Quando a saturação do sistema feudal de produção cedeu lugar às práticas mercantilistas, que conduziriam a maior parte do mundo ao que viria ser chamado de capitalismo, tudo aquilo que era considerado um valor não escaparia do processo de conversão em moeda. Bens de qualquer natureza poderiam ser trocados por algumas patacas de ouro, e a quantidade delas seria determinada pela “Lei da Oferta e da Procura”, como foi enfaticamente defendido pelos precursores do laissez-faire. Com o decorrer do tempo, o sistema capitalista foi sofrendo mutações, tornando-se industrial para mais tarde chegar ao modelo financeiro, através do qual o dinheiro seria capaz de se multiplicar na forma de geração espontânea.
Na fase atual, a arte de enriquecer em detrimento do prejuízo alheio talvez tenha alcançado o seu apogeu, pois o comércio mais promissor não é aquele que se limita à compra e venda de coisas, mas sim de pessoas, seja no todo ou em parte. Triste é reconhecer que as palavras proferidas pelo ilustre escritor Nelson Rodrigues, de que “o dinheiro compra tudo, até o amor verdadeiro”, não era sarcasmo, mas sim profecia. Pena não ter vivido o suficiente para ver uma das maiores financeiras do mundo incutir a ideia de que para desfrutar de momentos que não têm preço, precisamos adquirir um cartão de crédito.
O Estado sempre foi o grande regulador das práticas econômicas. Não há como negar que em alguns países essa influência se manifeste de maneira exacerbada, na contrapartida dos seus vizinhos que abordam o assunto com bastante parcimônia, mas, de qualquer modo, inevitavelmente, os governos acabam detendo ou tentando deter as rédeas das relações comerciais. Por essa razão, algumas atividades lucrativas são consideradas lícitas, enquanto outras, por ferirem valores éticos ou atentarem contra algum bem de suma importância para a vida em sociedade, como a saúde, a dignidade sexual e, até mesmo a própria ordem econômica, são consideradas ilícitas. No âmbito das práticas permitidas, o Estado atua direta ou indiretamente, ora como empresário, ora por intermédio da arrecadação de impostos. Entretanto, no que diz respeito aos empreendimentos ilícitos, os lucros costumam ser significativamente maiores, ainda que em nome de apenas alguns de seus agentes, sem contar o aspecto da arrecadação de tributos, considerando o princípio do pecunia non olet (o dinheiro não tem cheiro), como já ensinava Vespasiano, Imperador Romano, ainda consagrado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
O tráfico, tanto aquele que se dedica ao comércio de vida selvagem quanto aos dos mais diversos tipos de entorpecentes, tem sido uma das maiores fontes de riqueza do planeta. Em 2011, uma pesquisa realizada pela Global Financial Integrity (GFI) constatou que as organizações criminosas que atuam nesse segmento operam cerca de 650 bilhões de dólares ao ano, o que equivale a uma quantia superior ao PIB (Produto Interno Bruto) de diversos países. Um negócio tão lucrativo como esse, principalmente na área de entorpecentes, obviamente não seria administrado por pessoas desprovidas de inteligência. Os agentes que, por exemplo, atuam no ápice da imensa pirâmide que movimenta o tráfico de drogas são e raciocinam como empresários, e assim agem como qualquer outro, independentemente da natureza do negócio. Pensam de que forma podem levantar o capital para o investimento no setor, fazem pesquisa de mercado, analisam a concorrência, a disponibilidade de matéria-prima, calculam o custo da confecção, verificam a necessidade da construção de laboratórios, quando não ponderam a terceirização dessas ou de outras áreas envolvidas na produção e distribuição. Todavia, como se trata da prática de uma das mais graves infrações penais previstas na legislação vigente, incluindo-se na lista dos delitos equiparados aos hediondos, algumas preocupações adicionais são próprias dos senhores do tráfico, como a necessidade de ocultar ou dissimular os bens e valores auferidos, e, quando possível, converter o dinheiro arrecadado em ativos lícitos, condutas tipificadas na Lei 9.613/98 (Lavagem de Dinheiro).
A prosperidade dos empreendimentos do crime organizado é diretamente proporcional ao potencial de corrupção dos agentes públicos que possuem o dever funcional de combatê-los. Por esse motivo, os gastos com propina irão sempre se destacar no passivo dos balancetes elaborados pelos contadores mafiosos, diferentemente do que ocorre com aqueles que se aventuram em projetos de caráter lícito. Esses, por sua vez, assistem os seus ganhos sendo transferidos aos cofres públicos mediante cobrança de impostos. A ingerência estatal é tão forte que nos facilita compreender a razão de muitas empresas não conseguirem sobreviver à exorbitante carga tributária sem lesar o fisco. De uma forma ou de outra, o certo é que o Estado se fará presente em todos os negócios.
Os lucros advindos das operações delituosas não são convertidos apenas em mansões, carros de luxo e joias raras para os traficantes e agentes públicos coautores e partícipes. Toda essa riqueza circula na economia e aquece diferentes tipos de mercado, a exemplo da indústria bélica. Com o degelo no final da década de 80, houve quem especulasse o fim do poderio das empresas especializadas na produção de armamentos, em virtude de uma suposta queda em suas vendas, mas não foi o que de fato ocorreu. Aqueles que defenderam essa tese erraram ao menosprezar a capacidade do setor, cujo monopólio continua sendo dos EUA e Rússia, de promover e fomentar, por intermédio dos governos aos quais são subordinados, pequenos conflitos entre países subdesenvolvidos, em favor da manutenção do seu ativo. E com o mesmo objetivo foi preciso deflagrar outra guerra, cuja bandeira é o combate ao narcotráfico. Assim como ocorria na Guerra Fria, os oponentes, inevitavelmente, ostentam armas oriundas das mesmas indústrias. A vantajosa diferença para elas é que essa guerra não tem fim e não há muro que possa cair para mudar o rumo da história.
Ainda no tocante à indústria bélica, o que justificaria a venda de fuzis para países como o Brasil se não fossem as operações relacionadas ao tráfico de drogas? Se o traficante tem, a polícia também, e assim cria-se o círculo vicioso de um conflito sem nenhuma chance de trégua. Não é raro ouvir de pessoas de boa-fé questionamentos sobre as razões de não haver uma legislação que autorize a reutilização das armas apreendidas em poder de criminosos contra a própria criminalidade, em vez do depósito e destruição. A resposta é bem mais comovente do que a pergunta. Se as armas fossem apropriadas pelo Estado e legitimadas para o uso, não haveria necessidade por parte das forças policiais de modernizarem os seus equipamentos táticos. E assim haveria o risco de uma crise de superprodução.
O que mantém o monstro do tráfico é o que o alimenta: o vício. O dinheiro que sai do bolso do usuário é o combustível para alavancar todas as engrenagens para o seu funcionamento, desde o financiamento para a produção até a remuneração dos varejistas espalhados pelas bocas de fumo nas favelas ou nas grandes festas realizadas seio da high society. A apreensão de toneladas de drogas por ano e prisão de milhares de delinquentes não geram outro efeito senão o de fazer oscilar o preço da droga no mercado, sendo os prejuízos da má-sorte, previamente contabilizados por serem inerentes ao risco do negócio, repassados ao consumidor. Por essas e outras razões fica fácil compreender quando os agentes públicos honestos se sentem desempenhando o papel de enxugadores de gelo.
Nem mesmo na Convenção de Viena, realizada pela ONU em 1988, os participantes conseguiram se aproximar de alguma proposta significativa para o controle das drogas. Pensava-se em extinguir o tráfico mediante o sufocamento financeiro das organizações criminosas, combatendo-se, primordialmente, os métodos de lavagem de dinheiro. O mundo ganhou uma complexa legislação sobre o tema, inclusive o Brasil, mas nenhum avanço pode ser constatado ao olho nu.
Sendo assim, o que deve ser colocado em pauta é a redução progressiva do número de usuários, até que o tráfico passe a ser uma atividade menos lucrativa, e, por conseguinte, desinteressante aos investidores sem escrúpulos. Para isso é preciso fazer muito mais do que já foi feito na legislação pátria com a revogação da arcaica Lei 6.368/76 (Lei de Tráfico Ilícito de Entorpecentes), que disciplinava o tema, pela atual Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), redigida sob a ótica da chamada “justiça terapêutica”. Embora tenha insistido na aplicação de duras penas aos traficantes de drogas, que continuarão suas atividades mesmo dentro dos estabelecimentos prisionais, o vigente diploma legal criou mecanismos para prevenir e retirar o indivíduo da condição de usuário, oferecendo-lhe tratamento médico em estabelecimentos públicos para que largue o vício. Tratar o dependente é muito mais barato do que investigar, processar e encarcerar o traficante.
Infelizmente, a caráter coercitivo da lei não foi, nem será capaz de mudar a realidade social. Os governos pouco se preocupam em criar ou aperfeiçoar os estabelecimentos especializados que poderiam gerar algum resultado positivo. Preferem gastar bilhões nos métodos de enfrentamento, aprisionamento e incineração. Nos lugares onde a repressão é maior, punida inclusive com pena capital – o Brasil entrou nesse contexto com a regulamentação da Lei 9.614/98 (Lei do Abate) ao arrepio da Constituição da República - a droga simplesmente se revela mais cara, pois os riscos justificam um prêmio maior aos que se aventuram a desafiar a morte.
O mundo tornou-se miserável, essa é a premissa maior. O desemprego, a desagregação familiar e o desalento estão em todos os cantos do planeta e somam forças para agravar o que há muito tempo foi enraizado. Não é o medo da morte pela pena ou pela overdose que faz com que alguém passe a amar a vida e recuse qualquer contato com as drogas. A legalização também não é o caminho para a erradicação do problema, mesmo porque se pode traficar tudo, inclusive o que já se encontra regulamentado pelo poder público. É o tráfico ilícito do lícito, como ocorre com os medicamentos, entre outros produtos.
Um dos maiores sucessos da banda Legião Urbana, na voz do polêmico vocalista Renato Russo, foi a música Geração Coca-Cola, fazendo alusão a uma juventude programada para ser totalmente alienada aos problemas político-sociais, além de consumidora de cultura alienígena. Sobre esses aspectos não houve qualquer inovação, mas talvez tenha chegado a hora de rever um nome mais apropriado, porque a cola virou coisa do passado, perdeu para o Crack, substância mais forte, mais destrutiva e mais barata.
SERGIO RICARDO DO AMARAL GURGEL é sócio em COSTA, MELO & GURGEL Advogados; autor da Editora Impetus; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GURGEL, Sergio Ricardo do Amaral. O negócio do tráfico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 maio 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51658/o-negocio-do-trafico. Acesso em: 23 dez 2024.
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