Liliane de Moura Borges[1]
RESUMO: É bem verdade que a violência contra a mulher existe há muitos séculos, e que nos últimos tempos tem a sociedade e o Poder Público se preocupado em mudar tal realidade. Diante disso, surge no cenário jurídico a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) com a finalidade de garantir a segurança e proteção das mulheres em todos os espaços contra qualquer espécie de violência, e na busca constante de garantir ao gênero feminino a emancipação e autonomia. O presente estudo foi concebido por meio de pesquisa bibliográfica, utilizando método dedutivo, tendo como objetivo abordar a efetividade da Lei Maria da Penha e sua relação com o cumprimento do princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana. Trata-se de abordagem jurídica capaz de propiciar uma reflexão acerca da necessidade de dar mais efetividade a normas e à lei infraconstitucional protetiva da mulher na busca por maior igualdade e à própria dignidade.
PALAVRAS-CHAVE: Lei Maria da Penha;Igualdade;Dignidade humana.
ABSTRACT: It is true that violence against women has existed for many centuries, and that in recent times society and the Government have been concerned with changing such reality. In view of this, Law 11.340 / 2006 (Law Maria da Penha) appears in the legal scenario with the purpose of guaranteeing the safety and protection of women in all spaces against any kind of violence, and in the constant search to guarantee the emancipation and autonomy. The present study was conceived through a bibliographical research, using deductive method, aiming to approach the effectiveness of the Maria da Penha Law and its relation with the fulfillment of the fundamental constitutional principle of the dignity of the human person. It is a legal approach capable of providing a reflection on the need to give more effectiveness to the norms and the infraconstitutional law protecting women in the quest for greater equality and dignity.
KEYWORDS: Maria da Penha Law; Equality; Human dignity.
SUMARIO: 1. INTRODUÇÃO, 2 . CONCEITOS E PRINCIPAIS TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER 3 .TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER PREVISTA NA LEI MARIA DA PENHA 2.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA 3. DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 3.1EFICÁCIA DO PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 4. ASSISTÊNCIA À MULHER PREVISTA NA LEI 11.340/2006. 4.2 IGUALDADES X DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 5.CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
No decorrer da história as mulheres brasileiras foram vítimas de violência física e psíquica, apesar da existência de diversas normas de proteção, tais como os tratados, pactos e convenções de proteção dos direitos da pessoa humana, que possuem regras que obrigam os Estados que os aderem, a assumirem compromisso de assegurar os direitos humanos neles reconhecidos.
Das normas internacionais extraem-se determinações para adoção de medidas legislativas internas tendentes a se fazer cumprir o respeito aos direitos humanos oriundos dos tratados que têm status de norma constitucional. Daí a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, estabelecer como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, "a dignidade da pessoa humana" (art. 1º, III).
A Lei Maria da Penha, é criada com o objetivo de fazer cumprir, no âmbito interno, compromisso internacional assumido pelo Estado brasileiro por ocasião da promulgação da Convenção Internacional para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará, 1994) – promulgada pelo Decreto nº 1.973, de 01/08/1996).
Apesar da previsão constitucional de igualdade entre o homem e a mulher, ela é ainda vista como um ser frágil e vulnerável à violência, pois, o subjetivismo da lei não concretizou, na prática, o alcance da igualdade material dos sexos. Não há dúvida que se deixa a desejar a proteção ostensiva e repressiva do Estado contra a violência doméstica.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340), sancionada em 07 de agosto de 2006, veio para coibir a violência perpetrada contra a mulher, tornando-se como principal ferramenta legislativa na questão da luta contra a violência doméstica e familiar contra as mulheres no Brasil.
Em termos mais genéricos, uma inovação importante da Lei Maria da Penha é que esta procurou tratar de forma integral e efetiva o problema da violência doméstica, e não apenas da imputação de uma maior pena ao ofensor. Dessa maneira, a nova legislação ofereceu um conjunto de ferramentas para possibilitar a proteção e o acolhimento emergencial à vítima, isolando-a do agressor, ao mesmo tempo que criou mecanismos para garantir a assistência social da ofendida (IPEA, 2015).
Não há dúvida que a mencionada lei representou um grande avanço no combate à violência contra a mulher, uma vez que diminuíram em 10% os assassinatos contra mulheres no Brasil, segundo dados do ano de 2015 do IPEA (Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada). Esses resultados, porém, não ocorreram de maneira uniforme no país, por causa dos diferentes graus de institucionalização dos serviços protetivos às vítimas de violência doméstica.Pelas estimativas do IPEA, destas, 500 mil são estupradas, sendo que somente 52 mil ocorrências chegam ao conhecimento da polícia. Esse fato demanda o necessário envolvimento das instituições públicas e da sociedade civil para que esse problema seja enfrentado de forma a minimizar e banir concretamente a violência contra a mulher.
O presente trabalho tem como objetivo, promover uma análise crítica sobre a efetividade da aplicação da Lei Maria da Penha frente ao postulado da dignidade da pessoa humana. Para tanto foi utilizado o método dedutivo, com pesquisa bibliográfica em doutrina, e artigos jurídicos disponível na internet. Tendo como premissa conclusiva quea Lei Maria da Penha tem contribuído de maneira a se alcançar a dignidade e igualdade da mulher ainda que necessite de adequações para dar mais efetividade nas medidas protetivas nas regiões do país que ainda não se adequaram aos padrões de eficiência no combate a violência doméstica.
2. CONCEITOS E PRINCIPAIS TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Para fazer uma análise da efetividade da aplicação da Lei Maria da Penha e da realidade enfrentada pelas mulheres é necessário conceituar e apontar os principais tipos de violência, enfrentados pelas mulheres, recorre-se as definições delineadas pela própria legislação.
A Convenção de Belém do Pará também denominada Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – promulgada pelo Decreto nº 1.973, de 01/08/1996 trata especificadamente da questão da violência cometida contra as mulheres apresentando uma definição formal desta como: “Qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”, OEA, 1994, Art. 1º. A Convenção se destaca ainda, por afirmar que tais violências constituem violações dos direitos humanos e liberdades fundamentais e fortes obstáculos à implementação da isonomia, ao exercício pleno da cidadania, ao desenvolvimento socioeconômico e à paz social.
Em uma análise da Convenção supracitada, destaca-se os tipos de “violência contra a mulher” que pode ser considerada aquela conduta comissiva ou omissiva de agressão ou coerção, discriminação ocasionada pelo simples e imutável fato da vítima ser mulher e que cause a ela algum dano, morte, sofrimento físico, moral, psicológico, social, político ou econômico ou perda patrimonial. Essa espécie de violência pode acontecer tanto em lugares públicos ou privados.
Diferencia-se da violência doméstica. Esta ocorre em casa, no âmbito doméstico, ou em uma situação de afetividade, familiaridade e coabitação. Por outro lado não se pode deixar de anotar a violência familiar e intrafamiliar, que se desencadeia dentro da família, ou seja, nas relações entre membros familiares, formados consequentemente por parentesco natural, por afinidade ou até mesmo por afetividade. As agressões costumam ser abuso físico, sexual e psicológica, a negligência e o abandono (DIAS, 2008).
3 TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER PREVISTA NA LEI MARIA DA PENHA
Entre as especificações e inovações trazidas pela Lei Maria da Penha está o conceito e a variedade de tipificações de violência. A definição legal é bem similar a já apresentada pela Convenção de Belém do Pará (OEA, 1994), inserindo apenas a dimensão do dano moral ou patrimonial que um ato violento contra a mulher pode causar. Nas especificidades dos tipos de violência identifica-se um diferencial. Apesar de não ter inovado no tipo penal, detalhou muito bem as formas de violência, trazendo consequentemente um aprofundamento e uma amplificação da ideia de violência doméstica familiar contra a mulher.
Na Lei Maria da Penha, a violência física e moral são definidas brevemente: a primeira como condutas que ofendam a integridade ou saúde corporal (art. 7º, I) e a segunda como atos de calúnia, injúria ou difamação (art. 7º, V). Os demais tipos de violência, entretanto, são apresentados de maneira detalhada, permitindo, dessa maneira, mais esclarecimentos e visibilidades a tipos menos (re)conhecidos de violência no espaço doméstico e familiar (GUIMARÃES &PEDROZA, 2015).
A violência psicológica se refere aos impactos relacionados à saúde emocional, à autoestima e ao pleno desenvolvimento humano, a partir de condutas como de controle, ameaça, constrangimento, perseguição contumaz e humilhação (art. 7º, II). A definição de violência sexual (art, 7º, III) vai além de condutas que obriguem, mediante ameaça ou força, a mulher a praticar relação sexual não desejada, inclusive também a limitação ou anulação do exercício deseus direitos sexuais e reprodutivos, como forçar ao aborto ou uso de método contraceptivo (BRASIL, 2006).
Por fim, ainda existe a violência patrimonial (art. 7º, IV) que acontece a partir de condutas de retenção, subtração ou destruição de objetos, documentos, bens e valores das mulheres em quaisquer de suas realidades (BRASIL, 2006). É de grande valia essas tipificações mais claras trazidas pela legislação das diferentes maneiras que a violência pode se expressar nas relações conjugais e familiares e que por muito tempo não foram enxergadas como tal ou não receberam a devida atenção e cuidado, facilitando aos órgãos aplicadores do direito e às próprias mulheres o combate a quaisquer uma das modalidades apontadas.
2.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A violência contra a mulher tem suas origens num tempo muito distante dos dias atuais. Historicamente isso se justifica pela clara situação de fragilidade e descaso da mulher na sociedade. Essa constatação como aponta Hermann (2007, p. 83) “decorre da construção de sua condição (ainda) hipossuficiente no contexto familiar, fruto da cultura patriarcal que facilita sua vitimação em situações de violência doméstica”, sendo, portanto necessária a intervenção do Estado para equilibrar essa relação.
Como bem destaca Campos e Corrêa (2007, p. 99), pesquisas apontam que:
A primeira base de sustentação da ideologia de hierarquização masculina em relação à mulher, e sua consequente subordinação, possui cerca de 2.500 (dois mil e quinhentos) anos, através do filósofo helenista Filon de Alexandria, que propagou sua tese baseado nas concepções de Platão, que defendia a ideia de que a mulher pouco possuía capacidade de raciocínio, além de ter alma inferior à do homem. Ideias, estas, que transformaram a mulher na figura repleta de futilidades, vaidades, relacionada tão-somente aos aspectos carnais.
Com o exposto acima se tem uma justificativa científica à superioridade masculina ao gênero feminino ao longo da história.
A despeito disso, ainda tomando por base Campos e Corrêa (2007, p.100):
Aristóteles também explanou algumas ideias acerca desse contexto. Ele posicionou o homem com superioridade e divindade em relação à mulher, já que esta se compunha como um ser emocional, desviado do tipo humano. Assim, a alma tem domínio sobre o corpo; a razão sobre a emoção; o masculino sobre o feminino.
Em meio à visão, um tanto quanto distorcida, desse grande filósofo e pensador, juntamente com a visão que a sociedade machista já tinha, ao longo dos séculos foi se mantendo uma cultura de subordinação da mulher ao sexo masculino, que mesmo com o aumento da força da mulher nos dias atuais, em alguns lugares essa visão deturpada ainda permanece.
Como se observa a mulher tem historicamente o estereótipo de um ser frágil, dona de casa e que se dedica a vida à família.Torna-se vítima de agressões do marido, na grande maioria das vezes não denuncia por medo, dependência econômica, ou até mesmo por falsas promessas de mudanças.
Já em época mais moderna e a partir da última metade do século XIX, as mulheres iniciaram a edição de jornais que salientavam a importância dos direitos femininos no Brasil, demonstrando a situação de inferioridade ocupada na época e o descaso em relação aos direitos a elas conferidos. Com isso, evidenciou-se a necessidade da educação feminina em prol delas próprias e da emancipação política pelo direito de votarem e de serem votadas. Assim, já no final do século XIX esses direitos reivindicados foram sendo obtidos paulatinamente através da inserção da mulher no mercado de trabalho (ESSY, 2017).
Com o advento da Constituição Federal de 1988, na contemporaneidade, e a determinação em seu artigo 98 inciso I para a criação dos Juizados Especiais com competência julgadora dos delitos menores, o sistema processual penal passou a punir com efetividade a violência doméstica contra a mulher. Ainda que pouco difundida a necessidade de punição e inibição da violência devido à cultura patriarcal que reforça a ideia do “em briga de marido e mulher ninguém põe a colher”.
A interferência do Estado na vida privada nesses casos procura certamente o equilíbrio tão pretendido pela Carta Magna da igualdade material, sem qualquer distinção de gênero. A Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/1995) trouxe medidas quederam ao Judiciário maior credibilidade, como a aplicação de pena mesmo antes da discussão da culpabilidade e maior celeridade no julgamento desses casos.
Entretanto assevera DIAS (2008, p.22):
Ainda que tenha havido uma consciente tentativa de acabar com a impunidade, deixou o legislador de priorizar a pessoa humana, preservar sua vida e sua integridade física. Ao condicionar à representação as lesões corporais leves e as lesões culposas, omitiu-se o Estado de sua obrigação de punir, transmitindo à vítima a iniciativa de buscar a apenação de seu agressor, segundo critérios subjetivos de conveniência.
O que se observa, assim, é que não é razoável exigir que a parte mais vulnerável da relação formalize representação contra aquele que é agressor. O desequilíbrio se justifica justamente por ocorrer em relações que envolvem afeto por parte de pais, filhos, maridos e companheiros contra mulheres. Os critérios subjetivos da convivência atrapalham a devida punição daqueles que se aproveitam da situação para continuar a prática nefasta da violência contra a mulher.
Os avanços na história da proteção da mulher, enquanto direito fundamental, foram muito tímidos. Em 2002 foi publicada a Lei nº 10.455 que criou uma medida cautelar penal, admitindo a possibilidade de o estado-juiz decretar o afastamento do agressor do lar conjugal nos casos de violência doméstica.
Já em 2004 a Lei nº 10.886 acrescentou um subtipo ao delito de lesão corporal leve, decorrente de violência doméstica, com aumento de pena mínima de três para seis meses de detenção. Apesar disso os processos ainda tramitavam no Juizado Especial Criminal com fulcro na Lei 9.099/95, como a questão da dispensa do flagrante se o autor se comprometesse a comparecer no Juizado, a transação penal, concessão de sursis, aplicação de penas restritivas de direitos e ainda por cima no caso de lesão leve a ação dependeria de representação da parte.
Tudo isso corroborou para que a tão esperada mudança do processo penal brasileiro com relação a esses delitos fosse praticamente pífia. Em muito bom momento entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006 a Lei nº 11.340 que criou mecanismos para inibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
As novidades trazidas pela Lei Maria da Penha sem dúvidas foram significativas para alcançar melhorias no combate à violência contra o gênero feminino. Dentre as alterações está a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal (art. 14); o acompanhamento da vítima por seu advogado na fase policial ou judicial (art. 27), sendo também assegurado o acesso à assistência judiciária gratuita e da Defensoria Pública (art. 28); permite a prisão preventiva do ofensor (art. 20), dentre outras medidas que serão oportunamente analisadas neste trabalho.
No dia 09 de março de 2015 foi sancionada a Lei 13.104, incluindo a figura do Feminicídio no Brasil, não se trata este instituto de outra coisa senão uma qualificadora do crime de homicídio. O crime é o mesmo o que tem de diferente é a qualificação em decorrência da morte por força do gênero ou menosprezo ou discriminação à mulher.
O Colendo Superior Tribunal de Justiça ao tratar do descumprimento das medidas protetivas específicas da Lei Maria da Penha conclui que não se configura crime de desobediência, é o que se extrai da ementa do julgado do AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.651.550 - DF (2017/0021881-5):
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ART. 330 DO CP. DESOBEDIÊNCIA. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA PREVISTA NA LEI MARIA DA PENHA. CONDUTA ATÍPICA. EXISTÊNCIA DE SANÇÕES ESPECÍFICAS NA NORMA DE REGÊNCIA. INSURGÊNCIA DESPROVIDA. 1. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o crime de desobediência é subsidiário, configurando-se apenas quando, desrespeitada ordem judicial, não existir sanção específica ou não houver ressalva expressa no sentido da aplicação cumulativa do art. 330 do Código Penal. 2. Considerando-se a existência de medidas próprias na Lei n.º 11.340/2006 e a cominação específica do art. 313, inciso III, do Código de Processo Penal, o descumprimento de medidas protetivas de urgência não configura o crime de desobediência. 3. Agravo regimental a que se negaprovimento.
Por outro lado, apesar do Superior Tribunal de Justiça entender não se tratar de crime de desobediência, o Poder Legislativo editou recentemente a Lei nº 13.641/2018 que tipificou, pelo acréscimo do artigo 24-A à Lei Maria da Penha, o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência, cominando pena de detenção de três meses a dois anos ao descumprimento da decisão judicial de deferimento independentemente da competência civil ou criminal do juiz.
Ponto que vale destacar dessa nova lei que tipificou o crime de descumprimento das medidas protetivas é a hipótese de prisão em flagrante do delito em comento, caso em que a fiança somente poderá ser concedida pela autoridade judicial. Isso revela a intenção de dar maior efetividade a própria Lei com a punição pelo descumprimento das medidas protetivas impostas
Diante de toda evolução que a sociedade vem sofrendo, inclusive no próprio conceito de família, a violência contra a mulher acaba se tornando cada vez maisevidente. Nenhum tipo de ato discriminatório de gênero deve ser aceito, mas sim deve ser constantemente punido, inclusive com penas mais severas e medidas mais eficazes contra os agressores que se encontram camuflados nos seios familiares sob o manto da afetividade e amor familiar.
3 DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A análise sobre a violência contra a mulher não pode deixar de permear as nuances da grave violação a dignidade humana. A dignidade da pessoa humana foi elevada a fundamento da República Federativa do Brasil, conforme seu artigo 3º, inciso III.
Para alguns doutrinadores a isonomia é a principal garantia constitucional, e certo, ela é fundamental. Entretanto, como bem assevera e afirma NUNES (2002, p. 45), “o principal direito fundamental constitucionalmente garantido é o da dignidade da pessoa humana”.
O equilíbrio que se busca na isonomia nada mais serve para garantir a dignidade humana, tendo em vista a consequência última deste princípio dentro do sistema jurídico. Na interpretação e aplicação das leis, deve ser observado o comando de preservação da dignidade humana, sendo esta a direção certa a ser tomada pelos aplicadores e operadores do Direito. Muito bem esclarece NUNES (2002, p. 45):
É ela, a dignidade, o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais. A isonomia serve, é verdade, para gerar equilíbrio real, porém visando concretizar o direito à dignidade. É a dignidade que dá a direção, o comando a ser considerado primeiramente pelo intérprete.
A experiência histórica levou as nações, de modo geral, a desenvolver e valorizar o princípio da dignidade humana. Levando em conta todas as violações sofridas durante a história, ele surge como uma forma de luta e combate a elas, através das medidas de proteção estabelecidas em lei.
A dignidade nasce como o ser humano. O indivíduo é digno porque é humano. Vale ressaltar que a vivência na sociedade faz o indivíduo ganhar mais direitos a dignidade, uma gama de aspectos da vida humana social passa ser protegida por esse direito. NUNES (2002, p. 49) pondera:
Mas acontece que nenhum indivíduo é isolado. Ele nasce, cresce e vive no meio social. E aí, nesse contexto, sua dignidade ganha – ou, como veremos, tem o direito de ganhar – um acréscimo de dignidade. Ele nasce com integridade física e psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento que seu pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento – isto é, sua liberdade –, sua imagem, sua intimidade, sua consciência – religiosa, científica, espiritual – etc., tudo compõe sua dignidade.
É por essa razão que não pode o indivíduo sofrer nenhum tipo de discriminação de espécie alguma, pois o direito a dignidade já existe só pelo fato de ser humano. É bem asseverado por CAMARGO (2002, p. 27), que:
Toda pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e se diferencia do ser irracional. Estas características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser. Não admite discriminação, quer em razão do nascimento, da raça, inteligência, saúde mental, ou crença religiosa.
A dignidade humana encontra limite na dignidade do outro. A qualidade social que se atribui a dignidade exige que não haja ferimentos nem a um nem ao outro, sob pena de se perder o real sentido do bem estar social, de uma concepção do Estado Democrático de Direito.
Nesse diapasão o princípio da dignidade da pessoa humana é plenamente aplicável ao caso de proteção a integridade física, moral, psicológico da mulher. Trata-se de uma norma-princípio capaz de fundamentar a inibição da prática de atos de violência ao sexo feminino.
3.1EFICÁCIA DO PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Como abordado anteriormente o princípio da dignidade humana se revela também como norma jurídica. Dessa maneira é necessário ter sua eficácia analisada, uma vez que em se tratando de norma cogente deve sim possuir eficácia dentro do ordenamento jurídico capaz de fazer cumprir seu postulado.
É interessante destacar que os princípios, de modo geral, não apresentam medidas de caráter proibitivas ou permissivas. Eles são normas que exigem cumprimento, mas o seu desrespeito direto não causa uma punição propriamente dita. Apesar disso, qualquer ato que infrinja um princípio fundamental está sujeito à nulidade. Cada ramo do direito procura medidas para coibir tais ofensas, e se percebe no direito penal especial que trata da proteção dos direitos da mulher.
Nas palavras de SARLET (2010, p. 164):
...é imprescindível que se outorgue ao principio fundamental da dignidade da pessoa humana, em todas as suas manifestações e aplicações, a máxima eficácia e efetividade possível, em suma, que se guarde e proteja com todo o zelo e carinho este coração de toda sorte de moléstias e agressões, evitando ao máximo o recurso a cirurgias invasivas e, quando estas se fizerem inadiáveis, que tenham por escopo viabilizar que este coração (ético-jurídico) efetivamente esteja (ou, pelo menos, que venha estar) a bater para todas as pessoas com a mesma intensidade.
Assim a dignidade humana deve ser vista como o mínimo para a existência do ser humano, e que deve ter eficácia na sua aplicação. O Estado tem o dever de observar, proteger e garantir a dignidade humana; isso não envolve apenas bens de ordem patrimonial ou apenas a integridade física, mas também a integridade moral, sentimental, psíquica.
É dever do Estado a garantia da dignidade da pessoa humana como uma qualidade inata a todo ser humano, não considerando o que cada um entenda por digno e, na verdade, no que é digno para o ser humano de modo geral. Diante disso uma norma ou princípio para que se possa estabelecer sua eficácia na ordem jurídica é preciso que se analisem dois aspectos distintos de eficácia: social e jurídica.
A eficácia social pode ser percebida através da percepção da conduta da sociedade em consonância com a previsão normativa. Já a eficácia jurídica está relacionada com a capacidade de alcançar os objetivos da norma, que se revela nos efeitos causados e pela aplicabilidade da norma frente à conduta do indivíduo.
A forma como determinada sociedade se comporta frente à norma se relaciona com sua efetividade. São dois os fatores que devem ser levados a reflexão: o comportamento da sociedade e a maneira como o Estado exige da sociedade o cumprimento da norma. O que se observa que em relação ao princípio da dignidade humana o Estado não impõe uma punição para o seu descumprimento, mas utiliza o mesmo para declarar a nulidade de atos que o afrontem e até mesmo para inibir a prática desses atos.
A dignidade como valor fundamental reconhece e protege os direitos fundamentais. Consequentemente, negar eficácia e o reconhecimento dos direitos fundamentais às pessoas, é o mesmo que lhes negar a dignidade. É “indissociável a vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais já constitui, por certa, um dos postulados, nos quais se assenta o direito constitucional contemporâneo” (SARLET, 2010, p. 26).
Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana deve sim possuir aplicabilidade e ser dotado de toda eficácia para coibir a edição de normas e regras que violem os direitos da mulher. Para isso é preciso que ele sirva de parâmetro para conduzir medidas que não tenham apenas caráter punitivo, mas sim coercitivo com o fim derradeiro de melhorar a essência humana, proteger as mulheres como elas são e garantir-lhes uma vida digna.
4. ASSISTÊNCIA À MULHER PREVISTA NA LEI 11.340/2006
Na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), está estabelecido um rol de medidas a serem tomadas pelos agentes responsáveis pela proteção e pelo julgamento dos atos envolvendo a violência doméstica e familiar, com o objetivo de assegurar às vítimas o direito de uma vida sem violência. O doutrinador NUCCI (2009, p. 1181), destaca ainda que "são previstas medidas inéditas, que são positivas e mereceriam, inclusive, extensão ao processo penal comum, cuja vítima não fosse somente a mulher”, o que de fato ocorreu com as modificações das medidas cautelares do Art. 319 do Código de Processo Penal, com base na Lei 12.403/2011.
Na Lei ora em comento,são encontrados em diversos dos seus dispositivos medidas voltadas a proteção da vítima. O que é perceptível é que a incumbência de coibir o agressor e garantir a segurança patrimonial da vítima da violência doméstica e familiar está a cargo da polícia, do juiz e do Ministério Público, devendo estes agir de modo imediato e eficiente.
Com fito na obediência ao mandamento constitucional ao Ministério Público – quanto à defesa do regime democrática, dos interesses sociais e individuais indisponíveis e de toda a ordem jurídica – a Lei n.° 11.340/2006 previu em seu texto a participação efetiva deste órgão das mais diversas formas.
Conforme Santana (2010, p. 107) a ação ministerial se funda nos mesmos motivos de vivência da Lei Maria da Penha, que são o Estado Democrático de Direito, os Direitos Humanos e os Direitos e Garantias Fundamentais, tendo a lei específica buscado justificar a sua existência no sistema jurídico brasileiro.
A Lei Maria da Penha contém um grande número de mandamentos legais, como abaixo será descrito, que abordam a questão das políticas públicas, direcionados aos mais diversos agentes colaboradores da luta pela erradicação da violência doméstica, dos quais também faz parte o Ministério Público.
Assim age o Ministério Públicoà aplicação da lei, integrando-se operacionalmente com o Poder Judiciário, a Defensoria Pública e as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação (artigo 8°, I, Lei n° 11.340/2006).
Também pode celebrar convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher (artigo 8°,VI, Lei n° 11.340/2006).
É necessário ter uma integração operacional como afirma Cunha e Pinto (2008, p. 68 e 69) que a ausência desse pensamento uno (a integração entre os órgãos) é o maior responsável pelo fracasso do combate à criminalidade. A cisão entre os diversos seguimentos da segurança pública, entre Poder Judiciário e Ministério Público, é causa determinante para impedir a eficácia do serviço público que prestam. A Lei Maria da Penha objetivou, através da imposição de comunhão, fazer com que os agentes governamentais e não governamentais se apoiassem em prol do combate à violência.
O Ministério Público representa uma instituição muito importante no combate a violência contra a mulher na medida em que atua na proteção e resguardo da ordem jurídica e concretização do seu mister constitucional de tutelar os direitos sociais e indisponíveis.
Passando então para as medidas de proteção da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), estão elencadas em seus artigos 22, 23 e 24da Lei. O artigo 22 da referida lei prescreve:
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
A primeira atitude a ser, como bem alerta DIAS (2007, p. 78), tomada pela autoridade policial, após a denúncia é a suspensão da posse ou restrição do porte de armas do agressor, com o fim de evitar uma tragédia ainda maior, com comunicação ao órgão competente nos termos da Lei 10.826 de 22 de dezembro de 2003.
Cabe ainda salientar que, de acordo com NUCCI (2009, p. 1181), quando “as medidas de urgência previstas na lei não forem cumpridas pelo agressor, ao ter conhecimento do juiz este deve requisitar a força policial, com a finalidade de sanar a ocorrência”.
O artigo 23 da referida Lei preocupou-se com a proteção das vítimas, trazendo medidas protetivas de urgência.
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV - determinar a separação de corpos.
As medidas de proteção às vítimas da violência doméstica e familiar podem ser determinadas pelo juiz competente, ou ainda pela autoridade policial, ressaltando que o Ministério Público também tem esse dever, por se tratar de um serviço público de segurança, mesmo que administrativamente (DIAS, 2007 p. 83).
BITTENCOURT CANO (2016, p. 110) salienta que não se pode restringir a medida de separação de corpos aos casos de cometimento de crimes, e de fato isso se justifica porque em muitos casos ocorre a violência moral que não deixa de ser uma forma de violência e um ato que deve ser repudiado pelos aplicadores da lei protetiva do gênero feminino. Além do mais não cabe ao intérprete da lei dar interpretação restritiva do previsto na norma protetiva.
É possível ainda a decretação da prisão preventiva do agressor, que podem ser de duas ordens. Uma é a previsão do art. 20 da Lei Maria da Penha e a outra do art. 313, III do Código de Processo Penal. A primeira prisão está voltada para a garantia processual ou a própria sociedade, enquanto a segunda disposição de prisão está relacionada com a efetivação das medidas protetivas.
Sendo a primeira espécie de prisão preventiva da Lei em comento necessária para garantir a proteção do meio social, muito bem esclarecedoras às palavras de BITTENCOURT CANO (2016, p. 136):
Dessa forma, resta claro que a prisão preventiva, decretada para a garantia da ordem pública, não visa apenas acautelar o processo, mas sim o próprio meio social, sendo certo que, a a partir dessas considerações, é possível se chegar à clara conclusão de que é plenamente válida a cautelarem razão da premente necessidade de se assegurar credibilidade da população nas instituições diretamente envolvidas nas atividades de segurança e na repressão da criminalidade.
Apesar de existir previsão expressa no Código de Processo Penal no art. 313 inciso III da prisão preventiva com a finalidade de garantir a efetividade das medidas protetivas, a Lei Maria da Penha em seu art. 42prevê a prisão para assegurar a execução das medidas, acrescendo o inciso IV ao ora art. 313. O referido dispositivo foi revogado pela Lei nº 12.403/11, a fim de ampliar a proteção não somente à mulher mais a outros vulneráveis como idosos, crianças, enfermos e pessoas com deficiênciaque venham sofrer violência doméstica.
A Lei Maria da Penha também prevê, em seu artigo 24, a concessão de medidas protetivas na esfera patrimonial, uma vez que a violência também contra a mulher pode acontecer nessa seara:
Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.
BITTENCOURT CANO (2016, p. 121) esclarece muito bem que em relação à consideração do que é para a Lei Protetiva ora em comento deve se entender por um conceito mais amplo, em um sentindo lato, envolvendo os bens estritamente considerados como também as coisas. Justifica o autor:
Isto porque, existem coisas que, durante a tensa, ou seja, a situação de conflito, podem surgir e, sobre eles, a mulher também há de ter direito, podendo inclusive pedir a restituição ou emissão na posse. A descoberta de um tesouro, por exemplo, em que o marido se negue a reconhecer o direito da mulher, pode ser alvo desta medida, pois assim como o conceito de bens é ampliado, também o é o comportamento de subtrair, englobando outros verbos, como é o caso de desviar, apropriar-se ou não colacionar.
Já em relação à proibição temporária de comprar, vender ou alugar propriedade comum prevista no inciso II se pode perceber que o legislador disse menos do que deveria dizer, uma vez que não faz sentido munir o juiz de exigir a legitimação por ordem judicial em alienações ou outras disposições onerosas dos bens comuns, deixando a livre arbítrio do agressor a alienação de forma gratuita causando prejuízos à mais ofendida. Ora se a lei veda simplesmente de forma onerosa, pode muito bem ele dispor gratuitamente dos bens dolosamente para prejudicar à vítima da violência.
Em relação ao inciso III do artigo 24 da Lei Maria da Penha é uma medida de extrema importância por se tratar de mandato outorgado por parte da vítima ao agressor. A outorga de poderes se faz a quem se confia que irá exercer em seu nome fielmente e nos seus interesses aqueles poderes. Nesse caso a decretação pelo magistrado da suspensão de procurações pode evitar prejuízos inimagináveis à vítima, o que muito bem louvável esse medida protetiva prevista pela Lei.
A medida acauteladora prevista no inciso IV do referido artigo garante a satisfação de um direito que venha a ser reconhecido em demanda judicial a ser proposta pela vítima, determinando o depósito judicial de bens e valores. Essas medidas podem ser formuladas perante a autoridade policial, uma vez que são meramente extrapenais (DIAS, 2007 p. 91).
Por fim percebe-se que todas essas medidas visam proteger o gênero feminino das possíveis agressões que pode vir sofrer dentro do ambiente familiar ou fora dele. A Lei Maria da Penha traz em seu bojo um função de garantir a segurança e proteção da mulher em diversos espaços e garantir a concretização do direito fundamental maior que é o princípio da dignidade humana. Muito bem definida a função da Lei protetiva por BITTENCOURT CANO (2016, p. 1):
A Lei 11.340/06 reconhece a obrigação do Estado em garantir a segurança das mulheres nos espaços público e privado ao definir as linhas de uma política de prevenção e atenção no enfrentamento da violência doméstica ou familiar baseada no gênero, rompendo com a lógica da hierarquia de poder dentro de uma sociedade machista e dotando as mulheres de maior cidadania e conscientização dos reconhecidos recursos para agir e se posicionar, no âmbito doméstico, familiar e social, a fim de garantir sua emancipação e autonomia.
Logo em busca não somente da emancipação e autonomia das mulheres deve a Lei Maria Penha servir como base e pilar para se atingir o direito fundamental a vida digna, uma vez que protegendo tal princípio se cumpre também o postulado da igualdade expressamente previsto em nossa ordem constitucional e que obrigado o Estado em garantir e efetivamente buscar tal finalidade.
4.2 IGUALDADES X DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Como anteriormente abordado, a violência contra a mulher se traduz invariavelmente no decorrer da história. Um grande questionamento surge a respeito da igualdade quanto ao tratamento diferenciado entre os gêneros, isso também vai defronte ao princípio da dignidade da pessoa humana. É uma linha tênue que leva ao pensamento que se revela na indagação sob até que ponto estaria ferindo o postulado da igualdade constitucional tendo como fundamento a garantia do cumprimento do princípio fundante da ordem jurídica da dignidade humana.
O princípio da dignidade humana deve ser visto como um dever social do Estado. É um verdadeiro supraprincípio que irradia sua luz para os demais princípios, inclusive o da igualdade, normas constitucionais e infraconstitucionais. Não é dotado apenas de aspecto abstrato, mas contrariamente deve ser aplicado concretamente e em todos os demais princípios e normas. Não há como se pensar em igualdade se se desrespeitar a dignidade humana.
Diante disso, a Lei Maria da Penha surgiu na ordem jurídica com o papel, louvável, de estabelecer a concretude da igualdade material, mas, sobretudo para consumar o postulado da dignidade humana. A desproporção que existe entre o homem e a mulher é decorrente da natureza própria de cada gênero, e por ser ao longo da história o gênero feminino considerado frágil, exige postura concreta e eficiente do Estado e da sociedade em combater qualquer tipo de violência e trazer a proporcionalidade de tratamento jurídico e social às mulheres.
As palavras de STRECK (2011, p. 100) confirmam bem essa necessidade por parte do Estado de prestar uma proteção eficiente aos direitos fundamentais no que se refere à violência contra a mulher:
A feitura de uma lei – que garante um agir rápido do Estado em face da violência doméstica – é uma exigência constitucional. Trata-se da garantia da proteção da integridade física e moral da mulher. Não esqueçamos que, na contemporaneidade, além do princípio da proibição de excesso (Übermassverbot), que serve para proibir o Estado de punir com exageros, há também o princípio da proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot), que obriga o Estado (legislador, judiciário, Ministério Publico) a proteger os direitos fundamentais. Há hipóteses em que o Estado, ao não proteger o bem jurídico (inclusive via direito penal), estará agindo (por omissão) de forma inconstitucional.
A proteção dos direitos fundamentais por parte do Estado e de toda a sociedade é necessária. É regramento que precisa ser obedecido sob pena de ferir o postulado da dignidade humana bem como o da igualdade constitucional. Toda vez que o Poder Judiciário, ou qualquer outro órgão responsável, na interpretação e aplicação da Lei Maria da Penha deixa de buscar a efetivação das medidas protetivas e não buscar coibir a violência contra a mulher está comentando um ato inconstitucional.
A busca pela proporcionalidade entre os gêneros advém do princípio da dignidade. Ora, se se proporciona tratamento desigual na medida de sua desigualdade, está se concretizando a dignidade daquele que se encontra na condição de desigual. NUNES (2002, p. 55) afirma:
Como o mais importante princípio constitucional é o da dignidade, é ele que dá a diretriz para a harmonização dos princípios, e, via de consequência, é nela – dignidade – que a proporcionalidade se inicia de aplicar. Mas, também, quando se tratar de examinar conflitos a partir do princípio da igualdade, o da proporcionalidade estará presente.
Considerar o princípio da dignidade como sendo o mais importante não fere em nada o princípio da igualdade. Pelo contrário, através da busca constante pela igualdade se chegará à concretização da dignidade humana. O gênero feminino merece que o Poder Estatal reveja a balança da justiça na busca pela verdadeira igualdade de pesos, estes entendidos como direitos dentre de uma sociedade ainda machista e preconceituosa.
É preciso que na aplicação da Lei Maria da Penha, como um instrumento equalizador de desigualdades, seja conferida maior amplitude e fundamento à dignidade de todas as mulheres que sofrem os diversos meios de violência. O princípio da dignidade humana tem sua aplicação como norma cogente, e o próprio direito geral de igualdade fundamentam essa necessidade. Esclarece muito bem SARLET (2010, p. 87):
Também o direito geral de igualdade (princípio isonômico) encontra-se diretamente ancorado na dignidade humana, não sendo por outro motivo que a Declaração Universal da ONU consagrou que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. Assim, constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual não podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, perseguições por motivos de religião, sexo, enfim, toda e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material.
Esse direito garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU da igualdade de dignidade reflete muito bem na proteção da mulher. Não se pode tratar a dignidade do gênero feminino com desprezo e diferença sob pena de ferir o princípio da igualdade, e gerar consequentemente desigualdades, bem como o princípio maior da dignidade do ser humano.
Para que se concretize a verdadeira igualdada entre homem e mulher como preconiza a Constituição Federal de 1988, seja ela no aspecto formal ou material é fundamental que haja respeito e proteção constante da integridade física e emocional (psíquica) da mulher. É deixar de lado as concepções de que o homem é mais valioso e que a mulher deve sempre se submeter a todo o seu comando, e que ela não pode ter e nem deve ter opinião própria e conduzir sua vida como bem entender.
A Lei Maria da Penha é um instrumento que tem contribuído muito para alcançar maior efetividade na proteção da mulher frente às atitudes violentas que a sociedade às impõe. Mesmo que ainda tímida, em muitos aspectos de sua aplicação, tem colaborado para deixar de lado a dicotomia entre as igualdades e desigualdades de gênero e a concretização da dignidade humana feminina.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência contra a mulher se manifesta de diversas formas. Todo tipo de agressão ou conduta omissiva ou comissiva que cause discriminação e sujeite o gênero feminino a dano, sofrimento físico, moral, psicológico, social, político, econômico ou alguma perda patrimonial. Percebe-se que o conceito e os tipos de violência, seja ela doméstica ou não, tem uma grande abrangência e exige por parte de quem combate a violência um trabalho árduo para minimizar em todas as áreas os abusos cometidos.
A análise da evolução histórica revela a violência contra a mulher como algo que remonta a muitos séculos passados. No decorrer da história, de modo especial no Brasil, a legislação evoluiu no sentido de se dar maior efetividade a punição das condutas agressoras, bem como inibir a prática da violência. O grande marco dessa história se encontra na Lei Maria da Penha que é o divisor de águas do tratamento jurídico ao combate da violência contra a mulher.
Fica evidente a aplicabilidade do princípio da dignidade da pessoa e da igualdade, que também se revela na proporcionalidade, na aplicação cogente desses postulados fundamentais na luta contra a violência contra a mulher. Não se pode alcançar a verdadeira dignidade da mulher senão se propiciar a concretização da igualdade material e formal garantidas pela Constituição Federal de 1988. A dicotomia entre as igualdades e a dignidade humana revela que a primeira é um pilar que leva ao alcance da segunda.
Por fim, os mecanismos e assistências previstas na Lei Maria da Penha são instrumentos capazes de se aproximar ainda mais do ideal de dignidade da pessoa humana, em especial do gênero feminino. É dever do Estado oferecer efetividade na aplicação das medidas capazes de erradicar a violência ou ao menos diminui-la, uma maneira possível se alcançar tal mister seja o aumento da punição para os descumpridores das medidas protetivas e instrumentos como a impossibilidade de concessão de fiança por autoridade policial e até mesmo um acompanhamento mais detalhado das medidas concedidas, caso de seu cumprimento e descumprimento, em prol da diminuição da violência contra a mulher.
A muito ainda que se lutar pelos direitos da mulher, em especial o respeito e igualdade de tratamento. A violência, em todas as suas facetas, existente na sociedade precisa ser destruída. Mas de tudo uma constatação pode ser feita: a Lei Maria da Penha é e está sendo uma maneira de se alcançar a dignidade e igualdade da mulher ainda que necessite de adequações para dar mais efetividade nas medidas protetivas. Aí está a relação intrínseca entre a Lei protetora das mulheres e os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana e da isonomia.
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[1]Liliane de Moura Borges. Mestre em Ciências Ambientais pela PUC GO, Especialista em Direito do Consumidor pela UCAM, Graduada em Direito pela PUC GO, professorade ensino superior na Faculdade Serra do Carmo.
Bacharelanda do curso de Direito pela Faculdade Serra do Carmo. Servidora publica.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Iana Patricia De Melo. O princípio da dignidade da pessoa humana e a efetividade da Lei Maria Penha Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51849/o-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana-e-a-efetividade-da-lei-maria-penha. Acesso em: 02 nov 2024.
Por: EMILY PANISSE MENEGASSO
Por: Valdeir Britto Bispo
Por: Paula Caroline Serafim Maria
Por: ALESSANDRO BERNARDO DOS SANTOS
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