://jota.info/colunas/a-defesa/defesa-senhores-ministros-precisamos-falar-sobre-habeascorpus-coletivo-22092016. Acesso em: 09 de março de 2018.
MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado. – Parte geral – vol. 1. São Paulo: Método, 2012.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2015.
[1]MENDES, G. F. Curso de direito constitucional. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 412-413.
[2] CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso a? Justic?a. Traduc?a?o de Ellen Grace Northfleeet. Sergio Antonio Fabris Editor. 1988, p. 37.
[3] LIMA, Thais. Ministros, precisamos falar sobre Habeas Corpus coletivo. Disponível em: https://jota.info/colunas/a-defesa/defesa-senhores-ministros-precisamos-falar-sobre-habeascorpus-coletivo-22092016. Acesso em 09 de março de 2018.
[5] Masson, Cleber. Direito penal esquematizado. – Parte geral – vol. 1. São Paulo: Método, 2012, p. 40- 41.
[6] Disponível em:http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf
[7] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 572 - 573.
[8] Disponível em:http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf
Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado da Paraíba - FESMIP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Paulo Sergio Oliveira de Carvalho. Habeas Corpus coletivo e o encarceramento feminino: comentários à decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 143. 641/SP Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 mar 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51435/habeas-corpus-coletivo-e-o-encarceramento-feminino-comentarios-a-decisao-do-supremo-tribunal-federal-no-hc-143-641-sp. Acesso em: 06 nov 2024.
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