Resumo: O estudo desenvolvido neste artigo volta-se à analisar o importante papel desempenhado pelo sindicato e pela negociação coletiva no cenário de construção da democracia e dos direitos sociais dos trabalhadores. De outro lado, procura destacar a crise de legitimidade por que passa o sistema sindical brasileiro e as consequências nefastas decorrentes da majoração dos poderes da autonomia privada coletiva neste cenário.
Palavras-chave: Sindicato. Negociação Coletiva. Representatividade sindical.
Sumário: 1. Introdução; 2. O papel dos sindicatos e sua centralidade na promoção da melhoria das condições de trabalho; 3. A (crise de) legitimidade sindical; 4. Conclusão; Referências.
1. Introdução
O objetivo deste ensaio é questionar a coerência sistêmica da elevação dos padrões de negociação coletiva em um contexto de crise de representatividade dos sindicatos.
Se, por um lado, a capacidade negocial das entidades representativas de categorias profissionais e econômicas se traduz na mais elementar expressão da liberdade no território de atuação do direito do trabalho, é certo também que seu reconhecimento pela ordem jurídica não se encerra em tal constatação. A negociação coletiva é instrumento, caminho para a pacificação e acertamento de interesses intrinsecamente colidentes e potencialmente criadores de instabilidade social. E ainda vai além. Constitui o principal mecanismo de progressividade dos direitos trabalhistas.
Como a Constituição Federal condiciona a realização de negociação coletiva à participação do sindicato obreiro, considera-se imprescindível o conhecimento das funções para as quais concebido tal entidade, a fim de demonstrar a harmonia teórica entre elas.
Mais adiante, o presente estudo procura evidenciar a insuficiência de todos os instrumentos criados para garantir a concretização das missões institucionais do sindicato. Insuficiência que se justifica diante da dualidade ideológica que procurou abraçar o texto constitucional de 1988, ao consagrar a liberdade e autonomia sindical e manter a unicidade, a representação legal-compulsória, a estruturação com base no conceito de categoria e o financiamento obrigatório – somente superado com a Lei n. 13.467/17.
2. O Papel dos sindicatos e sua centralidade na promoção da melhoria das condições de trabalho
O Direito do Trabalho assenta suas raízes na Revolução Industrial. Também comparece dentre as fontes materiais que lhe proporcionaram o surgimento o modo de organização produtivo então empreendido para alcançar o principal escopo da classe detentora do domínio econômico: a acumulação de capital. Desse modo, a exploração desmesurada e inconsequente da força de trabalho levou à classe operária a buscar alternativas à superação das condições indignas de trabalho que vigiam e estruturavam o sistema.
As revoluções sociais que tiveram lugar em meados do Séc. XIX evidenciaram a esta classe que somente através da organização coletiva de trabalhadores a mão-de-obra encontraria a força necessária para exercer pressão sobre o capital. A importância de tais movimentos é tamanha que parte da doutrina critica a proeminência de que goza atualmente o direito individual do trabalho em face do direito coletivo, na medida em que neste residiria a fonte material de todo o Direito do Trabalho[1].
Em que pese tal constatação, as organizações sindicais ocupam posição de especial destaque tanto na ordem jurídica nacional quanto internacional. E, atualmente, há clara tendência de concretizar os princípios da liberdade e autonomias sindicais e romper as obsoletas amarras estatais que tentaram outrora controlar as atividades dos sindicatos.
Nesse sentido, destacam-se, por exemplo, as Convenções Internacionais 87 e 98 da OIT; a primeira consagra a liberdade de criação e organização sindical, a fim de deixar claro que os Estados devem se abster de estabelecer limites à criação de entidades sindicais, bem como à sua filiação – com exceção do dever de observância aos respectivos estatutos; e a segunda, que regula o direito de sindicalização e de negociação coletiva, impondo o dever aos Estados de criar mecanismos que impeçam a prática de atos atentatórios à liberdade de associação dos trabalhadores.
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, enumera a liberdade e autonomia sindical como direitos fundamentais sociais, no art. 8º, caput, I e V. Ainda no mesmo art. 8º, o constituinte destacou o princípio da interveniência sindical na normatização coletiva, o qual impõe como condição de validade ao regular exercício da autonomia coletiva a participação obrigatória do sindicato obreiro, o que evidencia a essencialidade dos entes sindicais para garantir a prevalência dos interesses dos trabalhadores nas relações travadas com as respectivas categorias econômicas.
Indispensável aqui registrar os resquícios do autoritarismo que marcou as primeiras décadas da legislação laboral no Brasil, mantidos pela CF/88 e que impedem, até hoje, a ratificação da já mencionada Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho e a concretização da liberdade sindical plena. Isso porque permaneceram no texto constitucional o princípio da unicidade sindical (art. 8º, II), o enquadramento sindical com fundamento no conceito de categoria e, como consequência, a representação compulsória. Não se pode deixar de mencionar a manutenção, ainda, da contribuição sindical, que, até a reforma promovida pela Lei n. 13.467/17, possuía natureza tributária e, portanto, compulsória para filiados e não filiados.
A proteção de tais liberdades não é mera formalidade, uma vez que somente através delas é possível garantir com efetividade a consecução dos fins institucionais para os quais foram concebidas as organizações sindicais: proteção e promoção dos interesses dos representados, sejam eles integrantes de uma categoria profissional ou econômica. Mas não é “só”.
Oscar Ermida Uriarte explica que a liberdade sindical não é “apenas” um direito humano fundamental, conforme hoje pacificamente leciona a doutrina, mas, na realidade, um “supradireito” por meio do qual aos cidadãos é assegurada a conquista e o exercício de outros direitos fundamentais. O autor, em seguida, arremata: “la libertad sindical es un instrumento de desigualdade compensatoria o igualación en tanto constituye o permite constituir un contrapoder que limita, acota o compensa el poder económico del empleador.”[2]
A função representativa dos sindicatos tem fundamento no art. 8º, III, da CF/88 e abrange as esferas privada, pública, judicial e administrativa. A abertura do texto normativo, inclusive, conduziu à atual interpretação jurisprudencial, tanto do Supremo Tribunal Federal, quanto do Tribunal Superior do Trabalho, de que o preceito constitucional confere aos entes sindicais legitimidade ampla e irrestrita para a defesa dos interesses da categoria representada, abrangendo direitos coletivos latu sensu e, ainda, individuais heterogêneos.
Além da função representativa, os sindicatos desempenham outros papéis relevantes, como a produção de conteúdo normativo apto a regular as relações individuais de trabalho. Nesse caso, embora as empresas possam atuar diretamente sem a presença da respectiva entidade sindical, firmando acordos coletivos de trabalho, nos termos do art. 611, §1º, da CLT, a interveniência do sindicato obreiro faz-se obrigatória por força do disposto no art. 8º, VI, da CRFB.
Cabe, outrossim, aos sindicatos exercer importante função social, através da promoção de serviços assistenciais aos integrantes da categoria representada, conforme estabelece os arts. 513, parágrafo único, e 514, a, b, p. único, a e b, da CLT. Destaca-se aqui a obrigatoriedade prevista no art. 14 da Lei n. 5.584/70 de ofertar assistência judiciária aos trabalhadores que percebam salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal ou que comprovem não poder demandar sem prejuízo de seu próprio sustento ou de sua família. Para tanto, os sindicatos podem instituir contribuições assistenciais para subsidiar a prestação de tais serviços (art. 548, b), desde que aprovadas por assembleia e cobradas exclusivamente dos filiados, conforme entendimento sedimentado no PN 119 e OJ-17 da SDC, ambos do TST.
Por fim, é preciso repetir que o exercício pleno e desimpedido das atribuições dos sindicatos depende da criação de instrumentos aptos a assegurar a liberdade de sua atuação, isto é, inexistência de qualquer subordinação a interesses estatais ou privados, que divirjam daqueles próprios da categoria representada ou simplesmente os prejudique.
Assim, imprescindível a criação de aparato legal para prevenir e reprimir condutas antissindicais (citem-se como exemplos recorrentes na doutrina os yellow dog contracts, as company unions e a prática de mise à l’Index). Nesse sentido, cabível destacar a normatividade deficitária no âmbito nacional, se comparada a outros países, como a França, que dispõe de aparato penal contra tais condutas. Ressalve-se, ainda, a ratificação pelo Brasil da Convenção 98 da OIT que possui disposições contra atos de ingerência externa nas entidades sindicais, como prevê o art. 2, itens 1 e 2.
Outro importante mecanismo para garantir a liberdade sindical, também previsto na Convenção acima mencionada (art. 1, 2, b) e, especialmente, a na Convenção 135, é a proteção contra a demissão arbitrária ou atos que importem prejuízo ao trabalhador em razão de sua atividade sindical. A garantia de emprego ofertada aos dirigentes sindicais está assegurada na ordem jurídica pátria nos arts. 8º, VIII, da CF, e 543, §3º, da CLT e se estende do registro da candidatura até um ano após o fim do mandato. Ainda sobre a matéria, destacam-se as Súmulas 369 e 379 do C. TST.
A proteção dos dirigentes sindicais abrange, ainda, a vedação à transferência para localidade ou função que dificulte ou impeça o exercício de suas atribuições, nos termos do art. 543, caput, da CLT. O dispositivo impede manobras empresariais que poderiam tornar infrutífera a própria garantia de emprego. A mesma norma, no §1º, impede, inclusive, que o próprio trabalhador aceite transferência naquelas condições, sem que isso importe a perda do mandato, considerando que a garantia ofertada não visa a atender interesses meramente particulares, mas de toda a categoria representada.
A despeito da existência dos referidos enunciados normativos e jurisprudenciais a regular a proteção dos dirigentes sindicais, parte da doutrina entende ser ela ainda insuficiente e inadequada ao paradigma constitucional inaugurado a partir de 1988. Critica-se, por exemplo, a limitação prevista no art. 522 da CLT e a orientação jurisprudencial que a entendeu constitucional (Sum. 369, II, TST), bem como a restrição da proteção apenas aos dirigentes sindicais, deixando de lado outros trabalhadores que ocupam cargos de representação de trabalhadores.
A experiência prática demonstra que a mera consagração textual dos princípios da liberdade sindical e da autonomia sindical, embora necessária, não é suficiente a assegurar a livre criação, desenvolvimento e gestão dos sindicatos. É preciso, ainda, materializar estes princípios em mecanismos de proteção à livre atuação sindical, ampliando as garantias de emprego dos representantes sindicais, fortalecendo a legislação voltada ao combate de condutas antissindicais e assegurando a legitimidade dos sindicatos.
Estes são pressupostos inexoráveis à consecução das finalidades institucionais dos entes sindicais, e que, em última instância, destinam-se à harmonizar os interesses ontologiamente contrapostos entre o capital e a força de trabalho, promovendo a melhoria da condição social do trabalhador, em obediência ao preceito constitucional insculpido no art. 7º, caput da CRFB.
3. A (crise de) legitimidade sindical
O Direito do Trabalho possui como característica marcante, que o distingue de qualquer outro ramo do conhecimento jurídico, a possibilidade de os sujeitos envolvidos na relação jurídica que lhe é peculiar, a relação de emprego, produzirem normas de caráter geral, com aptidão para regular os contratos individuais de trabalho. Trata-se da autonomia privada coletiva, cuja importância é atualmente reconhecida na Constituição Federal de 1988 (art. 7º, XXVI), já que se revela importante instrumento de democratização do poder e de exercício consciente da cidadania, além de ter a aptidão para solucionar importantes conflitos sociais. Materializa-se por meio de um dos pilares do direito coletivo do trabalho: a negociação coletiva, instância que consagra o princípio democrático, pluraliza o debate político e permite o diálogo social, promovendo, sem dúvidas, a pacificação social.
Para cumprir o desiderato constitucional, entretanto, é preciso haver perfeita sintonia entre a atuação das entidades sindicais e os interesses da base representada. Trata-se estes de um interesse verdadeiramente autônomo, que deve ser apurado a partir da percepção de que a legitimidade constitucionalmente reconhecida aos sindicatos tem o propósito de expressar um espectro da democracia. Por isso, nas palavras do mestre Arion Sayão Romita, a “autonomia coletiva tem por finalidade a proteção ou defesa do interesse da categoria, distinto quer dos interesses individuais de cada trabalhador quer dos interesses gerais da coletividade”[3]. Atua – ou deveria atuar –, portanto, associada à representação que lhe dá legitimidade e vida política.
A harmonia de que se trata acima não é um pressuposto meramente formal para o exercício das prerrogativas sindicais. Como visto acima, é condição de validade de própria atuação dos sindicatos no contexto plural de debate democrático. É elemento integrante de uma avaliação de desenvolvimento político de uma dada sociedade. É, ainda, um estágio de evolução do movimento sindical desejável pelos trabalhadores, em busca do êxito de uma luta que se germinou o direito do trabalho no século XIX: dar voz e força aos interesses de uma classe.
No Brasil, a negociação capaz de produzir normas abstratas é necessariamente feita pelos sujeitos coletivos da relação empregatícia. Por isso, a interveniência do sindicato profissional é imprescindível para a regularidade do processo de produção normativa, assim como diz expressamente o art. 8º, VI, da CRFB. Isso porque, como visto, os trabalhadores apenas assumem a condição de sujeito coletivo, com força suficiente a contrapor seus interesses em face do capital, caso organizados coletivamente, plano no qual desaparece – ou deveria desaparecer – a disparidade social e econômica que justifica a incidência do princípio protetor no âmbito do direito individual do trabalho. Na condição, pois, de legítimo representante da vontade da categoria de trabalhadores representada, o sindicato obreiro assume a importante tarefa de buscar a afirmação dos direitos sociais que lhes são constitucional e internacionalmente garantidos. Esta missão deve ser associada, ainda, à necessidade adaptação razoável em face das peculiares circunstâncias em que a atividade é desenvolvida, bem como do contexto econômico e político vivido.
O reconhecimento constitucional da capacidade de produzir normas é, assim, a chancela do Estado ao poder normativo dos sujeitos coletivos da relação empregatícia. Note-se, entretanto, que qualquer poder somente é legítimo em uma sociedade democrática se associado à noção moderna de responsabilidade. O binômio é verdadeiro para não só para relações públicas, mas também para outras desenvolvidas sob a égide do direito privado. Tem ainda mais razão de ser quanto ao poder que tem raízes fincadas em relações desiguais de cunho privado – assimétrico em sua origem – e que redunda efeitos próprios de relações firmadas sobre o solo do direito público, como é o caso das relações coletivas laborais.
Assim, em que pese ser legítima e dever ser prestigiada a tendência de valorização do exercício desse poder negocial e normativo assegurado aos trabalhadores e empregadores – aqueles, porém, sempre por intermédio de suas representações sindicais –, “não deixa de chamar a atenção para que a proposta de substituir a tutela legal por um garantismo coletivo se dê precisamente num momento de enfraquecimento sindical”[4].
Dentre as inúmeras mazelas do sistema sindical brasileiro, ao menos duas são unanimidade quando o tema é a crise de representatividade por que passa: a manutenção pelo texto constitucional da unicidade sindical e da compulsoriedade de representação.
É preciso lembrar: a representação sindical no ordenamento jurídico brasileiro é cunho legal, decorre do enquadramento do trabalhador ou empregador no conceito de categoria instituído no art. 511, e seus parágrafos, da CLT. Significa dizer que o trabalhador não pode optar pela categoria que integra ou pelo sindicato que o representa. Representação sindical, assim, não é sinônimo de representatividade. A representatividade, diversamente, “traduz a legitimidade do sindicato, relacionada a sua atuação madura e fortalecida na real e efetiva defesa dos interesses da categoria”[5].
Ainda no que toca a debilidade dos sindicatos, Oscar Ermida Uriarte[6] explica que ao menos na América Latina, suas causas estão relacionadas a inúmeros fatores, os quais divide entre fatores externos e internos à sua estrutura. Dentre as causas exógenas, menciona a regulamentação limitativa e o controle político emanados do Estado, a política econômica neoliberal generalizada na maior parte dos países latino-americanos, a estrutura sindical inconveniente imposta legalmente e o processo de descentralização organizacional das empresas – com a consequente fragmentação da classe trabalhadora. Por outro lado, entre as causas endógenas, Uriarte menciona a atomização e paralelismo sindical – resultando em sindicatos de baixa representatividade –, a dependência política e partidária.
O enfraquecimento dos sindicatos está relacionado, também, aos elevados níveis de desocupação. Isso porque, em face do desemprego estrutural, a preocupação central dos trabalhadores deixa de ser a reivindicação por melhores condições de trabalho e passa a ser a própria manutenção do emprego[7]. Américo Plá Rodriguez, inclusive, faz esta observação para refutar as alegações de inadequação do princípio da proteção aos tempos atuais – propugnada pelo autor argentino Héctor Ruiz Moreno[8] –, defendendo a necessária aplicação e permanência do princípio da proteção como pressuposto inspirador do Direito do Trabalho, ainda no âmbito da sociedade laboral delineada pela pós-modernidade. Segundo o referido autor, a debilidade das entidades sindicais deteriora o poder de reivindicar, de lutar contra as desigualdades sociais e as injustiças praticadas contra os trabalhadores, demonstrando a necessidade de revigorar o princípio da proteção, sob um novo prisma.
Em razão desta crise, a capacidade de negociação coletiva já não se vinha mostrando apta a estatuir condições dignas ou melhores de trabalho, menos ainda de lutar pelo reconhecimento das novas categorias de trabalhadores – proposta de expansão do princípio tutela. Pelo contrário, o que se tem visto é a adoção negociada de medidas flexibilizatórias, com disposições in pejus para os trabalhadores em troca do bem maior hodierno: a manutenção no emprego. No atual cenário nacional, a tendência que se verifica é a mais antagônica possível, ao atribuir aos sindicatos, anteriormente responsáveis pela defesa dos interesses profissionais, a pactuação de normas flexíveis ou o extremo da redução salarial como condição de garantia de postos de trabalho.
A propósito do movimento de valorização do negociado, é lugar comum no atual momento político, econômico e histórico vivenciado no país o discurso de que sua necessária prevalência sobre o legislado corresponde a medida de modernização. É nesse fluxo de ideias que foi consagrado no texto da Consolidação das Leis do Trabalho o princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva, mais exatamente no §3º do art. 8º, e inseridos dispositivos como, dentre outros, os artigos 611-A e 611-B.
Embora o texto constitucional de 1988 forneça inúmeros subsídios para a transição efetiva de um modelo de disciplina legal das relações de trabalho autoritário e corporativista, marcado pela exaustiva regulamentação heterônoma, para um outro modelo mais democrático, sensível à autonomia privada coletiva, não é dado ao intérprete deixar de lado uma realidade impassível de produzir os efeitos desejados. Sindicatos pouco ou nada representativos não exercem autonomia coletiva privada, porque não traduzem o exercício de efetiva liberdade sindical. É nesse sentido que mais uma vez Uriarte esclarece:
Por isso mesmo e tendo em vista não ser igual o enfraquecimento sindical, tem-se verificado que a flexibilidade coletiva encerra o risco de acentuar a segmentação da mão-de-obra, já que setores agrupados em sindicatos fortes estariam em condições de preservar benefícios ou de negociar boas condições, enquanto setores com sindicalização menor ou mais fraca poderiam cair numa flexibilização incondicional. Esse risco de segmentação é maior quanto mais descentralizad é o nível de negociação.[9]
Para além do risco de fragmentação da classe trabalhadora acima relatado, há um grande perigo de agravamento da crise de representação sindical, quando se proliferarem, de fato, negociações em muito distanciadas dos interesses efetivamente cultivados por uma categoria ou grupo de trabalhadores. Nem se fale das negociações que redundarão em efetivo prejuízo e perdas à categoria profissional enfraquecida...
É preciso, portanto, ir mais a fundo, promover não apenas uma reforma no sistema sindical, mas efetivas mudanças políticas, sociais e culturais. Abrir um caminho para atravessar a tormentosa crise de representatividade sindical – que vai de sindicatos pelegos, partidarizados, inativos ou pouco combativos – e alcançar uma realidade hoje ainda quimérica de, na terminologia utilizada por Carlos Alberto Barata da Silva, convivência harmônica entre sindicatos ditos autênticos[10].
Em momentos de crise, quando a atuação estatal não mais corresponde aos anseios sociais, seja através do Poder Executivo, seja através do Legislativo, o Poder Judiciário pode desempenhar a importante tarefa de equilibrar o pêndulo ideológico, aparando os excessos cometidos pelos demais poderes. É essencial, claro, que a atuação do magistrado perante o caso concreto esteja sempre pautada no texto da Constituição da República e seja legitimada pela fundamentação analítica, condição de validade da decisão judicial, nos termos do art. 489 do Código de Processo Civil. Os órgãos judiciais têm o dever de atuar de modo a implementar as propostas políticas concebidas pelo constituinte, harmonizando a valorização da negociação coletiva com os direitos mínimos assegurados aos trabalhadores. É assim que a
autonomia sindical, no entanto, não pode ser invocada para acobertar ou o mau uso da liberdade. Incumbe ao Estado – que tutela os interesses gerais de toda a sociedade, que coordena e harmoniza estes mesmos interesses – o dever de controlar a atividade sindical. O Estado democrático não pode deixar de proteger-se e de proteger a sociedade: se admitisse a violação da lei (inclusive a penal) em nome do respeito à liberdade, negaria a verdadeira liberdade dos cidadãos.[11]
O juiz do trabalho é, essencialmente, um concretizador de direitos sociais e, por isso, deve assumir uma postura mais intervencionista, viabilizando o influxo dos valores sociais insculpidos na Carta Constitucional pelas janelas criadas no ordenamento jurídico pós-positivista. É preciso ressaltar, exatamente em razão do objeto com o qual lida diuturnamente, sua potencialidade de interferir na dinâmica econômica e social, amenizando, por exemplo, os efeitos nocivos que uma crise na economia acaba por produzir sobre os dois principais atores da relação em emprego.
4. Conclusão
Conforme costuma mencionar a doutrina especializada, o direito coletivo do trabalho está assentado em três pilares fundamentais: liberdade sindical, negociação coletiva e greve. Estes direitos, de alçada constitucional, inter-relacionam-se entre si por vínculos de natureza teleológica e instrumental, voltados sempre à consecução do escopo estrutural do direito do trabalho, que é a melhoria da condição social do trabalhador.
A liberdade e a autonomia sindical são eixos axiológicos que orientam a dinâmica da organização sindical brasileira, especialmente a partir da Constituição Federal de 1988. Paradoxalmente, o texto constitucional optou por manter elementos limitativos da mencionada liberdade, dando apenas meio passo rumo à modernização das relações coletivas de trabalho.
O resultado prático da simbiose ideológica ensaiada pela Constituição Federal de 1988 foi a proliferação desmensurada de sindicatos sem efetiva legitimidade para execução de suas importantes atribuições institucionais relatadas no presente trabalho.
Este cenário de desestruturação da representação coletiva dos trabalhadores conduz ao questionamento quanto à conveniência efetiva de majoração dos poderes dos sindicatos, sobretudo quando se trata de criação de normas jurídicas voltadas à regulamentar genericamente as relações laborais. Não se pretende questionar a importância de tal poder. A capacidade de criação de normas é expressão elementar da democracia e seu exercício promove o fortalecimento da cidadania e diversificação das fontes de poder na sociedade.
Entretanto, um poder, na democracia, só é legitimo se associado à ideia de responsabilidade, sob pena de confundir-se com autoritarismo. As diversas mazelas de que padece o sindicalismo brasileiro não lhe permitem desenvolver qualquer espécie de responsabilidade, já que, com frequência, seus dirigentes não têm qualquer compromisso com a efetiva representação da base. Por isso, procurou-se colocar em questão as prescrições normativas que exacerbam os poderes normativos dos sindicatos, sem que tais entidades se mostrem capazes de atuar eficazmente na proteção e promoção dos direitos dos trabalhadores.
Apenas a reforma sindical propugnada quase que unanimemente pelos interlocutores sociais é insuficiente; um outro cenário depende de mudanças mais profundas, que perpassam questões políticas, sociais e culturais. Para esta transição, buscou-se destacar o papel do magistrado trabalhista, na qualidade de concretizador de direitos sociais. Nos limites das aberturas normativas permitidas pelo ordenamento jurídico pós-positivista, sempre sob as margens autorizadas pelo texto constitucional, deve ter um olhar atento à realidade social e as potencialidades externadas pelas instâncias de representação sindical. Instâncias que demonstrem possuir não apenas legitimidade, mas representatividade na tomada de decisões.
Referências
ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. A desconstrução do paradigma trabalho subordinado como objeto do direito do trabalho. Revista LTr, vol. 72, nº 08, ago, 913-920, 2008.
______, Everaldo Gaspar Lopes de. Direito do Trabalho e Pós-Modernidade: fundamentos para uma teoria geral. São Paulo: LTr, 2005.
PEREIRA NETO, João Batista. O Sistema Brasileiro de Unicidade Sindical e Compulsoriedade de Representação. São Paulo: LTr, 2017.
PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. 3ª Ed. São Paulo: LTr, 2000.
ROMITA, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas relações de trabalho. 4ª Edição. São Paulo: LTr, 2012.
______, Arion Sayão. Os Limites da Autonomia Negocial Coletiva segundo a Jurisprudência. Revista LTr, São Paulo, vol. 80, nº 09, Set, 1031-1047, 2016.
URIARTE, Oscar Ermida. Crítica de la liberdad sindical. Revista de la Facultad de Derecho, PUCP, n.º 68, 33-61, 2012.
______. A Flexibilidade. Editora LTr: São Paulo, 2002.
[1] ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. A desconstrução do paradigma trabalho subordinado como objeto do direito do trabalho. São Paulo, Revista LTr, vol. 72, nº 08, ago, 913-920 2008, p. 917.
[2] URIARTE, Oscar Ermida. Crítica de la liberdad sindical. Revista de la Facultad de Derecho PUCP, n.º 68, 33-61, 2012, p. 36.
[3] ROMITA, Aron Sayão. Os Limites da Autonomia Negocial Coletiva segundo a Jurisprudência. São Paulo, Revista LTr, vol. 80, nº 09, set., 1031–047, 2016, p. 1035.
[4] URIARTE, Oscar Ermida. A Flexibilidade. São Paulo: LTr, 2002, p. 13.
[5] PEREIRA NETO, João Batista. O Sistema Brasileiro de Unicidade Sindical e Compulsoriedade de Representação. São Paulo: LTr, 2017, p. 49.
[6] URIARTE, Oscar Ermida. Crítica de la liberdad sindical. Revista de la Facultad de Derecho PUCP, n.º 68, 33-61, 2012, p. 52.
[7] ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. Direito do Trabalho e Pós-Modernidade: fundamentos para uma teoria geral. São Paulo: LTr, 2005, p. 118.
[8] PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. 3ª Ed. São Paulo: LTr, 2000, p. 94.
[9] URIARTE, Oscar Ermida. A Flexibilidade. São Paulo: LTr, 2002, p. 13.
[10] Apud PEREIRA NETO, João Batista. O Sistema Brasileiro de Unicidade Sindical e Compulsoriedade de Representação. São Paulo: LTr, 2017, p. 49.
[11] ROMITA, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas relações de trabalho. 4ª Edição. São Paulo: LTr, 2012, p. 352.
Mestre em Direito pela UFPE, Professora de Direito Individual e Coletivo do Trabalho e Assessora Jurídica no 18º Ofício da Procuradoria Regional do Trabalho da 6ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Marcela Cavalcanti. A majoração dos poderes de negociação coletiva e a crise de representatividade sindical Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51841/a-majoracao-dos-poderes-de-negociacao-coletiva-e-a-crise-de-representatividade-sindical. Acesso em: 02 nov 2024.
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