Ênio Walcácer de Oliveira Filho[1]
Resumo: A Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009 trouxe mudanças significativas no Título VI da parte especial do Código Penal ao disciplinar os chamados crimes contra a dignidade sexual, que na antiga redação eram denominados crimes contra os costumes. O presente artigo tem como objetivo buscar decisões de aplicação da presunção legal e outras decisões que não obedecem à norma por entender que a vulnerabilidade depende de contexto, podendo ser um adolescente de 13 anos consciente o ato sexual consentido. Surge para isso, a pergunta: São aplicadas no Direito brasileiro as determinações do art. 217-A do CP, para a proteção dos vulneráveis? Após a promulgação da referida lei, houve grande controvérsia sobre a vulnerabilidade e a idade da pessoa, delimitada no artigo em questão. Em 25 de outubro de 2017, o Superior Tribunal de Justiça aprovou a Súmula 593 que decidiu que O crime de estupro de vulnerável configura-se com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente. Embora a discussão não tenha terminado, a doutrina majoritária tem o mesmo entendimento.
Palavras-chave: Estupro de vulnerável. Art. 217-A da Lei nº 12.015/2009. Relativização.
Abstract: Law 12,015 of August 7, 2009 brought significant changes in Title VI of the special part of the Penal Code in disciplining the so-called crimes against sexual dignity, which in the old wording were denominated crimes against customs. The purpose of this article is to search for decisions to apply the legal presumption and other decisions that do not comply with the norm because they understand that vulnerability depends on context, and a 13 - year - old teenager may be aware of the consensual sexual act. To this end, the question arises: Are the provisions of art. 217-A of the CP, for the protection of the vulnerable? After the promulgation of this law, there was great controversy about the vulnerability and the age of the person, delimited in the article in question. On October 25, 2017, the Superior Court of Justice approved Summary 593 which ruled that The crime of rape of vulnerable is configured with the carnal conjunction or practice of libidinous act with less than 14 years, being irrelevant the possible consent of the victim for the practice of the act, previous sexual experience or the existence of a loving relationship with the agent. Although the discussion is not over, the majority doctrine has the same understanding.
Keywords: Rape of vulnerable. Art. 217-A of Law 12,015 / 2009. Relativization.
Sumário: 1.Introdução – 2. O estupro de vulnerável de acordo com o Código Penal de
1940 – 3. A Lei Nº 12.015/2009 e o delito autônomo de estupro de vulnerável 4. A
vulnerabilidade e o critério idade previsto no artigo 217-A do Código Penal 5.
Considerações Finais - 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
As mudanças constantes na sociedade acabam por exigir do ordenamento jurídico a busca pela adequação ao período histórico-cultural em que está inserido. Entretanto, o Direito está sempre em considerável atraso, já que é necessário que primeiro surjam os fatos para que então, o legislador possa com fundamento neles, moldar os preceitos legais com a edição de novas leis para regular, punir ou descriminalizar condutas.
Estudos demonstram que dentre os temas relativos à proteção dos direitos da criança e do adolescente, considera-se a violência sexual uma das maiores violações. É, sobretudo, um processo de violência hediondo que quando não leva ao óbito deixa sequelas que se prolongam por toda a vida. Representa uma lesão profunda nos direitos fundamentais daqueles que merecem proteção especial e integral por estarem num processo de desenvolvimento.
Nesse contexto, a Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, modificou significativamente os dispositivos do Código Penal (CP), ao prever os crimes contra a dignidade sexual, que na antiga redação eram denominados crimes contra os costumes. Esta lei trouxe o art. 217-A que representa o tipo penal autônomo denominado estupro de vulnerável.
Desse modo, não há que se falar mais em violência presumida do art. 224 do CP que restou revogado pela nova lei, portanto, na incidência da causa de aumento de pena do art. 9º da Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos). Além disso, a Lei nº 12.015/09 promoveu a unificação de tipos antigos, como a conjunção carnal (art. 213, CP) com o revogado delito de atentado violento ao pudor (art. 214, CP), entre outras modificações.
A nova redação amplia o alcance ao definir estupro como: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (BRASIL, 2009).
Dessa forma, equiparam-se homens e mulheres no polo passivo do delito, pois substituiu-se o termo mulher por alguém, que refere-se a qualquer ser humano vivo, isto é, qualquer pessoa pode ser vítima desse delito.
Ademais, no caput do art. 217-A, do CP, o legislador teve como objetivo a proteção de crianças e adolescentes até 14 anos de idade. Além disso, o parágrafo § 1o , protege pessoas em situação de vulnerabilidade tanto psicológica quanto em razão de alguma droga ou vulnerabilidade (esta não presumida, devendo ser comprovada)
Vale ressaltar que, este conceito não pode ser confundido com o de criança e adolescente prescrito no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que prevê em seu art. 2º: ” Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (ECA, 1990).
Portanto, o referido dispositivo delimita a definição para os efeitos do ECA e, assim, não abrange o significado de vulnerável disciplinada no CP. Por conta dessa limitação há grande discussão sobre o tema alvo de inúmeras interpretações distintas, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, em especial com relação à capacidade da vítima, entre 12 e 14 anos, de ter o necessário discernimento para consentir com a prática do ato sexual.
O presente artigo tem como objetivo buscar decisões de aplicação da presunção legal e outras decisões que não obedecem à norma por entender que a vulnerabilidade depende de contexto, podendo ser um adolescente de 13 anos consciente o ato sexual consentido. Surge para isso, a pergunta: São aplicadas no Direito brasileiro as determinações do art. 217-A do CP, para a proteção dos vulneráveis?
Tratando-se de posicionamento divergentes, o conhecimento da nova legislação auxilia na modernização e consolidação da efetiva Justiça Penal e, principalmente na proteção daqueles que são vulneráveis.
O método de abordagem utilizado na pesquisa é de pensamento dedutivo, de natureza qualitativa, elaborada por meio de técnica bibliográfica, com base em legislação, doutrina, jurisprudência, periódicos, artigos científicos e levantamento de dados.
2. O ESTUPRO DE VULNERÁVEL DE ACORDO COM O CÓDIGO PENAL DE 1940
Não houve previsão para o crime de estupro de vulnerável no CP de 1940. Nos casos de prática da conjunção carnal contra a vítima menor de quatorze anos, ou ainda com pessoas alienadas ou deficientes mentais incapazes de manifestar livremente a sua vontade, o sujeito ativo do crime tinha sua conduta tipificada no crime de estupro, que era previsto no art. 213, Título VI (Dos crimes contra os costumes), combinado com o revogado artigo 224, Capítulo I (Dos crimes contra a liberdade sexual) ambos do CP, imputando-se uma violência ficta/presumida (NUCCI, 2010, p. 24).
Masson (2014, p.4) pondera que: “A expressão crimes contra os costumes era extremamente conservadora e determinava uma linha de comportamento sexual imposto pelo Estado às pessoas, por necessidades ou conveniências sociais”.
Ressalta-se que a figura típica do estupro do art. 213 do CP, tinha como elementos que caracterizavam a conduta de constranger mulher, qual seja, o ato de utilizar a violência ou grave ameaça como forma de reduzir as defesas da vítima, tornando o ato não consentido e irresistível, ou uma submissão de vontade. e a finalidade de praticar com ela conjunção carnal além de usar a violência ou grave ameaça, (NUCCI, 2010).
Sobre o assunto leciona Greco (2016, p. 734):
O núcleo do tipo é o verbo constranger, determinado pela previsão legal que no dispositivo legal é utilizado no sentido de obrigar a vítima a praticar o ato sexual. Trata-se, portanto, de modalidade especial de constrangimento ilegal, praticado com o fim de fazer com que o agente tenha sucesso no congresso carnal ou na prática de outros atos libidinosos.
Observa-se que de acordo com o Código Penal de 1940, o delito de estupro apenas seria caracterizado nos casos em que a conduta fosse praticada contra pessoa do sexo feminino pelo constrangimento de mulher à conjunção carnal[2], mediante violência ou grave ameaça (BRASIL, 1940).
Desta forma, o sujeito passivo desse crime seria apenas mulher enquanto o sujeito ativo somente indivíduo do sexo masculino, ou seja, em relações heterossexuais, com a efetiva conjunção carnal. Atualmente, não exige mais a lei penal, para efeito de caracterização do estupro, que a conduta seja dirigida contra uma mulher (GRECO, 2016, p. 734).
Jesus (2010, p. 126) afirma que:
Verifica-se na leitura dos dispositivos penais que a liberdade carnal pode ser violada mediante o emprego de violência (física ou moral) ou de fraude. Em ambas as hipóteses haverá o comprometimento da vontade do sujeito passivo, que estará praticando atos sexuais (normais ou anormais) sem a eles emprestar seu consentimento. Para a caracterização dos delitos é indispensável à violência (física ou moral) ou a fraude, sem o que o fato será penalmente indiferente ou não se constituirá em crime contra a dignidade sexual.
Entretanto, a violência aludida no referido dispositivo legal poderia ser real ou presumida, isto é, força física tendo ou não como resultado a lesão corporal ou a violência presumida configurada nos casos em que a conjunção carnal fosse praticada contra vítima incapaz de consentir com os atos praticados. Nestes casos a violência encontrar-se-ia no próprio ato de aproveitar-se de uma vítima incapaz de dar o seu consentimento livre ao ato sexual.
A presunção de violência nos crimes sexuais, chamada de violência ficta, evidenciava a enorme preocupação do legislador com as pessoas que não tinham a capacidade de consentir, dissenção, ou mesmo, compreender os atos da vida. (PRADO, 2010, p.622)
Ainda segundo o mesmo autor (PRADO, 2010, p. 623), o Código de 1890, foi à primeira legislação brasileira a ter previsão da presunção de violência, quando em seu artigo 272,. determinou que nos casos de ato sexual praticado contra vítima menor de dezesseis anos, a violência seria ficta. Quanto ao Código Penal de 1940 na redação do revogado artigo 224, manteve-se o mesmo critério mudando apenas a idade do sujeito passivo para quatorze anos e inseriu as pessoas portadoras de alienação ou debilidade mental.
Greco (2016, p. 735) explica que:
Em inúmeros casos, os Tribunais entendiam como relativa referida presunção de violência, com o argumento de que a sociedade do final do século XX e início do século XXI havia modificado sensivelmente, e os menores de catorze anos não demandavam a mesma proteção daqueles que viveram quando o Código Penal de 1940 fora editado.
Assim, a discussão divergente era sobre se a referida presunção de violência teria natureza relativa, ou seja, se haveria possibilidade de ser afastada diante de situação concreta, considerando-se o comportamento sexual da vítima, sua vida social, dentre outros fatores, ou de natureza absoluta que fosse possível o afastamento.
3 A LEI Nº 12.015/2009 E O DELITO AUTÔNOMO DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Publicada em 07 de agosto de 2009, a Lei nº 12.015, trouxe com ela uma grande inovação no que diz respeito ao crime de estupro na qual o Título VI da Parte especial do Código Penal passou a disciplinar os “crimes contra os costumes” como “crimes contra a dignidade sexual”.
A alteração de nomenclatura supracitada deixa claro que a preocupação do legislador não se limita ao sentimento de repulsa social a esse tipo de conduta, como acontecia nas décadas anteriores, mas sim à efetiva lesão ao bem jurídico em questão, ou seja, à dignidade sexual de quem é vítima deste tipo de infração (NUCCI et al., 2014).
Ademais, a referida lei revogou expressamente o art. 224, do CP e criou o tipo penal autônomo, estupro de vulnerável, disposto no art. 217-A, do Código Penal, que possui a seguinte redação: “Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos [...]” (BRASIL, 2009).
Sendo assim, as pessoas vulneráveis são aquelas amparadas pelo legislador na redação do próprio art. 217-A, do CP, que veda a conjunção carnal ou prática de qualquer outro ato libidinoso com menores de catorze anos de idade. Além disso, tanto o homem quanto a mulher possam ser sujeitos ativo ou passivo do crime de estupro.
Logo, esclarecem Nucci et al. (2014) que: “se uma mulher obrigar um homem a manter com ela conjunção carnal ou outro ato libidinoso, serão tais indivíduos, respectivamente, sujeito ativo e passivo de estupro”.
Nos termos do § 1º, deste dispositivo legal, incorre na mesma pena aquele que pratica essas ações com pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenha capacidade de discernir a prática de tais atos, ou que por qualquer outro motivo não tenha condições de oferecer resistência.
Seja por razão da idade, do estado ou condição da pessoa, refere-se a sua capacidade de resistir a intervenções de terceiros em relação a sua sexualidade. Compreende-se que o legislador quis proteger àquelas pessoas que não possuem discernimento para compreender ou mesmo oferecer resistência sobre ato que atinja sua dignidade ou liberdade sexual (PRADO, 2010, p. 624).
Nos casos em que o agente praticar a conjunção carnal e, quando for praticado qualquer outro ato libidinoso, leciona Greco que o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. Tratando-se do sujeito passivo, pode ser pessoa menor de 14 anos, com enfermidade ou deficiência mental que não possuir designação de juízo para à prática atos sexuais, ou que por qualquer outro motivo não possa oferecer resistência. (GRECO, 2010, p.616-617).
Então, o estupro passa a ser classificado como crime comum, inexigindo qualquer qualidade do sujeito ativo ou passivo e, é imprescindível que o agente tenha conhecimento da condição de vulnerabilidade da vítima, pois, caso isso não ocorra, haverá a possibilidade da alegação do erro de tipo, o que conduziria à atipicidade, ou, à desclassificação para o delito de estupro do art. 213, do Código Penal.
Segundo Prado (2010, p. 622) o legislador atual retirou a figura da presunção de violência a partir do momento em que criou o crime autônomo de estupro de vulnerável.
Nesse sentido, a antiga discussão sobre a presunção de violência, se absoluta ou relativa não foi de todo afastada, mas com objetivo de desfazer tal equívoco, a vulnerabilidade, deve ser compreendida de forma restrita e casuisticamente, tendo como entendimento, a fragilidade e a incapacidade física ou mental da vítima, na situação concreta, para consentir com a prática do ato sexual (NUCCI et al., 2014).
Ainda sobre o assunto, Greco (2016, p. 778) explica que:
Visando acabar de vez por todas, com essa discussão surgiu em nosso ordenamento jurídico penal, fruto da Lei nº 12.015/09, o delito autônomo que se convencionou chamar de estupro de vulnerável, ratifica a ideia de que há uma presunção absoluta de violência, fundamentada no critério objetivo da idade.
Destaca-se que nos §§ 3º e 4º, do artigo 217-A, do Código Penal, há previsão de duas modalidades qualificadas do delito de estupro de vulnerável: se a conduta resultar lesão corporal de natureza grave ou morte da vítima.
Tais resultados qualificam a infração penal comente quando imputados ao agente a título de culpa. Afirma Greco (2016, p. 779) que: “Cuida-se, igualmente, de crimes eminentemente preterdolosos. Isso porque, se houver dolo em praticar lesão corporal de natureza grave ou morte, o agente responderá por tais delitos, de forma autônoma”.
Além disso, com a criação do tipo penal do artigo 217-A, do Código Penal, o legislador determinou em um só tipo penal o atentado violento ao pudor e o estupro, que na antiga redação, eram dois delitos autônomos (BRASIL, 2009).
Nota-se assim, que a intenção do legislador com a Lei nº 12.015/2009 é a proteção das pessoas mais vulneráveis, que não possuem aptidão para expressar vontade própria. Por isso, estão impossibilitadas de resistir ou consentir com a prática de atos sexuais, que são, sobretudo, graves, pois afetam direitos fundamentais garantidos constitucionalmente, tais como: intimidade, vida privada, honra, e, especialmente, a dignidade da pessoa humana.
4 A VULNERABILIDADE E O CRITÉRIO IDADE PREVISTO NO ARTIGO 217-A DO CÓDIGO PENAL
A vulnerabilidade e o critério idade previstos no art. 217-A, do CP, são os temas mais polêmicos sobre o assunto, pois se existe grande controvérsia em relação à vulnerabilidade de tais pessoas em ser relativa ou absoluta tal como se discutia quanto à presunção de violência, prevista no revogado artigo 224, do Código Penal de 1940 (CASTRO, 2014).
O grande ponto de divergência surge em relação ao adolescente com treze ou catorze anos de idade, já que, dentro do atual contexto social, fica claro que a iniciação sexual ocorre mais cedo, e, por consequência, para aqueles que sustentam que a vulnerabilidade seria relativa, não seria possível admitir, em todos os casos, de forma absoluta, que um adolescente que pratique algum ato sexual ou libidinoso seja vítima de estupro (BITENCOURT, 2012).
Para os defensores da vulnerabilidade relativa, nos casos de caso concreto, ficar demonstrado, que o adolescente praticou ato sexual por livre e espontânea vontade, decorrente de algum tipo de relação afetiva, sem haver qualquer ato de violência, não seria cabível a tipificação da conduta de seu parceiro na regra do artigo 217-A, do CP, ou, ainda, determinar a qualificação deste adolescente como vítima de estupro de vulnerável, afinal, nesta hipótese, haveria caracterização de vulnerabilidade, pois ele tinha total discernimento do ato praticado.
Todavia, ressalte-se que, é impossível negar que um dos objetivos do legislador, com a Lei nº 12.015/2009, foi criar o delito autônomo de estupro de vulnerável com a finalidade de proteção aos que não possuem consciência para compreender ou mesmo oferecer resistência sobre ato que atinja a dignidade ou liberdade sexual. (JESUS, 2010).
Entre 2014 o número de recursos sobre casos de estupro de vulnerável no Superior Tribunal de Justiça (STJ) cresceu cerca de 2.700% em cinco anos passando de 6, em 2010, para 166, em 2014. A maior parte impetrada pelo Ministério Público, contra decisões judiciais que consideraram que as relações foram consensuais (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2017).
Nos últimos anos, o STJ julgou incontáveis casos nos quais se discutia a necessidade de apurar concretamente a capacidade de consentimento da vítima. Por conta dessa divergência, a 3ª Seção do STJ editou a Súmula 593 com o seguinte teor:
O crime de estupro de vulnerável configura-se com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente. (BRASIL, 2017).
O ministro relator Rogério Schietti (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2017) argumentou sobre o assunto da seguinte forma: “Qualquer ato sexual nessas condições é crime, não importando que a vítima tem experiência sexual anterior ou se comprove um relacionamento amoroso com o acusado”.
Afirmou ainda o Schietti (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2017) que: “A evolução dos costumes e o maior acesso de crianças e adolescentes a informação não se contrapõem à obrigação da sociedade e da família de protegê-las”.
Talon (2017) considera que: A súmula 593 do STJ apenas consolidou um entendimento que já vinha sendo aplicado. A título de exemplo, extrai-se parte do julgamento do seguinte recurso repetitivo:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO SOB O RITO DO ART. 543-C DO CPC. RECURSO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. FATO POSTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 12.015/09. CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. IRRELEVÂNCIA. ADEQUAÇÃO SOCIAL. REJEIÇÃO. PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que, sob a normativa anterior à Lei nº 12.015/09, era absoluta a presunção de violência no estupro e no atentado violento ao pudor (referida na antiga redação do art. 224, “a”, do CPB), quando a vítima não fosse maior de 14 anos de idade, ainda que esta anuísse voluntariamente ao ato sexual (EREsp 762.044/SP, Rel. Min. Nilson Naves, Rel. para o acórdão Ministro Felix Fischer, 3ª Seção, DJe 14/4/2010). [...] 7. A modernidade, a evolução moral dos costumes sociais e o acesso à informação não podem ser vistos como fatores que se contrapõem à natural tendência civilizatória de proteger certos segmentos da população física, biológica, social ou psiquicamente fragilizados. No caso de crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos, o reconhecimento de que são pessoas ainda imaturas – em menor ou maior grau – legitima a proteção penal contra todo e qualquer tipo de iniciação sexual precoce a que sejam submetidas por um adulto, dados os riscos imprevisíveis sobre o desenvolvimento futuro de sua personalidade e a impossibilidade de dimensionar as cicatrizes físicas e psíquicas decorrentes de uma decisão que um adolescente ou uma criança de tenra idade ainda não é capaz de livremente tomar [...] 9. Recurso especial provido, para restabelecer a sentença proferida nos autos da Ação Penal n. 0001476-20.2010.8.0043, em tramitação na Comarca de Buriti dos Lopes/PI, por considerar que o acórdão recorrido contrariou o art. 217-A do Código Penal, assentando-se, sob o rito do Recurso Especial Repetitivo (art. 543-C do CPC), a seguinte tese: Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime (BRASIL, 2015).
Desta forma, se a situação efetivamente revelar que o adolescente entre doze e catorze anos de idade agiu de forma livre e consciente, com pessoa com quem matinha relacionamento afetivo, mesmo assim, a conduta de seu parceiro sexual deverá ser qualificada como estupro de vulnerável.
Observa Talon (2017) que:
A súmula 593 do STJ não é vinculante, isto é, ela pode ser superada até mesmo por meio de uma decisão de um Juiz de primeiro grau. Logo, para quem defende a tese de que se trata de vulnerabilidade relativa, ainda é possível questionar o entendimento sumulado e sustentar a atipicidade da conduta, dependendo do caso concreto.
Os menores de catorze anos de idade estão em pleno desenvolvimento físico e psíquico, e, exatamente por isso, mesmo que tenham tido uma iniciação sexual precoce, ou ainda nos casos de menor que se prostitua, e de responsabilidade do Poder Judiciário, fundamentado na Lei Penal, punir de forma severa todo e qualquer indivíduo que se aproveitar desta situação (BITENCOURT, 2012).
A ideia mais razoável seria de amparo destas crianças e adolescentes, verdadeiras vítimas da sociedade, e não de incentivo a iniciação sexual precoce, uma vez que um menor de catorze anos, seja qual for sua realidade, não possui discernimento para a prática de atos que atinjam sua dignidade sexual. (JESUS, 2010).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na sociedade contemporânea, as perversidades sexuais tomaram proporções alarmantes e requer das autoridades providências urgentes. A violência sexual antes cometida normalmente contra mulheres, hoje atinge também homens e crianças.
As mudanças trazidas pela Lei nº 12.015 de 07 inovaram a legislação penal, alterando Título VI da Parte Especial e renovando os conceitos obsoletos que delimitavam os crimes sexuais nela prevista. Agora o bem jurídico tutelado abrange qualquer pessoa, ou seja, a liberdade sexual de todos os indivíduos, sem distinção.
É fundamental que o Direito acompanhe a mobilidade social, e, por isso, dentro do atual contexto social não se pode justificar a proteção apenas dos costumes, sendo essencial a tutela da dignidade e liberdade sexuais.
O fato de o legislador, com a Lei nº 12.015/2009, ter criado um delito autônomo de estupro de vulnerável, prevendo sanção mais severa para todos os que praticarem conjunção carnal ou atos libidinosos com pessoas instituídas em lei como vulneráveis, evidencia como forma de trazer maior proteção aos direitos fundamentais à intimidade, à vida privada, à honra, e, fundamentalmente, à dignidade da pessoa humana.
Ao optar por extinguir a figura da presunção de violência prevista no revogado art. 224 do CP, o legislador gerou grande controvérsia em torno sobre o tema tanto na doutrina quanto na jurisprudência, assim como em relação à forma de aplicação da presunção, se absoluta ou relativa.
Uma primeira corrente sustentava a necessidade de apurar, concretamente, a incapacidade do menor para o consentimento, enquanto outra, majoritária, defendia a aplicação absoluta da regra relativa à idade.
Entretanto, ao promulgar a Súmula 593 do STJ, reforçou-se o entendimento de que independentemente do consentimento, aquele que tiver conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com os vulneráveis disciplinados no art. 217-A, § 1º do CP, será acusado de estupro de vulnerável.
Frente a este posicionamento do STJ, a maioria da dos doutrinadores afirma não haver espaço para discussão a respeito da presunção de vulnerabilidade, pois a lei nada presume. Sua redação não permite dúvidas, ou seja, relação sexual com menor de quatorze anos.
Deve-se respeitar a liberdade para dispor do próprio corpo, escolher seus parceiros sexuais e praticar livremente os atos sexuais, sem qualquer tipo de constrangimento que possa ameaçar ou lesar direitos fundamentais. Em contra partida, os vulneráveis, necessitam de maior proteção, já que não possuem capacidade plena para praticar atos da vida civil, não são capazes de compreender atos sexuais e estão impossibilitadas de resistir ou consentir com a prática de atos sexuais.
Mesmo com a vasta informação e as mudanças do mundo moderno, ainda sim, como referiu o ministro Schietti ao ser o relator da Súmula 593 do STJ, a família e o Estado devem proteger aqueles que ainda prescrevem os cuidados destes.
6. REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. O conceito de vulnerabilidade e a violência implícita.Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2012-jun-19/cezar-bitencourt-conceito-vulnerabilidade-violencia-implicita>. Acesso em: 19 mai. 2018.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 05 mai. 2018.
________ Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>>. Acesso em: 05 mai. 2018.
_________ Lei nº 8.063, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: Acesso em: 05 mai. 2018.
__________ Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no2. 848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm> Acesso em: 05 mai. 2018.
__________ Superior Tribunal de Justiça. Tribunal edita três novas súmulas. Disponível em: Acesso em: 19 mai. 2018.
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JESUS, Damásio de. Direito Penal Parte Especial. Dos crimes contra a propriedade imaterial a dos crimes contra a paz pública. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
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PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. v. 2: parte especial, arts. 121 a 249. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[1] Ênio Walcácer de Oliveira Filho. Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantis (UFT). Especialista em Ciências Criminais e Direito Administrativo pela UFT. Professor da Sociedade de Ensino Serra do Carmo, na cadeira de Processo Penal e professor convidado de Direito Penal I e II na UFT. Membro do Conselho Editorial da Revista Vertentes do Direito – UFT. Associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito e Servidor Efetivo da Polícia Civil do Tocantis.
[2] Conjunção carnal entende-se o ajuntamento do órgão genital do homem com o da mulher, ou seja, a intromissão do pênis na cavidade vaginal, ou seja, “coito vagínico”. Não se compreendiam, portanto, na expressão legal, o coito anal, e o sexo oral, pois o ânus e a boca não são órgãos genitais
Bacharelanda do curso de Direito da Faculdade Serra do Carmo
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Talita Alves da. Relativização do estupro de vulnerável, art. 217-A do CP Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 maio 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51775/relativizacao-do-estupro-de-vulneravel-art-217-a-do-cp. Acesso em: 04 nov 2024.
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